quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Cidadania e identidade nacional


          Todos os países têm leis de cidadania nacionais e definições da identidade nacional, assim como as democracias liberais têm a sua própria cultura, em que o principal direito que distingue os cidadãos dos não cidadãos é o direito de voto. Já se devem ser mais valorizados do que as culturas que rejeitam os valores da democracia, os ideólogos da democracia dividem-se. Hoje começa a ser mais claro por que a integração dos recém-chegados à Europa das culturas democráticas falhou.
          A identidade tem de estar relacionada com o respeito por parte dos cidadãos de ideias substantivas como o constitucionalismo, o primado do direito e a igualdade humana. E neste contexto o país tem justificação para excluir da sua cidadania aqueles que as rejeitam. Parece ser um bom caminho para a integração dos imigrantes e para uma sociedade saudável na sua diversidade. Infelizmente os imigrantes não estão bem integrados na maior parte dos países europeus, e a primeira ameaça que isso acarreta é a segurança das pessoas. Infelizmente, o que tem havido nos países democráticos liberais é uma polarização entre uma direita que procura eliminar completamente a imigração, e uma esquerda que afirma uma obrigação de acolher todos os imigrantes, em número praticamente ilimitado e indiscriminado. Isto gerou a ascensão de uma direita populista que sente ameaçada a sua própria identidade.
          Os europeístas convictos são de opinião de que a identidade nacional deveria ser redefinida de modo a ser incorporada nas suas leis de cidadania. Idealmente a EU deveria criar uma cidadania única cujos requisitos se baseariam na adesão a princípios democráticos liberais básicos. Seria uma cidadania que suplantaria as leis de cidadania nacional. Mas agora, com a ascensão de partidos populistas em toda a Europa, isso será impossível. A maior parte dos 28 países da União continuam ciosos das suas prerrogativas nacionais. Assim, qualquer ação que possa vir a acontecer terá de ser ao nível de cada estado membro.
          A dupla cidadania tem-se tornado crescentemente vulgar hoje em dia à medida que os níveis de migração sobem. Mas, por vezes, isto pode causar problemas. Por exemplo, na Alemanha reside uma comunidade turca significativa. E nas eleições alemãs de 2017, Erdogan, o Presidente turco, resolveu encorajar os turcos com cidadania alemã a votarem em políticos mais favoráveis aos interesses turcos, em vez de votarem em consciência naqueles que seriam melhores para a Alemanha. O direito de voto é particularmente importante, visto que dá às pessoas uma parcela do poder do Estado. Mas não passaria pela cabeça de ninguém que um turco pudesse votar em Itália ou no Gana, mesmo que vivesse num desses países.
          A verdade é que o multiculturalismo, que se tem vivido em países como a Alemanha, incutiu na cabeça das pessoas a preocupação de não insinuar que a nossa cultura europeia, por baseada na crença dos valores democráticos e da igualdade liberal, era superior a outros valores culturais, e daí o facto de um turco na Alemanha, com cidadania alemã, não se sentir obrigado a falar de si como um alemão. Ou seja, este entendimento de identidade nacional é baseado na etnicidade. É claro que este ambiente cultural veio dar um conforto involuntário não apenas aos islamistas, mas também à direita que ainda acredita na identidade étnica.
          Acima de tudo, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, há uma obrigação moral para com os refugiados. Mas, como todas as obrigações morais, estes deveres precisam de ser temperados por considerações práticas de escassez de recursos, prioridades concorrentes e a sustentabilidade política de um programa de apoio. As democracias liberais beneficiam largamente com a imigração, tanto económica como culturalmente. Mas isso significa também que os níveis de imigração tê de ser relevados, porque as comunidades imigrantes ao atingirem certa escala tendem a tornar-se disfuncionais com os outros grupos dado o seu desejo de se autonomizarem. Por seu lado, a população autóctone não aceita de ânimo leve que estrangeiros que não são cidadãos legais, e não contribuintes enquanto desempregados, assoberbem os serviços públicos para cuidar deles, enfraquecendo o apoio esperado receber de uma segurança social generosa. Por outro lado, a situação de ilegalidade é agravada porque alguns empregadores ocultam informação acerca dos seus trabalhadores para beneficiarem de trabalho barato.
          Portanto, a solução para o problema do populismo e da ascensão da extrema direita derivado da pressão migratória, tanto na Europa como nos Estados Unidos, passa por políticas públicas de integração bem-sucedidas. Na verdade, apaziguariam pelo menos aquele setor da sociedade que rejeita o imigrante mais por medo e insegurança, do que por racismo ou intolerância do estranho outro. Receiam que as instituições existentes não sejam capazes de arcar com um tão elevado número de pessoas que implica grandes e rápidas mudanças no modus vivendi. Porque em relação ao grupo motivado pelo racismo e intolerância, pouco se pode fazer para que mudem de opinião, a não ser a nossa oposição de caráter moral. Uma política focada na integração, boa para a coesão social, poderia aplacar as preocupações do primeiro grupo, e assim despega-los dos intolerantes racistas.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Relações desiguais de género numa sociedade ainda patriarcal


          Há dois dias, no dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, centenas de pessoas reuniram-se em marchas pelas principais cidades da Europa. Das declarações às reportagens televisivas, de líderes de alguns movimentos, como por exemplo UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) extraía-se um argumento de peso: “ainda se vive numa cultura patriarcal e machista, assente numa sociedade desigual que historicamente, quanto à desigualdade de género, tem privilegiado os homens em detrimento das mulheres.”
          É claro que a perceção de alguns homens conservadores, os que enfiam a carapuça de machista, não é coincidente, e como é óbvio, não aceitam essa verdade também óbvia. Argumentam que são ideias da esquerda que tem dado vantagens injustificadas às minorias, às mulheres, aos refugiados. Mas a verdade é que ainda é muito elevado o número de mulheres assediadas, agredidas, violadas e assassinadas (nos últimos dez anos, 30 mulheres assassinadas em média por ano).
          Quando a liberdade de expressão se transforma em afronta vergonhosa, agora algumas democracias europeias criminalizam certas expressões, que são vedadas quando proferidas em público, ou por serem humilhantes para certas minorias, ou por instigarem à violência. No entanto estes princípios não se aplicam aos Estados Unidos da América porque a liberdade de expressão está constitucionalmente protegida. Assim, as pessoas podem dizer o que lhes apetece, que o que lhes pode acontecer é apenas um opróbrio moral. Não é assim, portanto, tão extraordinário para os americanos, toda a verborreia bestial de Donald Trump. Inclusivamente, Hillary Clinton, numas declarações aquando da derrota que teve com Trump, chegou a dizer que isso se deveu a um certo eleitorado pacóvio, ou algo semelhante. Ora, de certo modo estas declarações vieram agravar ainda mais a pouca fé que esse eleitorado visado tinha por ela. Apesar de algumas dessas pessoas não apreciarem por aí além a forma como Trump diz as coisas, o certo é que gostam do facto de ele não se deixar intimidar pela pressão do politicamente correto. Pode ser irritante, e até malévolo, mas pelo menos é autêntico. Estes americanos da chamada “América Profunda”, ou do mundo rural, e a que Hillary Clinton chamou pacóvia, ficaram fartos de serem ridicularizados pelas elites das grandes cidades, através dos filmes produzidos em Hollywood, em que quem ficava sempre bem na fotografia eram personagens estereotipadas nas categorias conotadas com lésbicas e gays.
          Apesar de a identidade pessoal ser um aspeto de suprema importância, quando levada ao extremo pode paralisar as sociedades, ao ameaçar a possibilidade de comunicação e de ação coletiva. Por isso, a sociedade como um todo, para prosseguir objetivos comuns, nada beneficia quando protege determinadas identidades de grupo cuja legitimidade pode ser discutível. As pessoas vivem melhor em sociedades mais cosmopolitas, mais democráticas, mais diversificadas, sem que com isso tenham de perder o sentido de identidade nacional, mais ampla e ao mesmo tempo mais integradora.

domingo, 25 de novembro de 2018

O paraíso perdido (3)


          Entretanto na Alemanha dos festejos passou-se ao medo e os xenófobos passaram a fazer mais barulho. Em fevereiro de 2017 Merkel é obrigada a ceder e em setembro a popularidade de Merkel começa a baixar e a AfD a subir. Em junho de 2018 com Merkel mais fragilizada do que nunca depois de seis meses para formar governo, o ministro do interior ameaça agir unilateralmente para restringir o acesso à imigração. Merkel acaba por ceder comprometendo-se com a criação de centros de trânsito para os migrantes em território alemão. Os ataques de Paris haviam acelerado um processo de rápida inversão do que estava já em andamento. Tal como na Grão Bretanha e outros países europeus os franceses tinham semelhantes razões para estarem céticos em relação à retórica que se havia instalado. 
          No verão de 2016 a cidade de Nice apenas passou pelo primeiro de um conjunto de ataques quase diários. Alguns destes ataques foram levados a cabo por pessoas que tinham chegado à Europa durante os anos da recente vaga de imigração. Outros ataques, como o de Munique, foram realizados por indivíduos que tinham nascido na Europa. As pessoas ficavam atrapalhadas quando se perguntava porque estava isso a acontecer. O falhanço da integração era apenas uma parte da resposta. E por outro lado os migrantes mais recentes não explicavam tudo.
          O medo estava-se espalhando, e quantos mais refugiados entrassem num país mais esse medo crescia. Mas por outro lado também se tinha medo de cair ou ser acusado de racismo. E as autoridades ficaram à nora, sem saber o que fazer. Inclusivamente a Noruega passou a oferecer lições aos migrantes, como tratar as mulheres. Estas lições destinavam-se a contrariar o crescente problema das violações na Noruega, explicando aos refugiados que, por exemplo, se uma mulher lhes sorrisse ou se vestisse de forma a mostrar a pele, isso não queria dizer que eles pudessem violá-la. E na Alemanha, ao longo de 2016, a onda de violações e agressões também se espalhou. Mas o medo das consequências de identificar os agressores sobrepôs-se ao empenhamento da polícia no seu dever de não ocultar a identificação dos culpados.
          Agora, com a política de inversão, era sobre a Grécia e sobre os países de receção que pesavam os efeitos dessa inversão. Nem os podiam deslocar para norte, nem os podiam mandar de volta para casa. E o que tinha a dizer Merkel por toda esta confusão ? O que ela disse numa breve palestra enquanto recebia um doutoramento honoris causa pela universidade de Berna, foi que os europeus tinham responsabilidades relativamente aos refugiados. Mas, e então, levantou-se alguém da assistência, “em que posição fica a responsabilidade dos europeus na proteção dos outros europeus?” Merkel, invocando europeus que se tinham ido juntar ao Daesh, os europeus não podiam dizer que nada tinham a ver com eles. Não fora isso que lhe fora perguntado, mas a chanceler continuou: “o medo é mau conselheiro, tanto na vida pessoal, como na vida social.”
          O campo de refugiados da ilha grega de Lesbos é o maior da Europa. É um lugar onde não faltam agressões nem violações. São perto de oito mil pessoas num espaço insuficiente para tanta gente que chega a Mória, onde outrora estava instalada uma base militar. Semanas depois da chegada são chamadas para registo oficial. Mas a etapa seguinte pode demorar meses. Os que chegaram agora só lá para abril terão a entrevista de admissibilidade. E depois, só se passarem é que seguem para a entrevista principal, a de elegibilidade. Se tudo correr bem então é pedida a ajuda internacional. Caso contrário entram na fase de recurso. Se a pessoa for rejeitada, a pessoa é detida e deportada. Ainda pode recorrer, a um tribunal superior, muito difícil de alcançar e caro.
          Há uma casa de banho para cada trinta pessoas, alguns a viver em tendas de lona com paletes cobertas com mantas a fazer de chão. É difícil entrar na parte oficial do campo de Mória. Os jornalistas não têm autorização para entrar nas casas de banho e nos duches, onde as mulheres têm medo de ir porque podem ser violadas. Este centro de registo numa base militar sob a responsabilidade do governo grego e financiado com fundos europeus, não foi planeado para reter refugiados tantos meses, podendo chegar a um ano. Foi planeado para ser um abrigo transitório onde os refugiados não permaneceriam mais de uma semana. À volta do campo há rulotes junto ao muro da base, onde se pode ler “bem-vindo à prisão”, e comerciantes vendem fruta e outras coisas, que regressam a casa ao fim do dia e voltam no dia seguinte.

Terra prometida (2)


          Então no dia 31 de agosto de 2015, na Alemanha, todos os alemães ouviram Angela Merkel proclamar que o mundo via a Alemanha como um país de esperança, apesar de nem sempre ter sido assim. Poucos dias antes tinha havido um ataque incendiário em instalações para migrantes numa cidade do leste alemão, e manifestações no exterior de um centro a partir de agora chamado de refugiados. Quando a chanceler apareceu nessa cidade, foi vaiada e assobiada pela multidão.
          Mas outros alemães viram essas manifestações horrorizados. Era preciso agir de forma a mostrarem um lado diferente do seu país. E estavam prontos para isso. Essa oportunidade chegou poucos dias depois, quando a chanceler abriu as portas a centenas de milhares de pessoas que haviam partido do Mediterrâneo e subido rumo à Alemanha passando a Sérvia, a Hungria e a Áustria. Nas fronteiras e nas estações ferroviárias juntaram-se centenas de alemães para dar as boas-vindas aos agora denominados refugiados que chegavam. Nesta altura já tinha conotação pejorativa chamar-lhes migrantes, pelo que passaram então a ser refugiados. Cadeias formadas por voluntários entregavam-lhes comida e presentes, incluindo ursos de peluche para as crianças.
          Este espírito espalhou-se a outros países do norte da Europa. Por exemplo, na Dinamarca, quando jorravam montes de imigrantes pela ponte em direção às Suécia, uma política dinamarquesa de 24 anos de idade começou a transportar refugiados no seu iate, entre a cidade de Copenhaga e a cidade sueca de Malmo. De um dia para o outro a crise da migração é redefinida nos círculos mais abertos como uma crise de refugiados, e quem questionasse era visto como xenófobo.
          A partir da exuberante manifestação de boas-vindas alemã, todos passaram a querer ir para a Alemanha. De um momento para o outro passou a haver autocarros na Grécia e na Macedónia. E a barreira da Hungria já não era mais do que um rolo de arame farpado que se podia transpor, interpondo, por exemplo, um colchão, ou até um casaco. Aos milhares em plena luz do dia, a polícia húngara já não fazia nada para os impedir. Foram autorizados a atravessar o país com destino à Áustria e depois Alemanha, que prometeu recebê-los de braços abertos.
          Ainda assim tinham um desafio: ou os centros policiais de identificação; ou os traficantes criminosos sem escrúpulos; ou então, se tivessem sorte, a ajuda de um voluntário que desafia também a sua sorte a anos de prisão se fossem apanhados pela polícia.
          Mas em 15 de setembro de 2015 a Hungria bloqueava finalmente de vez a principal rota até ali usada pelos refugiados para alcançarem a Alemanha. Por isso a rota sofreu um desvio em direção à Croácia.

O êxodo trágico de uma primavera perdida (1)


          A primavera que havia despontado prematuramente na Tunísia, em dezembro de 2011, quando chegou à Síria ainda era inverno. Bashar al-Assad responde inicialmente com violência policial nas manifestações, mas vendo que o conflito se tornou mais intenso, e que seus oponentes começaram a dominar cidades, ordenou bombardeamentos aéreos e ataques de mísseis a todas as cidades sob controlo rebelde, além de enviar tropas para combater. E o país fica imerso numa cruel e brutal guerra civil. E então há um êxodo em várias direções, do qual apenas retemos as imagens dos naufrágios no Mediterrâneo, por serem indescritivelmente chocantes.
          Um repórter, que acompanhou pessoalmente uma missão de salvamento, conta: “Quando se para ao lado de um navio destes, não se está preparado para o choque. Já vi centenas de fotos de barcos. Testemunhei mesmo um salvamento de menor dimensão. Mas um barco com seiscentas pessoas amontoadas até à última prancha do convés, e até ao último espaço possível do porão, é uma cena que nos arrasa. Um mar de vidas apenas a alguns momentos da morte. O barco balançava, bastaria uma pequena mudança do tempo para certamente se produzir uma catástrofe. Ainda retenho na memória as imagens do desembarque, mais bíblicas do que homéricas, apesar de estarmos na Grécia. A partir do momento em que põem o pé em terra, são vistos apenas como uma estatística. E toda a gente usa novamente uma máscara. E, todavia, a história não acaba aqui.”
          Das muitas entrevistas que os jornalistas fizeram, os relatos dos sobreviventes dos naufrágios são absolutamente arrepiantes. Conta um sobrevivente: “O único poder de que uma pessoa dispõe é o de manter-se calma. Num barco assim tão carregado, os movimentos bruscos podem virá-lo. As pessoas não podem mexer-se, pelo que aquelas que ficam no meio do barco simplesmente defecam e mijam em cima dos outros. E então o cheiro torna-se insuportável. Na borda do barco houve dois homens que se desequilibraram e caíram ao mar. Escusado será dizer que se afogaram. Houve outro que perdeu o controlo, pela sede ou pelo pânico. Antes que a situação se complicasse mais, dois rapazes que estavam junto dele atiraram-no pela borda fora.”
          Para entrar em países Schengen, para chegar ao norte da Europa, a maior parte desta gente atravessa a pé a Macedónia e a Sérvia. Então, chegados à Sérvia, seria lógico entrarem na Hungria, país que fica do outro lado da fronteira. Mas a Hungria colocou uma barreira ao longo dos 180 quilómetros que a separa da Sérvia.
          Na verdade, não é na Hungria que os imigrantes querem ficar. Mas o argumento das autoridades húngaras vai no sentido de achar que é seu dever impedir que um número tão elevado de estrangeiros entre nos outros países da União Europeia.
          Seja como for, há quem veja nesta atitude hipócrita de Viktor Orbán razões de ordem interna, com o objetivo de ficar bem visto pelo eleitorado e evitar que se desloque ainda mais para a direita, neutralizando o partido que se lhe pode opor com maior eficácia, com o argumento de que os imigrantes não apenas vêm tirar os empregos aos húngaras, como pôr em perigo as próprias bases da Europa cristã.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O terramoto político de Roma com epicentro na Grande Muralha da China


          O pedigree do animal político que hoje é a Europa recebe contributos de muitos lados. Mas os seus contornos não se delimitam apenas entre a Muralha de Adriano na Escócia e o Muro das Lamentações na Judeia. Também se descobrem conexões com a Grande Muralha da China.
          A Grande Muralha da China, concluída por volta de 220 a.C., tinha como objetivo proteger o novo império chinês de Shih Huang-ti das tribos guerreiras de nómadas saqueadores da Mongólia.  Afastados do novo império, um local seguro, viraram-se para o ocidente, onde povos que acabaram por dominar a Europa após o fim do Império Romano no Ocidente, foram empurrados por eles. Se não fosse a Grande Muralha da China, no exterior da qual eles se unificaram e aumentaram o seu poder com astúcia e técnica militar, em vez de migrarem para ocidente com a consequente pressão demográfica, teriam preferencialmente penetrado para o sul da China e aí dominado. Ainda assim, eles conseguiram irromper para sul no século I desta era, apesar de os Han os terem expulsado com elevados custos de destruição.
          Os Hsiung-nu para além de nómadas dedicados à pastorícia, eram exímios domadores de cavalos que pastavam onde encontrassem boa erva. Por isso, eles sabiam tudo o que era preciso saber sobre cavalos. Montados sobre eles fincados sobre estribos, disparavam flechas mortíferas com arcos pequenos e poderosos, feitos de camadas de ossos de animais, à quais juntavam madeira para obter flexibilidade. Entravam de rompante numa aldeia, matavam todas as pessoas que encontravam e voltavam a desaparecer, levando tudo o que pudessem transportar a cavalo, sobretudo reservas de comida e ouro.
          Assim, pouco havia que estorvasse os nómadas a correr a cavalo na vasta estepe vazia da Ásia Central. Até que chegaram aos territórios em redor do mar Negro. Aqui chegados, os Hsiung-nu, agora chamados Hunos, encontraram outros povos nómadas, que não tardaram a desalojá-los empurrando-os ainda mais para ocidente, principalmente Godos e Vândalos. Mas os Hunos não se ficando por aí, chegaram em 400 às portas de Viena, desalojando novamente os Godos. Então os Godos dividem-se em dois grupos: um deles, os Ostrogodos, forçaram os povos germânicos nativos a fugir para sul; e os outros, os Visigodos, vendo Roma enfraquecida, arriscaram atacá-la. Em 410, comandados por Alarico, foram bem-sucedidos. Roma era devastada e saqueada. Em 402 já a capital do Império havia sido mudada para Ravena, que por sua vez também foi tomada em 493, desta feita por Ostrogodos.
          Hoje a palavra “vandalismo”, sinónimo de profanação, ou destruição propositada, deve-se aos Vândalos, que continuaram para ocidente pilhando tudo o que encontravam pelo caminho. Depois atravessaram para África e apoderaram-se da cidade nova de Cartago, o grande centro do Império Romano do Norte de África. E não ficando por aqui, a seguir voltaram a atravessar o Mediterrâneo até Itália, sendo Roma novamente saqueada em 455.
          É claro que aquela energia febril das hordas hunas não podia durar para sempre. Em 451, os Hunos comandados por Átila, depois de terem invadido a Gália, acabaram por ser derrotados por uma coligação de Romanos e Visigodos. Passado um ano Átila morre de atentado, e em breve os Hunos desapareciam das páginas da história.
          Constantino havia adotado o cristianismo como religião oficial de Roma. Mas Constantino também fundou Constantinopla, que a partir do século V passou a dominar o que restava ainda de interessante no império. Ainda assim, com o passar do tempo, o cristianismo impôs-se no ocidente com o papa em Roma, e a Igreja como sua instituição.
          Entretanto Agostinho nasce em Tagaste, norte de África, onde hoje é Argélia, corria o ano de 354. Os pais investiram todos os seus recursos financeiros numa formação intelectual esmerada. Mónica, a mãe de Agostinho, era uma cristã muito devota, mas o pai não. Ela tanto se esforçou que Agostinho acabou por se converter, e a reconhecer as características sobre-humanas de Cristo. Em 410 Roma foi saqueada, e os pagãos acusaram o cristianismo como a sua causa. Agostinho escreveu muita coisa, nomeadamente a Cidade de Deus, como resposta à acusação de o cristianismo ter sido culpado pela entrega de Roma nas mãos dos bárbaros. Em 430 morre em Hipona, sem antes ver um exército vândalo à portas da cidade preparando-se para entrar. A partir daí, todos os cristãos aderiram a um novo modo de vida, não parecendo lamentar o que tinham perdido. Pouco se interessavam pelo corpo e pelo bem-estar material. O importante era a saúde da alma. Conquistar fortuna era perder reputação. A arte e a filosofia deixaram pura e simplesmente de existir, era preciso proteger a família e isso roubava tempo. Não havia tempo para ler, mesmo que se soubesse, a vida tornara-se difícil. E o latim, que era entendido em toda a parte, passou a ser substituído por outras línguas não letradas.
          Ora, os Romanos dos primeiros séculos da atual era passavam mais tempo nos banhos e nos ginásios do que nas igrejas, ou bibliotecas. Obcecados pela saúde, iam para as termas e faziam dietas esquisitas. Mas também se entusiasmavam com as viagens, e os espetáculos nos teatros e nos circos. E gostavam da fama. E eram gananciosos corruptos. Acima de tudo, os Romanos preocupavam-se com o sucesso, o qual interpretavam como sendo viver para o bem-estar do presente e não pensar no amanhã. Roma, nesses tempos áureos albergara cerca de um milhão de pessoas. Mas em 550, já não tinha mais de 50.000.
          Enfim, a Europa mudara radicalmente, e hoje já não tem o cristianismo como religião de Estado. Os Visigodos duraram cerca de duzentos anos numa faixa de terra no sudoeste de França e em quase toda a Península Ibérica, exceto o País Basco. Até que entraram em cena outros protagonistas, outras hordas não menos energéticas e febris. Vinham aparelhados com uma doutrina religiosa que ainda haveria de dar muito que falar mais de mil e trezentos anos depois.

A Lei por Direito


          Ainda hoje, quase todos os sistemas legais do mundo ocidental descendem da lei romana, que começou a ser codificada nas Doze Tábuas por volta de 450 a.C. Os Romanos sempre possuíram u respeito e um amor profundos pelo Direito. Os Romanos levaram a sua lei para onde quer que fossem e entregavam-na aos povos que conquistavam. Assim, durante muito tempo qualquer cidadão do império podia invocar a lei romana, fosse grande ou pequeno, rico ou pobre. As legiões romanas levavam consigo cópias das tábuas, que eram erigidas nas cidades conquistadas, para que os derrotados soubessem que tipo de pessoas os tinham vencido. As leis e os procedimentos eram fáceis de compreender, por isso acessíveis a todos os cidadãos.
          Em 529, o imperador Justiniano proclamou o famoso “Codex Constitutionum”, o qual se tornou a principal fonte da lei romana durante mais de mil anos. Daí não ser surpreendente que ainda hoje sirva de base aos sistemas legais da maioria dos países europeus, bem como do Estado da Louisiana.
          Apesar de, no campo da Arte, Filosofia e Ciência, os Romanos terem aprendido com os Gregos, e, portanto, apesar de os Romanos nestes domínios não saberem mais do que aquilo que os Gregos sabiam, sabiam coisas que os Gregos não sabiam. Os Gregos não eram um povo com um sentido prático tão apurado como o dos Romanos. E isso fez toda a diferença para que os Romanos derrotassem os Gregos sempre que combatiam. Mesmo assim, a ciência romana era atrasada comparada com a grega, sobretudo a ciência grega que se praticava em Alexandria.
          A queda da República Romana foi lamentada ao longo de dois milénios por todos aqueles que amam a liberdade. Talvez ninguém acreditasse tão profundamente na República como Cícero, ou seja, ele acreditava num Estado de Direito e não de homens. Mas o que ele viu foi um Estado de um só homem, pois ainda não existia uma Constituição suficientemente forte para que a República sobrevivesse.
          A intuição de Cícero apenas viu a luz do dia muitos séculos mais tarde com os fundadores da República Americana. Estes foram os primeiros a conseguir demonstrar como um Estado de homens poderia, na prática, funcionar tal como Cícero havia concebido.
          No entanto, a Constituição Americana é um pedaço de papel, não se pode defender sozinha. Se os Americanos não acreditarem nela, torna-se mesmo apenas um mero papel. A Constituição não tem qualquer proteção, a não ser a fé que o povo tem nela. E a crença não pode ser legislada.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Como se explica a desertificação da esquerda?


          A fraqueza global da esquerda é em muitos aspetos surpreendente, uma vez que seria de esperar o contrário depois da crise financeira que rebentou em 2008, e de a desigualdade, o fosso entre ricos e pobres dentro de cada país, ter aumentado ao longo das três últimas décadas. Dentro de cada país, não entre países. Isto contraria o que a esquerda vaticinava há décadas. O mundo tornou-se muito mais rico graças a ganhos de produtividade, mas esses ganhos não foram igualmente distribuídos. E assim, nestas circunstâncias, seria de esperar que se assistisse a um rejuvenescimento da esquerda. Tal não aconteceu.
          É possível que as causas se tenham começado a desencadear há mais tempo. A velha esquerda, de base classista, tem estado num declínio de longo prazo no mundo inteiro desde o desabamento do comunismo arrastado pela queda do Muro, que a seguir arrastou consigo na queda também a social-democracia, uma das forças dominantes, sobretudo na maioria dos países europeus. Então, o que se verificou com esses partidos, que inclui os socialistas, foi que toda a esquerda deu uma guinada para o centro, ao ritmo da terceira via de Blair, para acompanhar a lógica da economia de mercado.
          Mas pior do que terem perdido influência sobre a base do seu eleitorado tradicional, simplificada com a designação de “classe trabalhadora”, os partidos da esquerda perderam-na para a extrema direita nacionalista. Os marxistas ficaram perplexos, porque não estavam à espera que a História entregasse o ouro ao bandido. O que acontece é que é na nação que o povo revê a sua identidade. As motivações económicas subordinam-se às questões de identidade. A indignidade da invisibilidade é pior do que a falta de recursos.
          Ainda que muitos países, chamados em vias de desenvolvimento, tenham visto uma certa percentagem de cidadãos saírem da faixa de pobreza e passado a constituir a classe média, terem passado a usufruir de recursos materiais que definem a classe média, a verdade é que, paradoxalmente, essa passagem conferiu-lhes melhor conhecimento da dignidade a que tinham direito. As pessoas são muito mais sensíveis às perdas, do que aos ganhos. Isto pode explicar porque é que é que as classes médias são aquelas que se manifestam e desestabilizam os regimes políticos, e não os desesperadamente pobres. Sentir perda, e sobretudo perda de estatuto social é o verdadeiro motor da revolta.
          O desejo de reconhecimento da própria dignidade é muito mais forte que o desejo da mera melhoria das condições materiais de vida. E neste estádio evolutivo da condição social que essas pessoas vêm para a rua indignar-se com a situação política. São movidos mais por razões de justiça do que por necessidade de aumento salarial. Ser notado, sentir aprovação social, tudo isso são aspetos que se sobrepõem à ambição de riqueza. A estima de Si só se pode fundar e alimentar se for objeto de atenção e aprovação por parte dos outros.
          Ter um emprego não garante apenas recursos, mas também reconhecimento pelo resto da sociedade de que uma pessoa está a fazer alguma coisa socialmente valiosa. Dar uma esmola a um pobre, ou a um sem-abrigo, ou o rendimento mínimo garantido a uma cigana com três filhos, mas sem os olharmos nos olhos, estamos a aliviar a carência material, mas não a reconhecer e a partilhar a sua humanidade. A verdadeira dor da pobreza é a perda de dignidade. As pessoas gostam de se comparar umas com as outras. E é por isso que uma pessoa rica pode nunca estar satisfeita com a sua riqueza e querer enriquecer mais, porque ainda não é tão rico como fulano e sicrano. Um qualquer padrão de riqueza que limite essa ambição não existe, porque o que nos move na obtenção de riqueza é o desejo de estatuto social, desejo esse que está inscrito na nossa condição biológica de primata.
          A ameaça percebida pela classe média à sua perda de estatuto, devido às profundas transformações nos paradigmas de vida processados na viragem do século XX para o século XXI, pode ser uma das explicações do fenómeno de desertificação da esquerda e da ascensão do nacionalismo populista em muitas partes do mundo nesta segunda década do século XXI. As pessoas que ascenderam à classe média significa que passaram a ter mais estudos. E com isso adquiriram uma consciência de classe mais fácil de mobilizar e mais tempo para a atividade política.
         Assim, a classe média dos dias de hoje de países como os Estados Unidos da América e Inglaterra, é formada por cidadãos ressentidos que temem a perda de estatuto, e apontam o dedo não apenas às elites, mas também a outros grupos sociais ainda mais desfavorecidos, como é o caso de imigrantes à procura de asilo. É considerada gente dolosa não merecedora de lhes passar à frente no usufruto de recursos produto do seu esforço. Por isso não veem com bons olhos gente vulgar que está à espera numa longa fila para entrar pela porta do sonho americano.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Como viver em tempos de recessão democrática?


         Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro, declarou em 2017 que o seu regresso ao poder marcava o ponto em que os húngaros decidiram que queriam recuperar o seu país com a dignidade que a autoestima por si própria merecia. Pois a identidade nacional nascia, em primeiro lugar, da distinção ente o nosso eu interior e um mundo exterior de regras e normas da curvatura da banana e da couve de couve de Bruxelas, que não reconhecia adequadamente o valor da dignidade do eu interior húngaro. Não é o eu interior que deve ser obrigado a conformar-se com a regras impostas por uma casta de burocratas. Quem tem de mudar é precisamente essa mesma casta.
          Esta segunda década dos ‘anos 2000’, tem sido profundamente marcada por uma recessão democrática, não apenas na Europa, mas um pouco por todo o mundo. E então, a que se deve isto? Como anda tudo ligado, é um fenómeno que começa em força em meados dos ‘anos 1980’ com a deslocalização das empresas-fábrica da Europa e dos Estados Unidos para a Ásai Oriental, onde a mão de obra era muito mais barata, e culmina, pelo menos até aqui, na mutação da Al-Qaeda em Estado Islâmico. E jovens muçulmanos, a maior parte deles nascidos na Europa, a deixarem as suas vidas, aparentemente vividas com relativa tranquilidade, para se alistarem nas fileiras do autodenominado Estado Islâmico. E a cereja do bolo chegou em 2016, quando os britânicos votaram a favor da sua saída da União Europeia, e os norte-americanos elegeram Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos.
          Assim, para a emergência do sentimento de identidade nacional, que estava adormecido, juntou-se a fome com a vontade de comer: a perda de emprego por parte das classes trabalhadoras e classes médias antigas desses países; e a vaga colossal de imigrantes fugindo à guerra, e a outros atropelos contra os direitos humanos, sobretudo do Médio Oriente, África Subsariana e América Central. Muitos nacionais dos países de acolhimento viram os imigrantes não só como usurpadores dos seus empregos, mas também como os causadores da insegurança e agitação social. Estavam assim criadas as condições para que partidos anti-imigração e anti União Europeia ganhassem força para subir em flexa.
          Bem ou mal, sobretudo os eleitorados preferencialmente inclinados para políticas conservadoras e de direita, sentiram que o seu âmago, o mais íntimo da sua dignidade humana, o “eu interior”, estava ameaçado. Portanto, já não era apenas a carestia material, devida ao desemprego, o único problema, mas a ela associava-se o sentimento de um eu interior desrespeitado, para não dizer humilhado.

O Homem a abrir a caixa de Pandora e a ver o seu poder em cinzas


          Em certos processos históricos há pontos de inflexão que, só a posteriori, se podem ver melhor e avaliar as consequências. Mas não é este o caso. O Homem abriu a caixa, e viram-se logo os fenómenos incontroláveis. Mas o Homem continuou com o cinismo do pior que há. Não tem necessidade de mediadores.
          Nos últimos tempos havíamos ficado sensíveis à obrigação de usar publicamente expressões não humilhantes: não negros, mas subsarianos; não pobres, mas desfavorecidos; e por aí fora. E agradados com a discriminação positiva, ou com o Affirmative action do outro lado do Atlântico que entrou em desuso depois do 11 de setembro. As minorias, a começar pelas muçulmanas, sentiram-se obrigadas a exceder-se em zelo cívico. E o Homem proferiu o slogan “America First”, como única palavra de ordem.
          Seja como for, temos de continuar a acreditar no estado de direito, nos juízes e na comunicação social. Cuidado com a opinião pública. É preciso ter em conta que a opinião pública é muito versátil e traiçoeira. Não nos devemos deixar levar pelas delícias do Carpe diem. Uma coisa é o Homem, outra é o país. Podemos não estar a gostar do governante, e ainda assim apreciarmos uma democracia com “checks and balances”, a quinta essência da democracia. Com esta atitude não somos obrigados a ter de ser pró-americanos. E também não vejo necessidade de neste momento sermos antiamericanos primários.
          Como sabemos que nem sempre conseguimos saber a verdade do que acontece pela mera aparência dos factos, necessitamos de criar grelhas interpretativas. Portanto, se queremos saber o que se passa em todo o planeta, que agora não é mais do que uma aldeia global, não nos podemos abster de usar essas grelhas interpretativas. Porque mais tarde ou mais cedo também servirão para ajudar a tomar as melhores decisões que têm mais diretamente a ver com as nossas próprias vidas. Não reagir também é uma escolha, embora quase nunca a melhor. Temos de estar sempre a escolher valores para que a nossa vida possa fazer sentido com a maior dignidade possível. É claro que qualquer decisão pode umas vezes ser boa, e outras vezes má. Vai depender dos critérios que, num determinado contexto, conforme as circunstâncias, utilizemos para conhecer a realidade. Realidade essa que é um enigma, envolvida num grande mistério.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Intuição versus Racionalidade


          É por intuição e não por razão que vemos o mundo muito mais arrumado, simples, previsível e coerente, quando na realidade não é. E isto biologicamente tem de ser assim: ilusório. É apaziguador para o nosso espírito ter a ilusão que controlamos o nosso futuro porque conhecemos o nosso passado. Estas ilusões reduzem a ansiedade quando experimentamos por vezes que a vida é incerta e não segura. São reconfortantes.
          É uma sorte ganharmos quando tivemos de arriscar e arriscámos. Mas muitas vezes ficamos com a ilusão que tivemos faro e antevisão para antecipar o sucesso. Alguns lances de sorte podem coroar um político imprudente com uma aura de presciência e ousadia. E as pessoas sensatas que duvidaram deles passam a ser vistas como medíocres e fracas.
          A intuição está preparada para saltar para conclusões a partir de pouca evidência. E não está preparada para conhecer o tamanho dos seus saltos. Para algumas das nossas crenças mais importantes não temos qualquer tipo de evidência, a não ser o facto de as pessoas que amamos e nas quais confiamos possuírem estas crenças.
          Fazendo um recuo até aos finais dos anos 1990, quando comecei a interessar-me mais pela neurociência por causa de António Damásio, dizia-se que nós, seres humanos, comportávamo-nos como se tivéssemos dois cérebros protagonizados pelo hemisfério direito e esquerdo. E dizia-se que o hemisfério direito processava a maior parte das nossas intuições, e o hemisfério esquerdo era o responsável pela nossa racionalidade.
          Hoje sabe-se que as coisas não são bem assim, mas continuam válidos os aforismos, tal como aquele do “faz o que eu digo e não o que eu faço” para ilustrar que o que o Eu faz hora da verdade (O Eu portador da consciência e conhecedor) é o que o nosso hemisfério direito nos dita, apesar da retórica e dos eufemismos que nos chegam do hemisfério esquerdo. Isto, claro, se houver um Eu em qualquer lado, resultante da convergência dos dois hemisférios e que alguns neurocientistas alegaram poder estar no lobo da ínsula, situado profundamente no fundo do sulco lateral. Faz parte do sistema límbico e coordena as emoções. Situa-se sobreposta à zona em que o telencéfalo e o diencéfalo se fundiram aquando do desenvolvimento embrionário. A ínsula pode ser visível se se afastar o opérculo que a envolve na zona do sulco lateral, ou se se retirar parte da zona envolvente. O seu córtex apresenta uma forma triangular com o ápice dirigido antero-inferiormente para abrir na fossa lateral (límen). Existe o opérculo frontal, opérculo temporal e opérculo parietal que correspondem às zonas que cobrem a ínsula.
          Os seres humanos são incorrigivelmente inconsistentes ao fazerem juízos sumários a partir de informação complexa. Quando é pedida para avaliarmos duas vezes a mesma informação, é frequente as respostas serem dadas de modo diferente. Assim, como os juízos que daí resultam não podendo ser fiáveis, também não podem ser previsores válidos seja do que for. Daí que não nos admiremos que os algoritmos sejam melhores que o nosso sistema intuitivo, dado que este, devido à sua extrema dependência contextual, é suscetível de inconsistências alargadas. Algoritmos? Sim, a prática estatística dominante nas ciências sociais é atribuir pesos a diferentes previsores segundo um algoritmo – regressão múltipla – que está agora incorporado no software convencional.
          Ainda hoje é usado em todas as salas de parto o teste de Apgar. O índice de Apgar tem o nome da médica norte-americana Virgínia Apgar, que o adotou para avaliar o índice de vitalidade do recém-nascido nos primeiros minutos após o nascimento. Ao aplicar a pontuação de Apgar , o pessoal das salas de parto tinham uma escala consistente para determinar quais os bebés que estavam com problemas, e assim contribuindo para a redução da mortalidade infantil. Até a anestesista Virgínia Apgar introduzir os seus métodos, os médicos e as parteiras usavam o seu juízo clínico para determinar se um bebé estava em dificuldades. Assim, diferentes praticantes usavam diferentes critérios. Sem um procedimento padronizado, os sinais de perigo eram muitas vezes ignorados e muitos recém-nascidos morriam. Mas durante praticamente a segunda metade do século XX a hostilidade dos médicos aos algoritmos foi total. Estavam claramente sob o domínio de uma ilusão: a ilusão nas suas capacidades e perícia.
          A evidência estatística da inferioridade do “olho clínico” em comparação com as funções algorítmicas veio a mostrar-se esmagadora, contrariando a experiência quotidiana dos clínicos acerca da qualidade dos seus juízos. É claro que isto não significa que seja negligenciável o valor da experiência clínica de muitos anos confirmada pelas provas dadas. A linha entre aquilo que os clínicos podem fazer bem e aquilo que de nenhum modo podem fazer não é óbvia. Mas em geral, as previsões a longo prazo acerca do futuro dos seus pacientes são muito mais difíceis de fazer.
          Hoje em dia já se veem os proponentes da aplicação de algoritmos à medicina, particularmente aos diagnósticos clínicos, afirmarem veementemente que não é ético confiar nos juízos intuitivos dos seres humanos quando estão em causa decisões importantes, uma vez que já há provas irrefutáveis de que os algoritmos disponíveis cometem muito menos erros do que as nossas intuições.
          O mundo é difícil, a culpa não é dos especialistas. Os erros de previsão são inevitáveis porque o mundo é imprevisível. O único erro das pessoas está na elevada confiança na sua subjetividade. Os especialistas são enganados pela forma como os seus cérebros operam para que eles tenham como boas as suas crenças. É claro que as pessoas não são todas iguais quanto ao seu grau de convicção e arrogância. Há aqueles que pensam que sabem uma grande coisa, e inclusivamente constroem teorias acerca do mundo. E a sua confiança na coerência do seu esquema mental é de tal modo que chega a ser retumbante a sua arrogância em relação àqueles que não veem as coisas à sua maneira. Mas, por outro lado, também há aqueles que são mais complexos e profundos nos seus pensamentos ao ponto de muitas vezes ninguém os compreender. São profundamente céticos e nunca acreditam que algo de importante na História tenha sido determinado por um único acontecimento, ou por influência de um único homem. São mais dados a reconhecer que a realidade emerge da interação de muitos agentes e forças diferentes, incluindo o acaso e a necessidade que acabam por dar origem a grandes e imprevisíveis desfechos.

Narrativas falaciosas


          São as histórias falaciosas do passado que muitas vezes moldam as nossas perspetivas do mundo e as nossas expectativas para o futuro. E isto acontece porque nós somos muito sensíveis ao sentido que o mundo e a vida tem de ter. E para tal somos muitas vezes forçados a fazer entorses e enviesamentos aos factos e aos pensamentos para que as coisas se expliquem dentro de um quadro paradigmático de mundivisão. E assim, as histórias explicativas têm de ser simples e mais concretas do que abstratas.
          A mente humana não lida bem com não-explicações. A mente que constrói narrativas acerca do passado é um órgão de criação de sentido. Quando ocorre um acontecimento imprevisto, ajustamos de imediato a nossa perspetiva do mundo, para que se acomode à surpresa. Sabe-se que as nossas memórias estão constantemente a serem revistas e refeitas, e é por isso que não podemos acreditar cem por cento nelas. Essa é uma das limitações da nossa mente, entre outras, claro. Somos imperfeitos a reconstruir estados passados de conhecimento. E é por isso que damos conta de nos enganarmos a nós próprios o tempo todo, pois passamos a vida a acreditar em relatos como verdadeiros, quando na realidade são falsos. Tudo o que contribua para relatos coerentes, nós gostamos. Daí que quando todos foram ultrapassados pela imprevisibilidade dos acontecimentos, há sempre alguém que diz: “Eu bem sabia!”
          O enviesamento da perceção retrospetiva tem efeitos perniciosos nas avaliações dos decisores. Leva os observadores a avaliarem a qualidade de uma decisão, não segundo a solidez do processo, ma por o resultado ter sido bom ou mau. É o que acontece com os médicos, ou os corretores de bolsa, especialmente ingrata porque tomam decisões pelos outros. É por isso que se diz que para o mesmo doente o médico tanto pode ser deus se tudo correr bem, como ser o diabo se tudo correr mal.
          O que conta é o resultado, não se as práticas e as decisões foram boas. As ações que pareciam prudentes, devido ao enviesamento de resultados, recebem uma perceção retrospetiva de irresponsável e negligente. A confiança subjetiva dos corretores é uma sensação, não um juízo. É por confiarem demasiado nas suas intuições e subjetividades que os apelidados gurus falham mais do que acertam. Sabemos que as pessoas conseguem manter uma fé inabalável em qualquer proposição, por muito absurda que seja, quando é defendida por uma comunidade de adeptos, ou fãs. Não é surpreendente, por conseguinte, que uma grande quantidade de indivíduos engajados no mundo das Seitas, de que as seitas religiosas são apenas uma parte, acreditem eles próprios fazerem parte daquilo que biblicamente ficou conhecido como “povo eleito”.
          Uma narrativa, desde que apelativa e coerente nos raciocínios, é suscetível de provocar em nós a ilusão de inevitabilidade. O que contribui para o chamado efeito de aura: as pessoas boas só fazem coisas boas; e as pessoas más só fazem coisas más. O efeito de aura ajuda a manter as narrativas explicativas simples e coerentes. É a nossa tendência para construir e acreditar em narrativas coerentes do passado e dos gurus.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Há aqueles que pensam que poderiam parar as migrações


          Há aqueles que pensam que poderiam parar as migrações. No outono de 2014, a Itália terminou a sua operação de salvamento no Mediterrâneo – uma missão naval sem restrições designada por “Operação Mare Nostrum", que salvou do afogamento mais de 100.000 migrantes nesse ano. Mas os italianos não compreendiam porque deveriam continuar com a Mare Nostrum sozinhos. As pessoas que partem da Líbia e atravessam o Mediterrâneo querem vir para a Europa e não apenas para a Itália. Por isso a Itália esperava que o resto da Europa a ajudasse a salvar as vidas dessas pessoas. Mas o resto da Europa, pelos vistos, não queria ajudar. A ideia na mente dos europeus era que mais salvamentos incentivavam mais migrantes a arriscar a viagem. E isso conduzia assim a mais mortes trágicas e desnecessárias.



          Angela Merkel, no seu discurso em Potsdam, 2010, admitiu que falhara a integração dos imigrantes que até àquela data tinham chegado à Alemanha. Em 2010 a Alemanha tinha perto de 50.000 pedidos de asilo. Então se o multiculturalismo não tinha funcionado com aquele número, como poderia funcionar com um número de entradas trinta vezes superior em 2015?
          Por toda a Europa, a vaga de migração de 2015 acumulou ainda um maior número de pessoas num modelo que todos os líderes políticos da altura tinham já admitido ter sido um fracasso. Em determinada altura da crise Merkel perguntara a Benjamin Netanyahu como é que Israel conseguira absorver tanta gente e manter um país assinalavelmente unido? O primeiro-ministro de Israel poderia ter outras respostas para dar, mas por razões de ordem diplomática deu a seguinte resposta: Israel tinha a vantagem de quase todos os chegados ao país ao longo de décadas terem na sua herança um elo comum – a herança judaica. Ao passo que a Alemanha teria de reconhecer que nem todas as pessoas que deixaram entrar, durante 2015, eram luteranas.
          Em 2015, o presidente da câmara da cidade de Gosler, na Baixa Saxónia, disse a Merkel que a sua cidade acolheria migrantes de “braços abertos”. Gosler estava a envelhecer ano após ano e a perder população. Na última década a população havia passado de 50.000 para 4.000. Os migrantes, disse ele, “iriam dar um futuro à cidade”. Para ele, era uma política sensata substituir em grande parte a população de Goslar por uma população totalmente diferente.


          Foi para mim uma surpresa ter descoberto este livro “Late Antiquity” de Peter Brown, 1971, em que é apresentada uma visão muito mais confortável do fim do império romano do ocidente. Este autor define um novo período – “Antiguidade Tardia” – que vai de 200 d.C. a 711 d.C., caracterizado não pela dissolução de metade do império romano, mas por um vibrante debate religioso e cultural. Teve um impacto marcante entre os historiadores, uma vez que “declínio” foi substituído por “transformação” e “acomodação”. Isto sugere que Roma continuou a viver algo diferente, mas não necessariamente para pior. Com a palavra “acomodação” Peter Brown explica como povos de fora do império vieram viver dentro dele e governá-lo. Vagas de povos germânicos, amantes da liberdade, que trouxeram uma infusão de sangue novo, germânico, a um império decadente. Devastaram Roma, é verdade, mas eram gigantes do Norte que traziam uma vida nova para uma Itália moribunda. Tenho para mim que com a queda do império romano do ocidente se foi a Arte e a Filosofia, bem como os esgotos decentes e a água potável. A Roma Antiga tinha 12 aquedutos trazendo água para a cidade através de canais com mais de 100 quilómetros de comprimento. Quanto à Arte Arquitetónica é quase impossível beneficiar o inventário, e muito difícil não ficar impressionado. Por exemplo, as 16 colunas que formam o pórtico do Panteão são monólitos maciços, cada um com 14 metros de altura, laboriosamente extraídos de uma pedreira no leste do Egito, e deslocadas à força de braços para o Nilo, e daí trazidos por via marítima para a capital do império.


          Mas a surpresa ainda foi maior quando li declarações de Fredrik Reinfeldt, na imagem acima, primeiro-ministro sueco de 2006 a 2014, e líder do Partido Moderado entre 2003 e 2015: “. . . temos de dissolver o povo e eleger outro, porque apenas surge barbárie do interior de países como o nosso, enquanto do exterior apenas surgem coisas boas”. Na última metade do século XX, quando se estabeleceu uma nova Europa ocidental pacífica, as opiniões sobre os invasores suavizaram-se gradualmente e tornaram-se mais positivas. E alguns historiadores, como é o caso de Peter Brown, foram muito mais longe afirmando que os povos germânicos beneficiaram de uma mudança na política militar romana que optou por acomodá-los no império através de uma engenhosa tática. Em troca dos ataques sistemáticos que os “bárbaros” faziam ao longo das linhas fronteiriças do Reno e Danúbio, guardavam as suas energias para apoiar o poder romano nas várias frentes, tanto a oriente como a ocidente. Com efeito, tornaram-se a força de defesa romana. Roma realmente caiu, mas só porque tinha voluntariamente delegado o seu próprio poder, não porque tivesse sido invadida com êxito. Mas no final o que se verificou foi que, com a compra de apoio militar vindo do estrangeiro, Roma perdeu o controlo do império. Em 476, o pequeno imperador Rómulo Augústulo foi deposto, passando o Ocidente a partir daí a ser governado por reis germânicos independentes. Isto porque os godos já por ali andavam há cerca de 75 anos.

Ora, estou convencido que, pelo menos, uma das causas do recrudescimento da extrema-direita xenófoba na Europa se relaciona com o medo crescente que a população europeia está a exprimir perante dois fenómenos simultâneos: o fluxo crescente e maciço para dentro da Europa de pessoas provenientes do mundo islâmico; e o aumento de atentados terroristas mesmo que perpetrados maioritariamente por homens jovens de gente muçulmana a viver há muito tempo na Europa. O medo tem a ver com a tendência de a longo prazo os valores e os costumes que os europeus mais prezam, pelo menos aqueles que resultaram a seguir à Segunda Guerra Mundial, virem a ser dissolvidos e substituídos por outros que representam um atraso civilizacional de vários séculos.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Caso as touradas acabassem . . .


          Tem havido muitos argumentos a favor das touradas, como aquela beleza de espetáculo que os censores querem esconder das crianças com medo que elas gostem.
          Há uma coisa que aficionados, e autores de textos a favor da tauromaquia, não falam: no sofrimento do animal o ser lidado. E todavia, não deve haver nenhum aficionado em qualquer parte do mundo que consiga, com honestidade intelectual, demonstrar que o animal não sofre, neste caso o touro. Sofrimento esse que não tem nenhuma justificação a não ser a emoção e o prazer de que gosta de ver. Não quero dizer com isto que esse prazer tenha que ser prazer de sadismo. Deixo este aspeto à pronúncia de psicanalistas.
          Penso que ninguém de índole razoável está disposta a admitir a defesa da tortura de animais para divertimento em espetáculos de bilheteira. Porque há limites morais para o modo como podemos tratar os animais.
          O fim das touradas talvez seja possível daqui a uma ou duas gerações a seguir, porque nessa altura já não deve ser possível a existência de aficionados da festa brava. E neste ponto não é necessário ir tão longe como invocar o estatuto moral dos animais. Pois não se trata de traçar uma linha que separe de um lado os que têm importância moral, e os que não têm. Como por exemplo, há quem defenda que todos os seres que têm consciência de si têm direito ao grau mais elevado de proteção moral.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A Democracia e o Poder


Só o poder pode criar o “governo das leis” e só as leis num “estado de direito” podem limitar o poder. Este é considerado segundo a tradição – que podíamos fazê-la recuar até Péricles (492-429), a maior personalidade política desse século de ouro da democracia de Atenas – o melhor enquadramento de um regime democrático.

Até ao início dessa Guerra do Peloponeso (431 a.C. - 404 a.C.) os problemas sociais eram mínimos devido ao equilíbrio e sucesso da democracia ateniense. Em 405 a.C., Esparta venceu Atenas na Guerra do Peloponeso, impondo várias mudanças para impedir a retoma do poder ateniense. Os muros do Porto do Pireu foram demolidos com a entrega de todos os navios. Assim, foi instalado em Atenas o governo dos Trinta Tiranos, um governo oligárquico que ocasionou uma crise no regime democrático. Mas em 403, um exército comandado por Trasíbulo derruba a oligarquia dos Trinta Tiranos. A democracia ateniense foi reestabelecida graças ao exército democrata, constituído inclusive por escravos e metecos.

Então é na década de 380 que Platão publica a República, analisando como o poder funciona e como a Atenas deveria ser governada, muito crítico em relação à Democracia, desqualificando-a. Um regime em que qualquer pessoa livre podia manifestar-se e deliberar na Ágora, não podia ser bom.

Platão tem o pensamento socrático como o melhor para o desenvolvimento do seu sistema político-filosófico crítico à democracia. A postura de Platão seria, portanto, uma radicalização da leitura socrática sobre a democracia. Conforme a visão ética de Sócrates, toda atividade humana deveria ser orientada para o conhecimento (episteme), ou seja, o saber sobre tudo que envolve determinado ofício. Somente a partir do domínio do conhecimento (episteme) é que se alcançaria a excelência ou virtude (areté) no fazer. Com isso, a excelência advém do conhecer o bem relativo à ação que se pretende realizar, o que indicaria que não há, efetivamente, virtude sem conhecimento. Nesse sentido, Platão descreve que para uma cidade ser considerada sábia, é necessário que aqueles que são responsáveis pela vigilância dela, possuam todo o conhecimento acerca da boa vigilância. A ordem moral e o saber orientariam os homens na aplicação da justiça como virtude, que significa que cada indivíduo cumpriria o que deve ser feito dentro da sua função na cidade.

Portanto, na Democracia, a ausência desta motivação e preparação adequada para uma atividade específica acarretava que o poder era apropriado por pessoas amadoras e despreparadas para exercerem as atividades de gerenciamento da pólis. De acordo com Platão, um governo sábio e legítimo seria de responsabilidade dos governantes que se dedicam ao conhecimento (episteme) da organização da cidade e à melhor conduta possível da mesma. O ponto negativo indicado por Platão é que, como no regime democrático não haveria uma divisão entre ricos e pobres da sociedade como na oligarquia, isso acarretaria no aparecimento de todo o tipo de comportamentos, que antes eram impedidos pela rigidez oligárquica. Esta liberdade distorcida, desenfreada e sem limites se resumiria à realização de desejos frívolos e superficiais, instaurando um laxismo e desrespeito às leis e aos indivíduos da cidade.

Mas a hegemonia de Esparta foi curta, tendo-a perdido para Tebas, que despontava como nova soberana da Grécia. Em 360 a.C., Esparta e Atenas uniram-se contra Tebas, ocasionando um enfraquecimento das grandes cidades gregas no final do século IV a.C. Com a divisão política conflituosa, e a dificuldade de se mantarem como centros de polarização política, tanto Esparta como Atenas permitiram a ascensão de outras pólis, sobretudo a hegemonia macedónica, apoderando-se da Grécia. E assim o regime democrático foi destruído para sempre em Atenas.

Então o que é o Poder? À primeira vista o pensamento que nos vem à cabeça é dizer que este Platão devia ter vergonha na cara, quando para nós a Democracia é o melhor dos regimes políticos que alguma vez tenham sido inventados, particularmente a Democracia Antiga de Atenas do tempo de Péricles, paradigma da boa Democracia, a mais perfeita das formas históricas de Democracia. Platão acreditava que o exercício do Poder não era para todos, infelizmente, porque nem todos eram dotados de certas virtudes para o exercício de governar e deliberar sobre os rumos da pólis.

Para Platão o Poder era a força legítima sobre os outros, mas não a dominação. A dominação era ilegítima. E a Democracia era ilegítima porque era a mera dominação da vontade de uma maioria despreparada. Ele acreditava que para fazer leis era preciso saber fazê-las, sabedoria essa que ele apenas reconhecia aos filósofos. Foi daqui que surgiu um cisma entre democratas e filósofos, tendo perdurado até aos dias de hoje.

Em suma, para Platão, as pessoas que eram dotadas do “amor pelo conhecimento”, portanto, eram dignas de comandar as vidas alheias. Para todos os efeitos, era o bem que tinha algo de legítimo para se apropriar do poder. E só a procura do bem e a luta contra o mal faria sentido na vida de um filósofo. Foi com pensamento semelhante que o clero da Idade Média invocou Deus para legitimar a sua fonte de poder. E por ironia, foi também com o mesmo pensamento que os revolucionários da era Moderna invocaram o Povo de que emanava todo o poder para escolher os seus representantes. E para os dias de hoje a Constituição. O poder do deputado legislador, representante do Povo, vem-lhe do Povo. O que não é outra coisa senão Representação Transcendental do Poder no vocabulário platónico.

Para Espinosa e Maquiavel o poder invocado pelo clero não passava de uma qualquer forma de dominação legitimada por Deus. Era preciso uma grande disposição de espírito para ser vitorioso no jogo da dominação. Disposição essa que Maquiavel chamou “virtu”. O poder é algo que se conquista e se mantém com muito esforço. Não é uma dádiva natural. Ter “virtu” é ter conhecimento do que é necessário fazer para se conquistar e manter o poder, e ao mesmo tempo tem que se ser impetuoso o suficiente para levar a cabo o que se sabe ser necessário para tanto. Para Maquiavel, a política é a continuação da guerra por outros meios: mentira, engano, traição e por diante.

Associado ao conceito de Democracia está a ideia excessivamente benévola de cidadão educado para a cidadania investido do poder de eleger os próprios governantes escolhidos de entre os mais sábios, os mais honestos e os mais esclarecidos.