Mohammed Omar, chamado simplesmente de Mulá Omar, foi o líder dos Talibã no Afeganistão e chefe de Estado de facto do país entre 1996 e 2001, quando deu guarida a Osama bin Laden. Nascido numa família pobre, sem ligações políticas, Omar juntou-se aos Mujahideen afegãos na guerra contra a União Soviética. É preciso recordar que o Afeganistão é uma entidade artificial, uma zona tampão criada pelos britânicos há mais de cem anos para deixar os russos à distância. Por outro lado, dividiram os pashtun a meio, uma parte no Afeganistão e outra parte no Paquistão, para os ingleses melhor defenderem os seus interesses na zona do Paquistão.
Mas, pouco se sabe sobre ele e sobre a sua vida. Além do fato de ter perdido um olho durante a guerra contra a União Soviética, relatos de sua aparência física afirmam que Omar era alto, com cerca de 2 metros de altura. Era descrito como tímido e pouco falador. Saiu poucas vezes de Kandahar, e raramente teve contactos com gente de fora. Para a maior parte das necessidades diplomáticas, confiou essa tarefa a Wakil Ahmed Muttawakil. Segundo o governo oficial afegão em Cabul, Omar teria morrido de tuberculose em 2013.
A lição a que me estou a referir, dirige-se aos políticos europeus de esquerda que nos dias que se seguiram ao 11 de setembro defenderam que os autores dos ataques deviam ser perseguidos e tratados como criminosos. A maioria das pessoas de esquerda, nessa altura, não discerniu a dimensão política do terrorismo contemporâneo. Depois de os ânimos de indignação terem serenado em relação ao islão, as pessoas de boa-fé quiseram compreender o islão. O próprio Jürgen Habermas juntou-se a este coro, mas sublinhando que terminara a época pós-moderna do relativismo dos valores, e da ironia à moda de Richard Rorty.
Suponhamos que a grande maioria dos que exprimiram esse desejo não eram racistas em relação aos árabes, mas pessoas que queriam dar uma oportunidade ao islão, compreendê-lo do interior e, desse modo, redimi-lo. Em suma, queriam convencer-se a si próprios da grande força espiritual do islão, para que a própria religião não fosse condenada por crimes terroristas. Era assim a doutrina do relativismo de esquerda, colocando-se na posição do Outro. Mas essa atitude não podia ser apropriada para avaliar as dinâmicas políticas que conduziram à guerra jihadista. O terrorismo atual é simplesmente a contrapartida dessa guerra. A longo prazo, a verdadeira ameaça está noutros atos de terror em massa efetuados por participantes virtuais como se de um jogo de vídeo se tratasse.
A ironia está no facto de o Outro estar disposto a arriscar tudo, quando ao consagrar a sua vida a uma causa transcendente, entrando num combate que poderá implicar a sua própria destruição. Enquanto Nós, gozamos com satisfação uma cultura de saúde material assegurada, esse último homem nietzschiano imerso na estupidez dos prazeres quotidianos. Este é o nosso paradoxo nietzschiano de mestres colonizadores que deu em escravo agarrado à existência sem ter de arriscar a sua pele. É difícil imaginar uma causa, universal que seja, em nome da qual estaríamos dispostos a sacrificar a própria vida.
É claro que sendo o terrorismo uma entidade difusa e espetral, as próprias medidas antiterroristas do Estado estão envolvidas num halo de secretismo, o que só amplia o roteiro para as teorias da conspiração e para a paranoia social generalizada. É certo que os objetos críticos dos chamados cultural studies acabaram por ser ridicularizados pelo poder hegemónico das ciências duras. Os estudos culturais são um ramo das humanidades que se desenvolveram particularmente nos EUA a partir dos anos 1960, no contexto do surgimento do pós-modernismo e multiculturalismo. Um dos principais contribuintes dos estudos culturais em Inglaterra foi Stuart Hall (1932-2014 – sociólogo de origem jamaicana e diretor do Center for Contemporany Cultural Studies (CCCS), localizado na Universidade de Birmingham. Hall, juntamente com Richard Hoggart e Raymond Williams, foi uma das figuras fundadoras da escola de pensamento que hoje é conhecida como estudos culturais britânicos ou a escola Birmingham dos Estudos Culturais. Ele foi presidente da Associação Britânica de Sociologia entre 1995 e 1997.
Portanto, resumindo, temos dois tipos de reação a seguir ao 11 de setembro: a versão patriótica americana, o que se compreende, mas obviamente vã; e a versão de uma certa esquerda multiculturalista que considera que os EUA só tiveram o que mereceram depois do que vinham infligindo aos outros há décadas. Algumas declarações até escandalosas, como a das Torres Gémeas a serem destruídas, qual símbolo fálico à espera de ser castrado. No entanto, quando em Outubro de 2001, o primeiro-ministro italiano – Sílvio Berlusconi – declarou que os direitos do homem e as liberdades fundamentais eram fruto de uma tradição cristã nitidamente superior ao islão, houve muita gente que veio a terreiro dizer que num certo sentido – para consternação da esquerda liberal ocidental – a sua posição era mais pertinente do que as dos outros dirigentes que tratavam a profundeza espiritual do Outro com uma condescendência repugnante e um respeito completamente subserviente.
O que nos espera é muito mais fantástico: o espetro de uma guerra imaterial em que o ataque é invisível e os vírus e os venenos podem estar em toda a parte e em lado nenhum. Nada se passará ao nível da realidade material visível à vista desarmada. O que há de irónico no 11 de setembro é que nesta fase da desmaterialização da realidade para o fluido virtual, o colapso das Torres Gémeas foram o último grito espetacular da arte da guerra do século XX. Perdeu o seu significado porque – uma superpotência em pleno século XXI, bombardear um país desértico e desolado, como é o Afeganistão – não serve de nada quando ao mesmo tempo fica refém de uma rede invisível. Esta foi a grande resposta que o islão deu às grandes corporações multinacionais do capitalismo globalizado.
À laia de apontamento histórico, alguns historiadores dizem que pelo facto de ainda não se ter dado no islão uma espécie de Reforma, como aconteceu no cristianismo com Lutero, o mundo muçulmano está a ver passivamente reemergir a forma mais radical do islamismo – o wahhabismo – incapaz de fazer nada. Mas há outros historiadores que interpretam o fenómeno de forma oposta, dizendo que o equivalente no islamismo, da revolução protestante no cristianismo, já se deu há mais de dois séculos na forma de wahhabismo, onde é hoje a Arábia Saudita. Por conseguinte, esses especialistas consideram que a razão não é essa, para explicar por que os muçulmanos não tenham aderido àquilo a que os cristãos ocidentais chamam de modernidade. Os wahhabitas foram os maiores representantes da pureza e do dogma, razão pela qual se tornaram os maiores opositores a qualquer forma de acomodamento às novas tendências da modernidade ocidental. É assim, uma reação contra a inércia corruptora da tradição.
sexta-feira, 31 de maio de 2019
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Identidades e nacionalismos na Europa
Na Europa o
nacionalismo sobrevive como reflexo do arcaísmo político, conotado com a
direita. Em África, ou na Ásia, a referência “nacionalista” muda de sinal e
consagra os grandes heróis de emancipação colonial. Depois da Segunda Guerra
Mundial o bloco soviético fechou-se na cortina de ferro que só viria a abrir-se
em 1989 com a queda do muro de Berlim. Suprimiu todas as veleidades que
tivessem a ver com a expressão nacionalista e subsumiu-a no internacionalismo
comunista.
A invenção da
nação como forma política original e mesmo vital para o homem moderno é um
fantasma sempre presente no nosso horizonte. Nas próximas eleições para o
Parlamento Europeu, que se realizarão no dia 26 de maio de 2019, vislumbra-se
que possa acontecer uma subida significativa de deputados pertencentes a
partidos da extrema direita e franjas da extrema esquerda que na prática se têm
batido pelo fim da União Europeia. Ora, a EU é um espaço comunitário que
congregou os esforços das pessoas mais bem formadas politicamente para que,
entre outros objetivos, o reflexo nacionalista se tornasse cada vez mais
improvável.
Há razões que podem
explicar o fenómeno do populismo, mas o fenómeno do nacionalismo propriamente
dito aparece como uma espécie de efeito secundário ou colateral ao medo que uma
certa camada populacional europeia, considerada mais pobre, apresenta ao crescente
aumento de migrantes vindos sobretudo do Médio Oriente. São problemas, por
conseguinte, que não radicam diretamente do seio da própria EU, mas da sua
fronteira.
É claro que os
europeus tinham sido despertados para o fenómeno do nacionalismo com a guerra
dos Balcãs no início dos anos 1990. Mas depois de ter passado meses com os
olhos postos em Dubrovnik e Sarajevo, admitiram que era uma anomalia para a
qual não tinham meios para o resolver. E então desistiram, não querendo olhar
mais. Era um absurdo que na cena europeia se estivessem a verificar genocídios
e outras atrocidades em nome do ideal de nação, para não ir mais longe com a
palavra etnicidade. Muitos europeus pensaram que o caso da Jugoslávia teria
pouco a ver com o ressurgimento nacionalista na Europa, cujo exemplo mais
visível era o da Frente Popular em França da família Le Pen, agora com Marine
Le Pen à frente do partido Rassemblement
Nationel a liderar as intenções de voto para o Parlamento Europeu com 22%,
embora pouco à frente do partido REM do presidente Emmanuel Macron.
O nacionalismo,
qualquer que seja a sua versão, é sempre de estrutura ideológica, a máscara de
outra coisa, para tapar sobretudo medos e carências. É possível que o caso da
França tenha sido inflacionado após a reunificação alemã. Caso bem diferente é
o que se passa no Reino Unido com o brexit.
A postura eurocética ou mesmo antieuropeia da Inglaterra é uma idiossincrasia
muito sui generis desde o primeiro
momento da sua entrada. A França, com a posição que a extrema direita assume no
momento, hesita, deprime-se, porque sente que já perdeu aquele fulgor
intelectual e cultural que marcou o segundo e terceiro quartel do século XX na
Europa. A França tentou cavalgar o seu nacionalismo cultural como marca da
identidade cultural europeia. Mas a Europa não é uma nação.
A essência
indigente da Europa, uma espécie de interminável guerra civil, é por assim
dizer a principal causa do estado a que chegou a Europa, insignificante no xadrez
da geopolítica. Paradoxalmente, de continente predador e imperial, mercantil e
revolucionário na ciência, passou agora para o tal estado de indigência. E mais
uma vez paradoxalmente, em termos de darwinismo político e cultural, esse
dinamismo, sem paralelo na história humana conhecida, deveu-se precisamente às
guerras civis internas de europeus contra europeus. Agora, roubando palavras a
Eduardo Lourenço, encontramos uma Europa à procura de si mesma no seu próprio
labirinto.
Continuando na
senda de Eduardo Lourenço, e agora mais focado no perfil identitário da Europa,
encontramos, pelo menos, duas grandes perspetivas em relação ao perfil
identitário da Europa: a perspetiva do Norte; e a perspetiva do Sul.
A Europa do Sul é
uma Europa com traços marcados de uma herança que remonta à Grécia Antiga e ao
Império Romano. A Europa do Norte é uma Europa do “choque”. Choque esse que
resultou da chamada invasão pacífica dos “bárbaros”. A verdadeira Europa é a
que bebeu das águas mediterrânicas a matriz do pensamento grego e leis romanas,
e da sabedoria judaico-cristã. A outra Europa é a Europa da ordem política,
jurídica e administrativa assente na matriz do imperativo categórico, da ética
do dever patrocinado pela graça divina. Esta Europa, a bem dizer, é filha dos
bárbaros na sua intrínseca diversidade e turbulência.
Assim, temos um
Híbrido contruído como Europa: de um lado os bárbaros cristianizados e o seu
choque com Roma; e do outro lado uns nostálgicos reciclados da herança mais ou
menos mítica de uma Grécia e de uma Roma que desapareceram ao fim de muitos
séculos de esplendor e domínio.
Mas a resposta que
se nos impôs, ou melhor, que de mútuo acordo nos comprometemos criar, varrendo
do mundo o tempo das nossas mais profundas inquietações escatológicas, foi a
utopia de uma Europa-nação, com um
estatuto de autonomia política digna de milagre,
na medida em que eram esquecidas para todo o sempre as nações de um outro Tempo,
certamente hegemónicas mas também egoístas.
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Autoconsciência e valores éticos
Como responder à questão: o que nos torna sujeitos éticos, isto é, pessoas? É a pessoa um sujeito racional, consciente e livre? Consciência, racionalidade, liberdade e ética são termos intimamente relacionados e interdependentes. Esclarecer o sentido de um pressupõe que de algum modo se conheça o sentido dos outros. Por exemplo, a racionalidade, pedra de toque da autoconsciência e da ética, não é uma capacidade humana independente de outras dimensões não racionais nem sequer necessariamente conscientes (memória, emoção, etc.), de tal modo que o que nos aparece como produto da nossa racionalidade (princípios éticos, argumentos filosóficos e religiosos, etc.) talvez não seja mais que o afloramento de um campo imenso a que damos pelo nome de inconsciente. O nível do inconsciente tem uma influência muito maior sobre o pensar e o decidir éticos do que aquela que estamos dispostos a aceitar.
Existem poucas coisas em que a sociedade secular acredita com tanto fervor como na instrução escolar. Desde o Iluminismo que a instrução é apresentada como a resposta mais eficaz contra os males da sociedade. Mas as elevadas afirmações feitas em nome da instrução, como as que ouvimos em atos solenes e cerimónias de variadas espécies e feitios, tendem a fazer-nos crer que as universidades não são mais do que meras fábricas de produção de tecnocratas e engenheiros. Aquela ideia de que as escolas têm como tarefa transformar-nos em pessoas melhores, mais sábias e felizes, uma ideia absolutamente quimérica. A aplicação dos académicos nas suas universidades até chega a ser comovente. Independentemente da retórica, o que se passa é que a universidade moderna parece ter muito pouco interesse em ensinar aos alunos quaisquer aptidões emocionais ou éticas, para não falar em como amar os vizinhos e deixar o mundo mais feliz do que quando o encontrou. Mas não há que ter medo da experiência vivida e do autodidatismo através da leitura dos melhores. Só por mera exemplificação menciono nomes como Michel de Montaigne, Lev Tolstoi, George Steiner ou Agostinho da Silva.
A autoconsciência é algo que embora objecto de múltiplas investigações realizadas sobretudo por filósofos, psicólogos e neurobiólogos, continua a constituir uma realidade de difícil compreensão. Ora, o conceito de autoconsciência é essencial para a definição de outros conceitos, como o da liberdade, e este é, por sua vez, um conceito central na definição da ética. Acresce ainda que esta diversidade de conceitos que forma uma complexa rede semântica se torna ainda mais complexa e problemática se considerarmos a diversidade de perspetivas a partir das quais esses conceitos podem ser entendidos. Refiro-me sobretudo às perspetivas filosófica, científica e religiosa, e também à do senso comum. Atualmente, o grande desafio que se nos coloca é o de confrontar e eventualmente harmonizar numa perspetiva interdisciplinar abordagens tão diferentes. É problemática a ligação das imagens de nós mesmos provenientes do senso comum com a conceção científica global do mundo físico, um mundo de quarks sem mente nem significado. Esta hipótese é estranha às ideias da maioria das pessoas.
Muitos cientistas nem sequer querem ouvir falar na nossa interioridade e na perspetiva de primeira pessoa, outra forma de falar da nossa subjetividade. A verdade é que as perspetivas filosóficas sobre os problemas da mente e da consciência evoluíram muito desde os primeiros desenvolvimentos da Inteligência Artificial a partir da segunda metade do século XX. As abordagens que acentuam a dimensão ética são por vezes criticadas por terem sido realizadas à margem dos desenvolvimentos científicos, sobretudo da biologia e das ciências cognitivas, ciências que, numa perspetiva oposta, fazem uma abordagem do ser humano numa linha individualista, caracterizando a identidade pessoal em termos meramente neurobiológicos e de desempenho baseado nas capacidades e competências individuais. Mas o caráter relacional da mente humana é porventura a marca constitutiva mais importante da identidade pessoal do ser humano. Esta abordagem relacional permite repensar as questões éticas de um modo novo, como é o caso, por exemplo, das questões bioéticas.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
Ateísmo e liberdade religiosa
Historicamente, o conceito de religião foi desenvolvido no contexto judaico-cristão e tem ainda a sua aplicação tal como o conceito de ateísmo. Mas fora deste contexto original, religião ou ateísmo podem ser mal interpretados.
Assim, pode ser consensual um certo enunciado de características que, apesar de não terem a pretensão de uma definição – a crença em seres sobrenaturais que de alguma forma são ritualizados em cerimónias centradas em objetos sagrados e formalizados por orações ou preces – sirvam para contextualizar uma conversa quando se pretende falar de religião.
Todavia, argumentando que não se pode definir “religião” em termos de uma crença em Deus, ainda assim para alguns crentes pode ser problemático não se mencionar a palavra “Deus”. Mas a verdade é que, se quisermos ser o mais abrangentes possível, verificamos que para o budismo, o taoísmo/confucionismo e o xintoísmo, apenas para mencionar religiões bem conhecidas e que são professadas por muitos milhões de pessoas, Deus não faz parte dos seus conceitos de religião. Portanto, poderíamos dizer que estas religiões são religiões ateístas.
Bem, é tão controversa a definição de religião que há autores que incluem nesta categoria ideologias humanistas e marxistas. E nesse caso teríamos religiões ateístas propriamente ditas.
Seja como for, quero conduzir esta questão para o caso da liberdade religiosa e para a memória das perseguições religiosas aos ateus, mesmo nos tempos da tolerância Lockiana ou do ecumenismo atual. Devido á ameaça política que os ateus representavam, os governos pré-modernos negavam-lhes qualquer proteção. Apoio filosófico a esta perseguição é abundante no início da filosofia ocidental, por filósofos tão diversos como Platão, Agostinho ou Tomás de Aquino, que achavam legítima a punição do ateísmo por ser um crime contra a sociedade. Argumentavam que os ateus deviam ser excluídos da cultura política, reeducados à força e, em alguns casos, condenados à morte. E Thomas More, um dos primeiros humanistas, descreveu na “Utopia” que a tolerância religiosa se alargaria a todos os residentes exceto os que não acreditavam em Deus ou na imortalidade da alma. Locke, de certo modo, não rompe completamente com os seus antecessores ao recusar conceder aos ateus e agnósticos os mesmos direitos e privilégios políticos e legais de que beneficiavam os seus concidadãos mais devotos. Locke não queria matar ateus, mas também não lhes concedia todos os benefícios da cidadania.
Locke negava a tolerância aos ateus não por causa de não serem tementes a Deus, mas por causa de não se poder confiar neles no cumprimento das suas promessas; nos seus testemunhos sob juramento num tribunal; e a capacidade para governar com lealdade os compromissos com o povo. Os ateus desleais ameaçavam fazer ruir a capacidade dos novos governos liberais para proteger o mundo comercial que estava a desenvolver-se conjuntamente com a estrutura política do liberalismo clássico. Seja qual for a razão de ser que justifique a intolerância perante os ateus, a perseguição jurídica destes era muito comum nos estados liberais do início da época moderna. Por exemplo, na Inglaterra, os ateus continuaram a sofrer impedimentos legais graves até ao fim do século XIX.
Pierre Bayle foi um outro britânico contemporâneo de Locke que escreveu tratados filosóficos muitíssimo disseminados sobre muitos dos temas da tolerância religiosa. Muito enquadrado intelectualmente no Iluminismo, ao contrário de Locke, Bayle argumentou que o governo não deve fazer valer a crença religiosa através da lei, devendo os governos proteger os ateus da pressão por parte dos crentes religiosos. Os governos tinham o dever político de respeitar as decisões individuais sobre questões de fé religiosa. Mesmo indivíduos que tenham chegado à conclusão, que Deus não existe.
Bayle cultivava o espírito do ceticismo que enquadrava o pensamento do mundo moderno. Por conseguinte, nenhuma autoridade política poderia impor através da lei um conjunto particular de preceitos discutíveis e insuscetíveis de prova sobre a existência de Deus. A fonte mais comum da ação jurídica contra os ateus ocorria quando as ideias ateias se expressavam de um modo que ofendia as sensibilidades da cultura religiosa dominante. A Grã-Bretanha, por exemplo, mantém o crime de blasfémia no direito comum. Este crime aplica-se a qualquer publicação que contenha qualquer conteúdo insolente, ultrajante, grosseiro ou grotesco para com os elementos mais sagrados das religiões. Acaba por incidir mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, porque não é por se ser ateu, ou defender ideias ateístas que se é punido. É mais pela forma como se ofende a sensibilidade do crente. Assim, a religião pode ser criticada, como faz Richard Dawkins, mas numa linguagem decente e moderada. O problema com estas leis é serem formuladas de modo muito vago em relação a um certo tipo de linguagem.
Nos Estados Unidos da América, paradoxalmente, as coisas correram de outra maneira. A Constituição e a Carta dos Direitos adotaram as disposições mais amplas que era possível quanto à liberdade religiosa. Thomas Jefferson desempenhou um papel importante no desenvolvimento da liberdade religiosa americana. Jefferson não era ateu, mas tinha ideias muito liberais para o seu tempo. Ele era um deísta, acreditava no deus naturalista, no Grande Arquiteto dos maçons, que não intervinha diretamente nos assuntos humanos.
O paradoxo reside no facto de o país ser constitucionalmente secular e ao mesmo tempo os Presidentes jurarem sobre a Bíblia e sob Deus a sua lealdade com o povo na sua governação. Tal tem resultado na prática uma tendência maior do que nos restantes países ocidentais para abraçar oficialmente a religião, ostracizando assim politicamente os ateus. Atualmente os EUA têm uma das mais elevadas taxas de filiação religiosa evangélica comparado com os restantes países do hemisfério norte do planeta. E o atual presidente reflete diretamente as crenças e preconceitos religiosos que predominam na população em geral. Apesar de contrário à Constituição, o governo dos EUA subscreve a religião abertamente com frequência em muitas das suas declarações oficiais.
Em muitos aspetos, os Europeus enfrenam uma tarefa mais simples do que os Norte-Americanos em relação à liberdade religiosa e em coerência com as suas Constituições. Em contraste, os Norte-Americanos operam numa atmosfera política profundamente hipócrita e contraditória. Por um lado, a Constituição é muito clara e específica quanto à separação da religião do poder político e dos papeis do Estado do ponto de vista administrativo. Mas por outro lado, a cultura política dos EUA está eivada de expressões obrigatórias de devoção religiosa pública, tendo o governo respondido às perspetivas religiosas da população endossando abertamente valores religiosos.Para terminar, uma palavra ainda para o ambiente que se vive a nível académico, sobretudo nos Departamentos de Filosofia, onde se encontram hoje em dia os mais brilhantes filósofos nos seus argumentos a favor do teísmo. Só para mencionar os representantes mais proeminentes da filosofia teísta contemporânea nos EUA escolho Alvin Plantinga – Universidade de Note Dame, South Bend, Indiana; e William Lane Craig – Depois de uma temporada de um ano em Westmont College nos arredores de Santa Bárbara, foi estudar para a Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Estes autores elevaram muito a fasquia no campo dos debates filosóficos contemporâneos sobre religião, com os seus escritos elegantes, incisivos e muitíssimo influentes. Plantinga, nos seus argumentos a favor da fé religiosa, escreve: “É razoável acreditar que Deus existe mesmo que não existam argumentos, razões ou indícios favoráveis à afirmação de que Deus existe.” Plantinga rejeita pura e simplesmente, sequer o desafio de procurar indícios, para além de ter rejeitado a motivação epistemológica fundacionalista subjacente a grande parte da filosofia ocidental.
Assim, pode ser consensual um certo enunciado de características que, apesar de não terem a pretensão de uma definição – a crença em seres sobrenaturais que de alguma forma são ritualizados em cerimónias centradas em objetos sagrados e formalizados por orações ou preces – sirvam para contextualizar uma conversa quando se pretende falar de religião.
Todavia, argumentando que não se pode definir “religião” em termos de uma crença em Deus, ainda assim para alguns crentes pode ser problemático não se mencionar a palavra “Deus”. Mas a verdade é que, se quisermos ser o mais abrangentes possível, verificamos que para o budismo, o taoísmo/confucionismo e o xintoísmo, apenas para mencionar religiões bem conhecidas e que são professadas por muitos milhões de pessoas, Deus não faz parte dos seus conceitos de religião. Portanto, poderíamos dizer que estas religiões são religiões ateístas.
Bem, é tão controversa a definição de religião que há autores que incluem nesta categoria ideologias humanistas e marxistas. E nesse caso teríamos religiões ateístas propriamente ditas.
Seja como for, quero conduzir esta questão para o caso da liberdade religiosa e para a memória das perseguições religiosas aos ateus, mesmo nos tempos da tolerância Lockiana ou do ecumenismo atual. Devido á ameaça política que os ateus representavam, os governos pré-modernos negavam-lhes qualquer proteção. Apoio filosófico a esta perseguição é abundante no início da filosofia ocidental, por filósofos tão diversos como Platão, Agostinho ou Tomás de Aquino, que achavam legítima a punição do ateísmo por ser um crime contra a sociedade. Argumentavam que os ateus deviam ser excluídos da cultura política, reeducados à força e, em alguns casos, condenados à morte. E Thomas More, um dos primeiros humanistas, descreveu na “Utopia” que a tolerância religiosa se alargaria a todos os residentes exceto os que não acreditavam em Deus ou na imortalidade da alma. Locke, de certo modo, não rompe completamente com os seus antecessores ao recusar conceder aos ateus e agnósticos os mesmos direitos e privilégios políticos e legais de que beneficiavam os seus concidadãos mais devotos. Locke não queria matar ateus, mas também não lhes concedia todos os benefícios da cidadania.
Locke negava a tolerância aos ateus não por causa de não serem tementes a Deus, mas por causa de não se poder confiar neles no cumprimento das suas promessas; nos seus testemunhos sob juramento num tribunal; e a capacidade para governar com lealdade os compromissos com o povo. Os ateus desleais ameaçavam fazer ruir a capacidade dos novos governos liberais para proteger o mundo comercial que estava a desenvolver-se conjuntamente com a estrutura política do liberalismo clássico. Seja qual for a razão de ser que justifique a intolerância perante os ateus, a perseguição jurídica destes era muito comum nos estados liberais do início da época moderna. Por exemplo, na Inglaterra, os ateus continuaram a sofrer impedimentos legais graves até ao fim do século XIX.
Pierre Bayle foi um outro britânico contemporâneo de Locke que escreveu tratados filosóficos muitíssimo disseminados sobre muitos dos temas da tolerância religiosa. Muito enquadrado intelectualmente no Iluminismo, ao contrário de Locke, Bayle argumentou que o governo não deve fazer valer a crença religiosa através da lei, devendo os governos proteger os ateus da pressão por parte dos crentes religiosos. Os governos tinham o dever político de respeitar as decisões individuais sobre questões de fé religiosa. Mesmo indivíduos que tenham chegado à conclusão, que Deus não existe.
Bayle cultivava o espírito do ceticismo que enquadrava o pensamento do mundo moderno. Por conseguinte, nenhuma autoridade política poderia impor através da lei um conjunto particular de preceitos discutíveis e insuscetíveis de prova sobre a existência de Deus. A fonte mais comum da ação jurídica contra os ateus ocorria quando as ideias ateias se expressavam de um modo que ofendia as sensibilidades da cultura religiosa dominante. A Grã-Bretanha, por exemplo, mantém o crime de blasfémia no direito comum. Este crime aplica-se a qualquer publicação que contenha qualquer conteúdo insolente, ultrajante, grosseiro ou grotesco para com os elementos mais sagrados das religiões. Acaba por incidir mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, porque não é por se ser ateu, ou defender ideias ateístas que se é punido. É mais pela forma como se ofende a sensibilidade do crente. Assim, a religião pode ser criticada, como faz Richard Dawkins, mas numa linguagem decente e moderada. O problema com estas leis é serem formuladas de modo muito vago em relação a um certo tipo de linguagem.
Nos Estados Unidos da América, paradoxalmente, as coisas correram de outra maneira. A Constituição e a Carta dos Direitos adotaram as disposições mais amplas que era possível quanto à liberdade religiosa. Thomas Jefferson desempenhou um papel importante no desenvolvimento da liberdade religiosa americana. Jefferson não era ateu, mas tinha ideias muito liberais para o seu tempo. Ele era um deísta, acreditava no deus naturalista, no Grande Arquiteto dos maçons, que não intervinha diretamente nos assuntos humanos.
O paradoxo reside no facto de o país ser constitucionalmente secular e ao mesmo tempo os Presidentes jurarem sobre a Bíblia e sob Deus a sua lealdade com o povo na sua governação. Tal tem resultado na prática uma tendência maior do que nos restantes países ocidentais para abraçar oficialmente a religião, ostracizando assim politicamente os ateus. Atualmente os EUA têm uma das mais elevadas taxas de filiação religiosa evangélica comparado com os restantes países do hemisfério norte do planeta. E o atual presidente reflete diretamente as crenças e preconceitos religiosos que predominam na população em geral. Apesar de contrário à Constituição, o governo dos EUA subscreve a religião abertamente com frequência em muitas das suas declarações oficiais.
Em muitos aspetos, os Europeus enfrenam uma tarefa mais simples do que os Norte-Americanos em relação à liberdade religiosa e em coerência com as suas Constituições. Em contraste, os Norte-Americanos operam numa atmosfera política profundamente hipócrita e contraditória. Por um lado, a Constituição é muito clara e específica quanto à separação da religião do poder político e dos papeis do Estado do ponto de vista administrativo. Mas por outro lado, a cultura política dos EUA está eivada de expressões obrigatórias de devoção religiosa pública, tendo o governo respondido às perspetivas religiosas da população endossando abertamente valores religiosos.Para terminar, uma palavra ainda para o ambiente que se vive a nível académico, sobretudo nos Departamentos de Filosofia, onde se encontram hoje em dia os mais brilhantes filósofos nos seus argumentos a favor do teísmo. Só para mencionar os representantes mais proeminentes da filosofia teísta contemporânea nos EUA escolho Alvin Plantinga – Universidade de Note Dame, South Bend, Indiana; e William Lane Craig – Depois de uma temporada de um ano em Westmont College nos arredores de Santa Bárbara, foi estudar para a Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Estes autores elevaram muito a fasquia no campo dos debates filosóficos contemporâneos sobre religião, com os seus escritos elegantes, incisivos e muitíssimo influentes. Plantinga, nos seus argumentos a favor da fé religiosa, escreve: “É razoável acreditar que Deus existe mesmo que não existam argumentos, razões ou indícios favoráveis à afirmação de que Deus existe.” Plantinga rejeita pura e simplesmente, sequer o desafio de procurar indícios, para além de ter rejeitado a motivação epistemológica fundacionalista subjacente a grande parte da filosofia ocidental.
quarta-feira, 15 de maio de 2019
Religiosidades
Tudo começa com os
rituais funerários, suspeitando-se que já há 60.000 anos os Neandertais
ritualizavam a memória dos seus mortos. Há efetivamente no homo sapiens um
sentido de transcendência, sentido
esse que é sobrenatural, identificado com o nome de espiritualidade, indefinível, ora de um Eu fugidio, ora de um Deus omnipresente,
algo maior acima de nós. É o nível da autodeterminação aberta ao infinito numa
relação transcendente que os meios científicos não conseguiram ainda compreender.
É ainda difícil uma aproximação científica de tipo experimental e analisável de
forma independente, na perspetiva de terceira pessoa. De que maneira se
relaciona essa qualquer coisa com o corpo, e em particular com o cérebro, está
ainda por compreender.
Depois, no
despertar da consciência moral, surgiu a cultura há 30.000 anos tendo deixado
vestígios em pinturas rupestres, pedaços de osso trabalhados, estatuetas
relacionadas com a fertilidade, ídolos domésticos e antigas práticas
funerárias. Só mais tarde, no dealbar da agricultura neolítica, encontramos as
primeiras ressonâncias da mitologia. Desenvolve-se a mente criadora de mitos,
comum às culturas que a partir do fim da era glacial apareceram em todo o lado.
Portanto, desenvolveu-se no cérebro humano a fonte do imaginário, dos mitos e da
religiosidade que é comum ao sapiens de todos os tempos e lugares. O tal inconsciente que se mostra através das
emoções. E para o perceber das duas uma: ou procuramos as suas pistas
subliminares por investigações neuropsicológicas; ou as captamos por um
qualquer sexto sentido, que não é adquirido, mas inato, através de uma panóplia
de sinais discretos numa nuvem enigmaticamente fugidia. A dimensão da
transcendência humana não se faz representar apenas na Religião. Com igual grau de importância e necessidade se faz
representar na Arte. Que nada tem a
ver com aquilo que se designa por instinto.
Filosoficamente
falando, enquanto o instinto remete
para a imanência ontológica, o espírito remete para a transcendência ontológica. É o sentido
psicossomático que traduz o imanente, objeto da Psicologia e da Psicoterapia. É
o sentido religioso que traduz o transcendente. A angústia existencial, como é
da esfera espiritual, não é resolúvel pela abordagem psicológica consciente,
mas por uma atitude que classificamos de filosófica.
Na modernidade
tardia ou pós-moderna ocidental vivemos uma racionalidade que preconiza uma
religião sem Deus. Vivemos num mundo secularizado, um mundo predominantemente
de ateus e agnósticos, em que as pessoas continuam à procura de um sentido, mas
sem fé em Deus. É um tempo de Igrejas a afundarem as suas instituições, num mar
de escândalos sexuais e corrupção financeira.
Tudo se desencadeou nos finais da década de 1960 em que os jovens estudantes acreditaram na ideia utópica que era possível mudar o mundo através do amor livre. Na Califórnia as universidades fervilhavam em grupos políticos de esquerda que se manifestavam contra a guerra. Viviam-se as atrocidades da Guerra do Vietname. Em Paris dá-se uma nova forma de revolução que foi para a história como “O Maio de 68”. Na China Mao Tsé-tung havia encetado em 1966 uma Revolução Cultural com uma profunda campanha político-ideológica que cativou os jovens universitários de Paris.
Mas quando
entrámos nos primeiros anos da década de 1980 todos os centros de estratégia
política se tinham transformado em lugares de meditação importados da Índia e
da China. O zen e o taoismo passam a ser a “moda que está a dar” no Norte da
América e no Oeste da Europa, e a meditação transcendental na América do Sul. E
as livrarias já se enchiam de livros de autoajuda, esoterismo e misticismo. E
agora, inícios do século XXI, o que está a dar, sobretudo nos Estados Unidos da
América, são os Evangélicos com um fortíssimo assento neocapitalista.
Filósofos como
Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Jean-Luc Marion e Gianni Vattimo – com
o novo conceito de teologia desconstrutiva ou negativa, deixaram uma porta
aberta para a religião, mas para uma religião sem Deus. Derrida via que os
“três caminhos religiosos de vida” do Pseudo-Dionísio (+/- 500 d.C.) conduzia à
ideia de que o pensamento humano da transcendência desembocava em última
análise numa aporia interrompida pelo Nada absoluto. Mas para Marion, pelo
contrário, o pensamento humano sobre a transcendência leva a deixar-se
submergir por uma plenitude divina inexprimível, inacessível ao conceito, e que
não é possível nem anexar nem manipular.
O Ocidente conhece
uma metafísica da pessoa para a qual a divindade tem pelo menos traços
“pessoais” como a consciência e o amor. Mas o Oriente, pelo contrário, a
absoluta transcendência não tem nada a ver com o Si. E por isso não se põe a
questão da revelação nem da oração nos termos das religiões monoteístas ditas
do Livro. Todos os nossos conceitos não são adequados para exprimir coisas
divinas, incluindo os que utilizamos em relação a Deus. Todos os nossos
conceitos e imagens de Deus são, sem nenhuma exceção, invenções e produções
humanas. Mas as manifestações do divino em si não. Daí as religiões orientais
falarem de nirvana, anatman (vazio) e
mesmo de nada.
Para todos os que sofrem, a natureza da comunidade crente exige que a Igreja tome uma forma humana credível, tanto masculina como feminina, e que ofereça uma tradução da sua mensagem evangélica mais próxima do humano e mais criticamente adaptada ao pensamento contemporâneo. A coerência ética e a credibilidade da fé são assim os pressupostos mais importantes. A experiência de contradição da nossa humanidade cristã e do nosso cristianismo inumano é superabundante: ódio xenófobo; nacionalismo fanático; fanatismo ideológico na guerra santa; violação de crianças; e desigualdades sociais e de género.
Há já vários anos
que há médicos sem fronteiras, trabalhadores sociais sem fronteiras e toda a
espécie de voluntários sem fronteiras. Os tempos mudam sempre e hoje é a
humanidade cristã que mais uma vez está em jogo. Estamos de novo perante novas
escolhas. De que escolhas estou a falar?
Bem, situo a
questão na Europa da União Europeia, que presentemente tem problemas em várias
frentes. E no que concerne à religião, deveria ser escolhida a conceção de uma
Europa enquadrada pelos valores do “pluralismo religioso”, que inclui a
laicidade e o ateísmo, em vez dos valores exclusivos do laicismo.
Não há
determinação do ethos europeu sem memória histórica. Certamente a democracia
radica no consenso, mas o ethos da democracia radica na memória. Parece que a
Europa perdeu a sua memória pura e simplesmente, como se se tivesse tornado
vítima daquela amnésia cultural progressiva, que aparentemente muitos europeus
consideram ser o progresso autêntico.
A singularidade cósmica
As respostas que
os cosmólogos e os astrofísicos nos dão às perguntas que lhes fazemos acerca do
Universo, são respostas conjeturais apenas ao como e não ao porquê. A cosmovisão
atual dos cientistas não se mete por nenhuma tese meta-científica. O raciocínio
metafísico e teológico faz-se por outras vias. No entanto, ainda existem
resquícios do deísmo, em que o Genial
Arquiteto no início dos tempos criou o mundo como uma máquina perfeita que
agora marcha por si mesma, enquanto Ele se retirou não se sabe bem para onde.
Deus no céu atento ao mundo, passivo, atuando só de vez em quando para fazer um
milagre ou outro, movido por petições e sacrifícios, pedidos diretamente pelos
seus fiéis, ou por recomendação dos santos e santas. O deísmo é a conceção que os filósofos e os cientistas do Iluminismo
abraçaram, agora guardada preferencialmente pela Maçonaria. Uma conceção de
Deus em tudo idêntica à anterior, mas que nega a providência divina e, por
consequência, a sua intervenção no mundo. Nesta conceção, Deus é uma espécie de
relojoeiro, que fez o mundo e o abandonou à sua sorte. Mas o porquê do
aparecimento do mundo, muito menos o para quê, para isso não contem connosco.
Por contingência, tudo até poderia nunca ter existido.
Se antes de Kant
as provas da existência de Deus tinham um caráter cosmológico, a partir de Kant
sofreu uma viragem antropológica, marcada por uma intensa emergência de
subjetividade. Quer dizer, se antes a contingência se descobria sobretudo na
observação do cosmos, hoje a contingência remete prioritariamente para a
realidade humana.
A nível filosófico
continua a ser possível tanto uma interpretação ateísta como teísta do
big-bang. Esta teoria foi muito saudada pelas autoridades religiosas do
Vaticano. Mais controversa é a finalidade no mundo, quando se tenta traduzir
acaso e necessidade no mundo. Hoje é muito mais difícil uma cosmovisão circular
de um mundo de matéria eterna. Hoje é a complexidade imensa de uma evolução que
nasce de uma imensa explosão de energia incalculável. Como é que a ordem pode ser fruto da matéria
abandonada a si mesma contrariando a entropia?
Não sabemos.
De todas as crenças religiosas, a principal é a crença
em Deus e, por isso, de um modo geral, os problemas mais importantes
investigados pelos filósofos da religião estão relacionados com essa crença.
Esses problemas são os que dizem respeito à existência, à natureza e à atividade
de Deus. As grandes religiões monoteístas ocidentais ― o judaísmo, o islamismo
e o cristianismo ― partilham uma conceção da natureza de Deus a que normalmente
se chama teísta. De acordo com esta conceção, Deus é um ser pessoal,
espiritual, sumamente sábio, sumamente bom e sumamente poderoso, que criou o
mundo para o homem, que intervém no mundo por intermédio de milagres e
profecias e que, graças à sua providência, protege o homem.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Cientistas, filósofos e teólogos: diálogo ou disputa entre trincheiras?
Nem cientistas, ainda
que Prémios Nobel no seu campo, nem teólogos se devem arrogar a superioridades
intelectuais para estancarem qualquer tipo de diálogo. Todos temos a ganhar com
o intercâmbio de ideias entre diferentes maneiras de ver o mundo. No caminho
que foi feito na Europa em direção à secularização, há uma história lamentável na
luta pelo prestígio e pelo poder que se tem travado sobretudo entre os campos
científico e teológico. Quem o diz, é Jürgen Habermas na sua “Razão
Comunicativa”.
Em primeiro lugar, teologia não é a mesma coisa que filosofia
da religião, nem ciência das religiões. A teologia é o estudo sistemático do
conjunto de crenças, tanto reveladas como racionalizadas, de uma religião
específica, com o objetivo de dar forma e coerência a uma determinada doutrina.
Embora teologia não seja exatamente o mesmo que apologética religiosa, isto é,
que defenda a crenças numa dada religião, está muito próxima dela. Ora, de
acordo com o que acabámos de dizer, há duas razões que impedem a teologia de se
identificar com a filosofia da religião. A primeira é que a filosofia da
religião não é uma apologética religiosa. O género de estudo que se faz em
filosofia da religião é independente de qualquer religião particular. A segunda
é que a filosofia da religião não faz qualquer apelo à revelação.
A filosofia da religião também não se confunde com a
psicologia da religião. Podemos dizer que, em geral, a psicologia é o estudo
dos processos mentais e dos comportamentos humanos. Por conseguinte, a
psicologia da religião é o estudo dos processos mentais e dos comportamentos
associados com a religião. Em psicologia da religião estuda-se, por exemplo, os
fenómenos da conversão ou da experiência mística, com o objetivo de formular
teorias que expliquem os processos mentais a eles ligados. Num sentido
diferente, a psicologia da religião também pode ser entendida como a busca das
causas psicológicas das crenças religiosas. Um dos primeiros a fazer psicologia
da religião neste sentido da palavra foi David Hume, no século XVIII, com a
obra História Natural da Religião. A filosofia da religião também
não é sociologia da religião. A sociologia é uma ciência que estuda as
sociedades humanas, as suas instituições, comunidades, populações, grupos,
etc., e procura determinar como interagem e evoluem. Assim, a sociologia da
religião estuda as instituições e comunidades religiosas e procura compreender
a sua distribuição e influência nos diferentes sectores da sociedade. Por muito
interessante e importante que este estudo possa ser, é muito diferente do
estudo efetuado em filosofia da religião.
Quando Derrida descreveu a différance
como sendo, em si, nem uma palavra nem um conceito, mas a condição de
possibilidade quase transcendente das palavras e dos conceitos, isso pareceu-se
bastante com o deus absconditus da
teologia negativa. Derrida fazia questão de dizer de si mesmo que era “justamente
considerado um ateu”, porque em bom rigor não tinha maneira de saber se o era
realmente. Daí que muitos dos seus pares na Academia achassem que Derrida era
um teólogo negativo. Para Derrida,
sendo um filósofo de esquerda conotado com o pós-modernismo pós década de 60 do século XX, Deus não é um ser lá
em cima, nem algo fora da mente humana. A transcendência
metafísica está para lá da linguagem de um sujeito humano autónomo. O
cristianismo é apenas uma história construída com imagens no próprio chão do
nosso ser, que agora, nesta era pós-moderna, precisa de ser desconstruída pela
filosofia.
Mark C. Taylor em: “Erring: An A/theology, 1984” – o livro que foi para
muitos leitores a primeira inserção da obra de Derrida na teologia, descreve a
desconstrução como a “hermenêutica da morte de Deus”, querendo dizer não a a
dialética modernista preto-ou-branco, mas a indecidibilidade matizada do
“a/teológico”, na qual se atrapalha a distinção clara entre o teísta e o
ateísta. Tomado em termos estritamente filosóficos, o pós-modernismo é uma
tentativa persistente de deslocar uma oposição categorial fixa entre teísmo e
ateísmo. Os pós-modernistas identificam as maneiras como estes opostos dependem
de uma estrutura comum.
Slavoj Zizek, um filósofo marxista/lacaniano, queixa-se que o
pós-modernismo é um tipo de permissividade no qual tudo é possível,
inclusivamente o regresso da religião sob a designação de políticas da
identidade, correção política – não apenas a religião fundamentalista e a
religião Nova Era, mas até a religião sem religião.
Temos várias vozes dentro da cabeça de um eu que diz eu acredito; ou eu não acredito. Há um inconsciente que
fala, de modo que nunca alcançamos esse tipo de identidade própria de um si transparente. Nunca sabemos até que
ponto a nossa crença ou descrença é uma forma disfarçada do seu oposto ou de
uma terceira coisa. Não temos maneira de monitorizar a verdadeira distância
entre um ateu que afirma a justiça por
vir e um crente religioso que afirma o advento de uma era messiânica. As
palavras teísmo e ateísmo são demasiado simplistas para
descrever o que se passa.
Para a teologia, a oportunidade autêntica não reside
num aproveitamento apologético que tenta fazer com que os conteúdos
científicos, enquanto tais, tenham uma tradução religiosa. O que deve fazer é a
sua interpretação, ou seja, o seu trabalho hermenêutico no que respeita às suas
implicações filosóficas na inteleção do Mistério. A chave para a compreensão
última da realidade. Trata-se, pois, de uma interpretação que se apoia na
convicção e na descoberta de uma presença
não visível, mas implicada no que se vê. Nunca é demais recordar que a religião
não é algo caído do nada, pois resulta de um processo que é inerente à condição
humana, e como tal suscetível de tocar qualquer um. Não, claro está, no sentido
de que tenha de convencer a todos, mas na revelação do seu modo de
interpretação.
Por seu lado a
ciência está no seu direito de exigir provas, e que nada aceita sem a correspondente
verificação ou falsificação, salvo as devidas distâncias para tudo aquilo que
por definição transcende o físico e o empírico. Aliás a ciência está hoje em
boa posição para pensar assim, pois tem boa experiência dos seus limites
intrinsecamente marcados pelas advertências feitas pelos métodos da
Fenomenologia Husserliana.
Uma crença muito difundida é a que identifica a
filosofia da religião com a fenomenologia da religião. A fenomenologia da
religião é a tentativa, por um lado, de descrever os fenómenos religiosos de
modo a revelar as crenças e atitudes dos crentes e, por outro, de classificar
as atividades, as crenças e as instituições religiosas. Inclui-se neste estudo
a compreensão das categorias de sagrado e profano, assim como as relações dos
crentes com os objetos que se incluem nestas categorias. Uma vez mais, este é
certamente um estudo muito interessante, mas também não é filosofia da
religião. A filosofia da religião é apenas a busca da justificação racional das
nossas crenças religiosas.
segunda-feira, 13 de maio de 2019
Como é que se gerou a religião a partir do nada?
O Semanário
Expresso desta última semana apresenta um estudo em que nos últimos 15 anos
foram admitidos 853 grupos religiosos pelo Instituto de Registos Notariais, 97
nos últimos cinco anos. E ao mesmo tempo que ainda vemos peregrinos a
deslocarem-se no 13 de maio a Fátima, as pessoas sem religião continuam a
aumentar. A diversificação religiosa está a fazer o seu caminho em Portugal,
embora 90% sejam Igrejas Evangélicas.
A religião ainda
hoje toma conta das respostas para aquelas perguntas que vão resistindo à nossa
capacidade de as desmentir pela evidência científica. Lacunas que constituem
para alguns crentes uma espécie de seguro de vida, no momento em que, apesar de
a religião católica não estar a gozar de muita boa saúde. Se alguém rezar
pedindo a Deus para que uma doença sua ou de um familiar próximo cure, e por
fim isso não acontecer, algumas pessoas até podem perder a sua fé por falta de
credibilidade das suas rezas. Mas o que é mais frequente acontecer é arranjar
explicações para o falhanço ser humano, talvez quem rezou, ou a pessoa doente,
tenha feito algo terrivelmente errado. O que é notícia é o milagre, ainda que
seja contemplado apenas um por cada cem mil pedidos.
Alguns
antropólogos preferem inverter a pergunta, achando estranho que haja ateus, uma
vez que a religiosidade é uma característica intrínseca à espécie humana. O que
carece de explicação não é a fé religiosa, mas sim a sua ausência.
Uma hipótese é a
religião ter surgido na altura em que o género homo – de que não apenas faz parte a espécie sapiens (nós), mas pelo menos mais cinco, das quais o homem de Neandertal é a espécie mais conhecida – organizado
em sociedades de caçadores-recolectores começou a fazer perguntas, ainda que de
forma ainda muito rudimentar, sobre a morte e outros fenómenos muito
surpreendentes como tremores de terra, tempestades raios e trovões, e por aí
adiante. Pela última estimativa, os indícios mais antigos de religião datam de
há cerca de 60.000 anos.
O homo sapiens, como o próprio nome
indica, ávido por explicações de tantos acontecimentos, de forma inconsciente e
intuitiva construiu um corpo de explicações a que hoje chamamos religião. Explicações, por exemplo,
acerca do princípio e o fim de todas as coisas. Os escritos bíblicos, para dar
outro exemplo, fala-nos dos fins dos tempos e do mundo em termos apocalípticos.
Bem, a religião e
a religiosidade são um fenómeno que ao longo da história da humanidade, apesar
de ter estado sempre presente em todo o tempo e lugar, e ter contribuído para
muita salvação, também tem dado muitas dores de cabeça a todos aqueles que na
margem da estrada foram considerados hereges ou infiéis.
Tendo como boa, a
ideia de que temos um mundo interno, que é o mesmo que nos é revelado nos
sonhos, em situações limite – seja numa calamidade por ação dos elementos
físicos, seja por uma convulsão de ordem emocional – esse mundo interno sobrepõe-se
à razão e subjuga-a de forma a que seja a religiosidade inata a tomar as rédeas
da sua conduta.
Os povos que
formaram as primeiras civilizações desenvolveram mitos. Ao longo do tempo, à medida que que as suas aldeias se
tornavam cidades e se convertiam em Estados, os mitos transformaram-se em histórias complexas e interligadas, que
formaram a base de intrincados sistemas de crenças com os seus rituais
organizadores centrais das culturas. E assi chegámos às religiões. É o cariz sagrado dos mitos que os separa dos outros tipos de histórias, tais como lendas e contos populares.
Chamo a atenção
para a distinção entre mitos, lendas, fábulas e contos populares. As lendas
relatam histórias com algum fundamento em acontecimentos humanos significativos,
mas não divinos, que foram adulterados e fantasiados de geração em geração
desde tempos ancestrais. Os mitos antigos que formataram a nossa cultura, principalmente
gregos e egípcios, mas também célticos, apresentam um panteão de divindades,
que apesar de padecerem do mesmo tipo de idiossincrasias que os humanos, possuíam
de uma aura sobrenatural, portanto divina, porque eram eles que controlavam os
acontecimentos do mundo natural. Em alguns casos os mitos e as lendas fundem-se
para dar lugar a alegorias religiosas. Mitos e deuses criados à imagem humana.
Um dos arquétipos universais mais difundido em mitos e lendas é o do dragão,
símbolo do mal e do caos que se encontra em todas as civilizações e culturas –
esculturas em osso nos inuítes, pergaminhos chineses, e por aí fora como nas
várias civilizações que ocorreram nas margens mediterrânicas e do Médio
Oriente.
É difícil afirmar
o que surgiu primeiro – o ritual ou o mito. Quando é que o mito se transforma em
religião? E qual é a diferença? A questão essencial subjacente é a seguinte: se
os mitos foram outrora criados para responder a perguntas fundamentais e
resolver problemas para lá do controlo dos mortais, quando é que estes mitos se
transformaram em religião? UM sistema organizado de crenças, cerimónias,
práticas e venerações que se podem centrar num Deus ou divindades supremas, ou
em vários deles e divindades. Dos rituais, a oração é a mais comum. E no
cristianismo, no ritual da eucaristia, pão e vinho são transformados no corpo e
no sangue de Cristo. Em suma, um rito de sacrifício que é o acontecimento
central nos rituais do cristianismo, como era em mutas outras religiões do
passado.
sexta-feira, 10 de maio de 2019
Laicidade e religiosidade
A laicidade é um
conceito que resultou da necessidade de separar tudo aquilo que fazia parte da
vida social, incluindo a moralidade e as instituições que não tinham
necessidade do domínio religioso. Filósofos e teólogos da esfera do
cristianismo procuraram entender-se quanto às dicotomias filosófico/teológicas:
religioso/secular; sagrado/profano; espiritual/temporal; eclesiástico/laico.
A doutrina laica no que concerne à moralidade, considera que a moralidade deve-se basear em considerações racionais, tendo em vista o propósito do maior bem-estar de todos neste mundo de forma independente de considerações relativas a Deus ou à vida para além da morte. E as instituições públicas, em especial as dedicadas à educação universal, devem ter uma orientação baseada em doutrinas laicas e não religiosas.
Ora, a laicidade
foi uma evolução exclusiva do mundo cristão, não do mundo muçulmano. E isto
remete para a doutrina alegadamente propalada pelos seus fundadores: Jesus Cristo
e Maomé. Enquanto o pronunciamento de Jesus Cristo: “A César o que é de César e
a Deus o que é de Deus” dava a entender que era de todo o interesse para a boa
convivialidade a separação entre o poder político e o poder religioso, o mesmo
não o entendeu Maomé, um profeta que apesar de tudo era evolutivamente mais
novo que Jesus. Maomé voltou a recuperar o culto ancestral das formas mais
antigas das religiões do Médio Oriente, do qual fazia parte integral o
determinismo da autoridade do poder político que em última instância remetia
para o poder divino.
Quando o laicismo foi trazido pela Revolução Francesa, num primeiro momento o islamismo viu com bons olhos o laicismo, pois parecia significar o fim do cristianismo. E para o islão isso era bom, porque retirava do seu caminho o infiel. Mas não tardou que os muçulmanos percebessem que tais ideias, que vinham no mesmo pacote das ideias científicas do Iluminismo, poderiam ser ameaçadoras não apenas para o cristianismo, mas também para o islão, e, portanto, passaram a manifestar claramente a sua oposição.
No processo de secularização que se verificou no Ocidente, Deus foi duplamente destronado, quer como fonte de soberania, quer como objeto de veneração. Na atualidade o laicismo enfrenta grandes dificuldades no Médio Oriente, porque personifica o inimigo. A jihad do aqui e agora foi inspirada em Faraj, o guia ideológico do grupo que assassinou o presidente Sadat do Egito em 1981. Na jihad, o sangue dos muçulmanos deve correr até a vitória ser alcançada. Faraj foi um dos líderes fundadores da Jihad islâmica egípcia, no final da década de 1970, um dos mais importantes movimentos islamistas radicais e violentos do mundo islâmico. Considerado culpado do assassinato de Sadat, Faraj foi executado e muitos dos membros do movimento foram forçados a viver no exílio desde o início dos anos 80. Destes, uma parte importante passou pelo Afeganistão e eventualmente integrou a Al-Qaeda, de Osama bin Laden. A seguinte frase é do próprio Faraj: “É nosso dever concentrar-nos na causa islâmica propriamente dita, o que significa primeiro e fundamentalmente estabelecer a lei de Deus na nossa terra e fazer com que a palavra de Deus prevaleça. Não pode haver lugar para dúvidas quanto ao facto de o primeiro campo de batalha da jihad ser extirpar os infiéis da liderança do mundo, e garantir a sua substituição por uma ordem islâmica perfeita. Daí virá a libertação”.
quinta-feira, 9 de maio de 2019
A semiologia dos objetos
Jean Baudrillard, sociólogo, é nome de grande destaque na ensaística francesa. O Sistema dos Objetos vincula a sociologia à semiologia. Volta-se para o mundo da cultura por meio do objeto, estudando-o na sua dupla condição, de instrumento e de signo. Através desse caráter dual (das contradições a ele inerentes) o leitor investiga o que – na incessante multiplicação e consumo de objetos da sociedade contemporânea – lhe escapa de vital e lhe sobra como inércia, trapaça ou fingimento de ação.
Vemos o mundo através de filtros, ainda a TV, mas a perder terreno para a tela dos computadores e smartphones. Interações humanas no mundo físico são agora empurradas de forma impiedosa para o mundo virtual dos dispositivos ligados em rede. Na era da internet, a ordem mundial tem sido muitas vezes equiparada à proposição de que, se as pessoas dispõem da capacidade de aceder e trocar livremente as informações do mundo, o impulso humano natural para a liberdade acabará por se enraizar e se realizar, e a história passará a avançar como se estivesse no piloto automático.
Onde já vai a sabedoria adquirida por transmissão oral de geração para geração através de anos e anos de tentativa e erro e de experiência vivida. E pelo mesmo caminho vai a aquisição do conhecimento a partir de livros. Resta agora apenas Informação – extraída pela Internet, a qual proporciona uma nova forma de vivenciar a realidade – virtual.
Ler é uma atividade que, em termos relativos, consome certo tempo; para facilitar o processo, o estilo é importante. Como não é possível ler todos os livros sobre determinado assunto, muito menos a totalidade dos livros, ou organizar com facilidade tudo o que foi lido, aprender por meio de livros é uma atividade que premia a capacidade que se tem de pensar em termos conceptuais — a aptidão para reconhecer dados e acontecimentos comparáveis e projetar padrões no futuro. E o estilo estimula o leitor a estabelecer uma relação com o autor, ou com o tema, ao fundir substância e estética.
O computador permite o acesso a uma quantidade de dados impensável no mundo dos livros. O estilo não é mais necessário para torná-los acessíveis, nem sua memorização. Ao lidar com uma única decisão separada do seu contexto, o computador oferece instrumentos inimagináveis, mas ele também estreita a perspetiva. Como as informações são tão acessíveis e a comunicação é instantânea, ocorre uma diminuição do foco no seu significado, ou mesmo na definição do que é significativo.
Assim, a manipulação da informação substitui a reflexão. Da mesma maneira, a internet apresenta uma tendência a diminuir a memória histórica. O fenómeno tem sido descrito da seguinte maneira: “As pessoas esquecem itens que acreditam poder obter externamente e se lembram de itens aos quais julgam não ter acesso.” Ao deslocar tantos itens para o domínio do que está disponível, a internet reduz o impulso que nos leva a lembrar deles. A tecnologia das comunicações ameaça diminuir a capacidade do indivíduo para uma busca interior ao aumentar sua confiança na tecnologia como um facilitador e mediador do pensamento.
O que vemos quando a tecnologia incorpora a ciência nos objetos, e se fragmenta em especializações sem fim, o mesmo não acontece nas artes e letras. Que não significa que as artes não evoluam e não mudem. Mas a boa arte, a que alcança a excelência, resiste mais ao desgaste do tempo.
Jean Baudrillard pulveriza com furor as teses de Foucault sobre o fim do Homem, na senda de Nietzsche depois de ter anunciado a morte de Deus. É claro, como ele diz: isto é um simulacro. A realidade virtual suplanta o mundo dos factos e das ações objetivas. Hoje os factos, para serem certificados como realidade, têm de passar pelos ecrãs. Não há realidade sem ecrãs que projetem a realidade na forma de imagens manipuladas. Têm de ser manipuladas. Não há imagens sem manipulação. De outra forma não seriam compreensíveis por quem não tem qualquer perspetiva crítica sobre o que acontece. Porque as pessoas estão domesticadas pela fantasia mediática.
Vemos o mundo através de filtros, ainda a TV, mas a perder terreno para a tela dos computadores e smartphones. Interações humanas no mundo físico são agora empurradas de forma impiedosa para o mundo virtual dos dispositivos ligados em rede. Na era da internet, a ordem mundial tem sido muitas vezes equiparada à proposição de que, se as pessoas dispõem da capacidade de aceder e trocar livremente as informações do mundo, o impulso humano natural para a liberdade acabará por se enraizar e se realizar, e a história passará a avançar como se estivesse no piloto automático.
Onde já vai a sabedoria adquirida por transmissão oral de geração para geração através de anos e anos de tentativa e erro e de experiência vivida. E pelo mesmo caminho vai a aquisição do conhecimento a partir de livros. Resta agora apenas Informação – extraída pela Internet, a qual proporciona uma nova forma de vivenciar a realidade – virtual.
Ler é uma atividade que, em termos relativos, consome certo tempo; para facilitar o processo, o estilo é importante. Como não é possível ler todos os livros sobre determinado assunto, muito menos a totalidade dos livros, ou organizar com facilidade tudo o que foi lido, aprender por meio de livros é uma atividade que premia a capacidade que se tem de pensar em termos conceptuais — a aptidão para reconhecer dados e acontecimentos comparáveis e projetar padrões no futuro. E o estilo estimula o leitor a estabelecer uma relação com o autor, ou com o tema, ao fundir substância e estética.
O computador permite o acesso a uma quantidade de dados impensável no mundo dos livros. O estilo não é mais necessário para torná-los acessíveis, nem sua memorização. Ao lidar com uma única decisão separada do seu contexto, o computador oferece instrumentos inimagináveis, mas ele também estreita a perspetiva. Como as informações são tão acessíveis e a comunicação é instantânea, ocorre uma diminuição do foco no seu significado, ou mesmo na definição do que é significativo.
Assim, a manipulação da informação substitui a reflexão. Da mesma maneira, a internet apresenta uma tendência a diminuir a memória histórica. O fenómeno tem sido descrito da seguinte maneira: “As pessoas esquecem itens que acreditam poder obter externamente e se lembram de itens aos quais julgam não ter acesso.” Ao deslocar tantos itens para o domínio do que está disponível, a internet reduz o impulso que nos leva a lembrar deles. A tecnologia das comunicações ameaça diminuir a capacidade do indivíduo para uma busca interior ao aumentar sua confiança na tecnologia como um facilitador e mediador do pensamento.
O que vemos quando a tecnologia incorpora a ciência nos objetos, e se fragmenta em especializações sem fim, o mesmo não acontece nas artes e letras. Que não significa que as artes não evoluam e não mudem. Mas a boa arte, a que alcança a excelência, resiste mais ao desgaste do tempo.
Jean Baudrillard pulveriza com furor as teses de Foucault sobre o fim do Homem, na senda de Nietzsche depois de ter anunciado a morte de Deus. É claro, como ele diz: isto é um simulacro. A realidade virtual suplanta o mundo dos factos e das ações objetivas. Hoje os factos, para serem certificados como realidade, têm de passar pelos ecrãs. Não há realidade sem ecrãs que projetem a realidade na forma de imagens manipuladas. Têm de ser manipuladas. Não há imagens sem manipulação. De outra forma não seriam compreensíveis por quem não tem qualquer perspetiva crítica sobre o que acontece. Porque as pessoas estão domesticadas pela fantasia mediática.
quarta-feira, 8 de maio de 2019
Lembrando a morte, assim vamos libertando o engenho e a arte de viver
Depois de me ter
confrontado tantas vezes contra a morte de pessoas no meu campo de batalha
médica num hospital fim de linha, ter perdido muitas vezes, e ganhado algumas,
agora penso na morte sem ficar desesperado ou assustado como no tempo do Teatro
Anatómico, nas salas de aula de Anatomia com cadáveres deitados em bancas de
mármore, que estavam guardados em arcas de formol, e ainda no tempo das aulas
de Medicina Legal, no Instituto de Medicina Legal do Porto com o Prof. Pinto da
Costa à frente.
Agora apenas estou
preocupado com a qualidade da vida que ainda vale a pena ser vivida. Nada devo
lamentar, de resto, quando já percorri mais de metade do caminho que me foi
dado para percorrer, sem grandes pedras nem sobressaltos, apenas escapadelas a
algumas armadilhas.
Aquele que
aproveitou cada instante da sua vida para se tornar um ser melhor e contribuir
para a sua felicidade e a dos outros, nada terá de temer, podendo legitimamente
morrer em paz. No fim, deve-se estar feliz como alguém que realizou uma grande
tarefa.
Quando cada um e
nós deixar de existir, é como se tudo deixasse de existir. Podemos, em todo o
caso, enquanto se está são de corpo e mente, preparar o desaparecimento do ego,
aquele grande malandro. Não se deve, porém, esperar o último momento para se
preparar. É assim que o sábio se prepara, que sabe que não tem tempo a perde,
que o tempo é precioso e que seria vão desperdiçá-lo em tolices. Quando chegar
realmente o dia da morte, morre sereno, sem tristeza nem pesar, sem apego ao que
deixa para trás.
Cada pessoa
caminha a partir de um ponto em que se encontra, com uma natureza, disposições
pessoais e diferentes crenças. É preciso ouvir, refletir, meditar e integrar o
que se compreendeu no interior de Si
– bondade, paciência, tolerância… Depois, uma vez serenados os pensamentos, contemplamos
a própria natureza e o sentido da vida. Mergulhados num recolhimento profundo,
na solidão tranquila de um lugar retirado. Retirar-se para a solidão não é
desinteressar-se do destino dos outros, muito pelo contrário. Distanciar-se da
agitação do mundo permite ver as coisas numa perspetiva nova, mais vasta e mais
serena. Aí chegados, a uma nova perceção da realidade, contemplamos mais do que
refletimos intelectualmente a transformação do Si.
Para conseguir
isso não é necessário ir para um mosteiro, ou ir até ao Tibete. Pode ser feito
no dia a dia em qualquer sítio, à escolha de cada um conforme as suas
circunstâncias. O que é preciso é desligar os telefones e tudo o que possa
incomodar. Para se poder manter calmo e começar a tentar ver o mundo de outra
maneira. A dada altura começamos a perceber que está tudo ligado, tudo
interdependente, nem o eu nem o mundo são dotados de existência própria. O eu
individual e as aparências do mundo fenomenal não têm qualquer realidade
intrínseca. Portanto, trata-se de um estado de não-dualidade. Encontro eco
desta noção em Ludwig Wittgenstein: “Os aspetos das coisas que são mais
importantes para nós estão escondidos em virtude da sua simplicidade e da sua
familiaridade”. O despontar da nossa compreensão da natureza não-dual, da
natureza última das coisas, esbate de certa maneira o edifício conceptual que
nos havia sido dado pela linguagem. A força do vivido fala mais alto do que
qualquer discurso.
terça-feira, 7 de maio de 2019
Do pensamento simplificado ao pensamento complexo
Sonhando na esperança de encontrar uma pessoa
que nos
dispensará a necessidade de ter por perto mais gente
Pensamento complexo é o pensamento da segunda
revolução cognitiva moderna, do conhecimento multidimensional e globalizante, muito
para além de Descartes, Galileu e Newton. É na interdependência dos elementos
que repousa a sua essência.
Quando ouvimos
alguém dizer que a sua afirmação é baseada em conhecimentos científicos, muito
provavelmente se estará a referir à ciência determinista começada por Descartes
e patenteada por Newton. Esta ciência, considerada uma revolução cultural na
Europa, corresponde ao pensamento da primeira revolução cognitiva moderna, que
foi construída sob os princípios do determinismo, em que o acaso não poderia
ter lugar. E assim se distinguia do mundo das humanidades, que era o domínio das artes e letras. Ora, em bom
rigor, esta é a ciência antes do aparecimento de um Werner Heisenberg, ou de um
Schrödinger. Depois deles impôs-se a mecânica
quântica, em que a matéria é corpuscular e ondulatória ao mesmo tempo. E
por fim a teoria do caos, com a metáfora do efeito borboleta: a sensibilidade
às condições iniciais pode desencadear muito depressa um sistema de
consequências não-previsíveis. Gödel com o seu teorema da incompletude veio
demonstrar que um sistema formal como a matemática não podia ser completo e
coerente. Não podia decidir por si da sua coerência e completude. Este
terramoto conceptual devastou todas as certezas de quatro séculos. Foi a segunda
revolução científica, nos termos de Thomas Kuhn: “uma mudança de paradigma”. Os
cientistas descobrem coisas novas e diferentes com novos instrumentos. Quando
os paradigmas se alteram o mundo muda com eles.
A ordem e a
desordem opõem-se, mas nenhuma delas exclui a outra. Pelo contrário, é na sua
desintegração que o Universo se organiza. E a vida na Terra resulta da evolução
natural do Universo, que para continuar a evoluir os indivíduos têm de morrer. Do
mesmo modo, as organizações sociais não podem evoluir sem conflituar. Uma
empresa mal gerida morre. Mas também morre sem inovação. E assim com a morte da
empresa tanto morre o gestor como o inovador. Portanto, a empresa para se
manter precisa do gestor e do inventor.
Ora, entre a causa
e o efeito há uma recursividade virtuosa, em que indivíduos e sociedade
interagem para se produzirem mutuamente. Sociedade e indivíduos são uma
existência única, indissociavelmente ligados de forma recursiva: o indivíduo
influencia a sociedade e a sociedade influencia o indivíduo. É o princípio da auto-organização. E assim é a sociedade
democrática: diversidade contraditória de ideias.
Contradições e
complementaridade entre os interesses das pessoas e dos grupos, tensões
permanentes, conflitos – a procura de equilíbrio com a alternância democrática.
Os cidadãos criam a democracia, que por sua vez cria os cidadãos. A cidadania é
importante para que cada um seja realmente portador da consciência do que
representa toda a sociedade como uma unidade, partilhando os mesmos valores
fundamentais e as mesmas regras do jogo. Digamos, que é esse o papel de uma
Constituição, num país onde todos devem partilhar uma certa consciência
democrática. Esse é o sentido que
deve ser seguido para que não se perca a confiança,
ingrediente essencial na coesão das sociedades e dos povos em geral.
É verdade que hoje
as pessoas estão muito mais interconectadas que no passado ainda recente. Mas
ao mesmo tempo, as novas formas de as pessoas se relacionarem através das redes
sociais da internet provocaram a emergência de uma nova vida, mais urbana e
mais egoísta, cheia de angústia e de solidão. Este é o paradoxo da atual
sociedade em rede.
A entrada na era
das redes sociais digitais provocou em nós uma nova forma de apreendermos a
realidade. E daí uma nova forma radical da representação que fazemos da
realidade. Pelo menos é uma mudança que vai levar tempo até nos prepararmos
para melhor compreendermos a fenomenologia deste novo paradigma. Ainda são as
pessoas formadas no paradigma precedente – mecanicista, lógico, linear, fechada
na racionalidade dedutiva – que detêm o verdadeiro poder e determinam as
políticas que regem a vida da geração que já nasceu com a internet. Já se sabe
falar nos novos termos, mas ainda não se encontrou o verdadeiro sentido disto
tudo, e o verdadeiro significado para o traduzirmos em atos, em razão prática,
em ética, em valores.
Porque o tempo não
trava a mudança de paradigma em curso ainda por fechar, não temos uma visão
clara de todas as implicações e consequências. É como se estivéssemos na
condição de cego a esconder os olhos. É essa a grande dificuldade da representação
sistémica que impõe uma cultura flexível e não a cultura rígida da obediência e
da disciplina. Nesta nova era em curso, é da desordem criativa e do sentido de
risco que irá nascer uma nova ordem
mundial.
segunda-feira, 6 de maio de 2019
Ética e equanimidade em Espinosa
Equanimidade é aquela serenidade de espírito que nos dá a coragem (conatos nos termos de Espinosa) de não sermos soberbos no sucesso, nem pusilânimes na adversidade; e aquela imparcialidade e retidão que suporta uma ética verdadeiramente universal, que reflete a aspiração mais profunda de todo o ser vivo, tanto do homem como do animal, a saber: procurar o bem-estar e evitar o sofrimento.
Ao falar de ética não estou propriamente a entrar na genealogia do bem e do mal em absoluto, à moda de Nietzsche a seguir as pegadas de Espinosa, mas a trazer para a consciência o que podemos contribuir, por atos, em prol de um menor sofrimento, e se possível felicidade. Por um lado, a nossa motivação para isso. Por outro lado, o resultado dos nossos atos. É claro que estamos longe de dominar a evolução dos acontecimentos que não dependem de nós, seja ao nível da natureza da força dos elementos, seja ao nível das atitudes alheias. Mas, sejam quais forem as circunstâncias, podemos sempre adotar uma motivação altruísta. A afirmação da vida e do mundo como são, a celebração do aqui e agora através da expressão máxima de nossa potência é, para Espinosa, o caminho e a vivência a que chama liberdade. Assim como Nietzsche dedica à superação do mundo-espírito moralizado pelo ressentimento, Espinosa também se eleva em repúdio à nefasta experiência da vida como martírio.
Diz Espinosa: “Aquele que compreende retamente que todas as coisas se seguem em virtude da necessidade da natureza divina, e que se produzem segundo as leis eternas da natureza não encontrará em verdade nada que seja digno de ódio ou desprezo, nem terá pena de ninguém, senão que se esforçará, tanto quanto a virtude humana o permite, para fazer o bem. A isso se soma que quem costuma ser tocado pela pena, e se comove diante da miséria ou das lágrimas alheias, faz coisas das quais logo se arrepende, tanto porque, se guiado pelo mero afeto, não faz nada que saiba com certeza ser bom, porque as falsas lágrimas enganam facilmente”.
Acima da motivação altruísta precisamos de lhe juntar a sabedoria que nos permite distinguir a forma das aparências que são enganadoras. Por exemplo, pode parecer uma violência privar um alcoólico crónico com cirrose hepática de uma garrafa de álcool onde ele pensa que lhe estamos a cortar a oportunidade de ser feliz. E, todavia, o que lhe estamos a proporcionar é uma melhor qualidade vida, mais saudável e porventura menos curta. Ou por exemplo, não é uma violência se uma mãe usa de uma certa brutalidade sobre um seu filho para que ele não sofra um atropelamento que lhe vai tirar a vida. O seu ato só é violento na aparência: poupou-o à morte. Ou ser igualmente violento para impedir um assassínio.
Esse entendimento do caráter necessário das coisas parece ser para Nietzsche uma forma não apenas de afetar-se menos com tristezas, mas também uma maneira de ‘embelezar a vida’. Inversamente, se não é possível amar o que se nos apresenta, seja ele bom ou mau, então talvez possamos simplesmente seguir em frente.
Nas palavras de Nietzsche: “Olhando a grande cidade, Zaratustra suspirou e ficou um longo tempo calado. Um louco furioso, movido por um forte espírito de desafeto e vingança, lhe havia prevenido que só encontraria o que há de mais deplorável naquele lugar. Também eu estou desgostoso nesta grande cidade. Aqui e ali nada há o que melhorar, nada há que piorar. Ai desta grande cidade! Quereria ver já a coluna de fogo em que se há de consumir. Isto, contudo, tem o seu tempo e o seu próprio destino. A ti, louco, te dou este ensinamento a modo de despedida: por onde já não se pode amar, deve-se... passar!
A sabedoria consiste em saber distinguir a verdadeira felicidade de outras imitações tal como seja o prazer imediato e efémero. Ora, esta sabedoria não é adquirida através de dogmas, mas sim através da experiência. Tudo isto não de forma alguma sem a presença de regras de conduta e de leis. Elas são indispensáveis como expressão da sabedoria acumulada no passado.
No debate filosófico atual em ética, avultam duas correntes que geralmente se opõem: o imperativo categórico kantiano e o utilitarismo britânico. E para contextualizar este tópico recorro a um romance da autoria de William Styron – A Escolha de Sofia. O livro conta a história de um jovem sulista que pretende tornar-se escritor e vai viver para Brooklyn. Aqui conhece um casal que vive um turbulento caso de amor e ódio. Nathan Landau, um judeu que se apresenta como um cientista, e Sofia Zawistowk, uma polonesa sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. O jovem envolve-se com Sofia, assombrada pela terrível escolha que teve de fazer um dia. Está em Auschwitz com os dois filhos, até que um dia é intimada por um oficial nazi para designar qual dos seus filhos irá para a câmara de gás. O outro será poupado. Se não o fizer, então irão os dois. É um pungente desafio, forçar Sofia a uma tomada de decisão insuportável.
Um filósofo kantiano, aconselharia Sofia a optar por não agir, e deixar as duas crianças à sua sorte por ação alheia. Será falta de coragem deixar morrer os filhos a expensas da consciência alheia, para não carregar na sua consciência um peso tão grande, uma escolha tão dolorosa, como o de sacrificar um dos filhos à morte. Mas um filósofo utilitarista pensa de um modo diferente. Então vejamos: “o gesto de Sofia não tem de ser visto como o sacrifício de um filho, mas sim a salvação do outro. Fecharia os olhos e entregaria um dos filhos à Sorte”. Aqui é fácil perceber como podemos sair daquele dilema ético se é aceitável sacrificar um filho para salvar outro. Na formulação genérica o utilitarista é mais generoso ao exemplificar o seu ponto de vista com a expressão "sacrificar um para salvar um milhão". É claro que Sofia era uma verdadeira altruísta. E ao ser encostada à parede, logo de imediato disse que preferia dar a sua vida e morrer em lugar de um dos filhos. E uma vez sem exemplo, o oficial nazi aceitou a proposta de Sofia.
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano, tendo nascido e morrido em Konigsberg, que na altura fazia parte da Prússia – apesar de hoje ser uma cidade russa com o nome de Kaliningrado, foi primeiro Konigsberg aquando da fundação em 1255 pelos cavaleiros Teutónicos, fez parte da Polónia de 1466 a 1656, e a partir de 1871 passa a fazer parte do império alemão. Kant apela ao sentido do Dever para decidir de maneira absoluta todas as questões morais. Não confiando nos sentimentos, defende que devemos agir em conformidade com a lei moral, ainda que esta obrigue a ir contra os seus próprios sentimentos. O Dever está condensado na sua exigência de universalidade e por isso relega para segundo plano os casos particulares. É claro que noção de absoluto e universal desemboca na crença da existência de uma entidade transcendente, ou entidades transcendentes como as Ideias e o Bem platónicos. Bem em si, residindo no universo perfeito e inacessível aos sentidos do mundo ordinário, imperfeito.
John Stuart Mill (1806-1873) um filósofo britânico defensor do Utilitarismo, tomou mais em consideração a noção de qualidade de vida, incluindo não apenas os valores morais, mas também os prazeres intelectuais. Coloca antes de tudo a defesa da liberdade individual. A única razão legítima de impedir a liberdade de cada um pela força seria quando ela fosse prejudicar outros. Preconizava uma ética pragmática assente na consideração pela natureza humana. O mal não era um poder demoníaco exterior a nós, nem o bem um princípio absoluto independente de nós. A noção de um Bem absoluto não é mais do que uma construção mental. Como poderiam o Bem e o Dever existir por si mesmos?
Pela perspetiva kantiana uma pessoa pode ser considerada um grande moralista, e, todavia, possuir um ego desmedido. Para uma ética kantiana não há problemas que um pensador ou um filósofo proponham ao mundo um sistema ético fiável, e ao mesmo tempo manifeste desvios de caráter. Como Kant era um dogmático, não tinha em conta as consequências práticas das ações reais, não aceitava que a mentira pudesse ter valor ético, mesmo quando se tratasse de salvar uma vida humana.
Ao falar de ética não estou propriamente a entrar na genealogia do bem e do mal em absoluto, à moda de Nietzsche a seguir as pegadas de Espinosa, mas a trazer para a consciência o que podemos contribuir, por atos, em prol de um menor sofrimento, e se possível felicidade. Por um lado, a nossa motivação para isso. Por outro lado, o resultado dos nossos atos. É claro que estamos longe de dominar a evolução dos acontecimentos que não dependem de nós, seja ao nível da natureza da força dos elementos, seja ao nível das atitudes alheias. Mas, sejam quais forem as circunstâncias, podemos sempre adotar uma motivação altruísta. A afirmação da vida e do mundo como são, a celebração do aqui e agora através da expressão máxima de nossa potência é, para Espinosa, o caminho e a vivência a que chama liberdade. Assim como Nietzsche dedica à superação do mundo-espírito moralizado pelo ressentimento, Espinosa também se eleva em repúdio à nefasta experiência da vida como martírio.
Diz Espinosa: “Aquele que compreende retamente que todas as coisas se seguem em virtude da necessidade da natureza divina, e que se produzem segundo as leis eternas da natureza não encontrará em verdade nada que seja digno de ódio ou desprezo, nem terá pena de ninguém, senão que se esforçará, tanto quanto a virtude humana o permite, para fazer o bem. A isso se soma que quem costuma ser tocado pela pena, e se comove diante da miséria ou das lágrimas alheias, faz coisas das quais logo se arrepende, tanto porque, se guiado pelo mero afeto, não faz nada que saiba com certeza ser bom, porque as falsas lágrimas enganam facilmente”.
Acima da motivação altruísta precisamos de lhe juntar a sabedoria que nos permite distinguir a forma das aparências que são enganadoras. Por exemplo, pode parecer uma violência privar um alcoólico crónico com cirrose hepática de uma garrafa de álcool onde ele pensa que lhe estamos a cortar a oportunidade de ser feliz. E, todavia, o que lhe estamos a proporcionar é uma melhor qualidade vida, mais saudável e porventura menos curta. Ou por exemplo, não é uma violência se uma mãe usa de uma certa brutalidade sobre um seu filho para que ele não sofra um atropelamento que lhe vai tirar a vida. O seu ato só é violento na aparência: poupou-o à morte. Ou ser igualmente violento para impedir um assassínio.
Esse entendimento do caráter necessário das coisas parece ser para Nietzsche uma forma não apenas de afetar-se menos com tristezas, mas também uma maneira de ‘embelezar a vida’. Inversamente, se não é possível amar o que se nos apresenta, seja ele bom ou mau, então talvez possamos simplesmente seguir em frente.
Nas palavras de Nietzsche: “Olhando a grande cidade, Zaratustra suspirou e ficou um longo tempo calado. Um louco furioso, movido por um forte espírito de desafeto e vingança, lhe havia prevenido que só encontraria o que há de mais deplorável naquele lugar. Também eu estou desgostoso nesta grande cidade. Aqui e ali nada há o que melhorar, nada há que piorar. Ai desta grande cidade! Quereria ver já a coluna de fogo em que se há de consumir. Isto, contudo, tem o seu tempo e o seu próprio destino. A ti, louco, te dou este ensinamento a modo de despedida: por onde já não se pode amar, deve-se... passar!
A sabedoria consiste em saber distinguir a verdadeira felicidade de outras imitações tal como seja o prazer imediato e efémero. Ora, esta sabedoria não é adquirida através de dogmas, mas sim através da experiência. Tudo isto não de forma alguma sem a presença de regras de conduta e de leis. Elas são indispensáveis como expressão da sabedoria acumulada no passado.
No debate filosófico atual em ética, avultam duas correntes que geralmente se opõem: o imperativo categórico kantiano e o utilitarismo britânico. E para contextualizar este tópico recorro a um romance da autoria de William Styron – A Escolha de Sofia. O livro conta a história de um jovem sulista que pretende tornar-se escritor e vai viver para Brooklyn. Aqui conhece um casal que vive um turbulento caso de amor e ódio. Nathan Landau, um judeu que se apresenta como um cientista, e Sofia Zawistowk, uma polonesa sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. O jovem envolve-se com Sofia, assombrada pela terrível escolha que teve de fazer um dia. Está em Auschwitz com os dois filhos, até que um dia é intimada por um oficial nazi para designar qual dos seus filhos irá para a câmara de gás. O outro será poupado. Se não o fizer, então irão os dois. É um pungente desafio, forçar Sofia a uma tomada de decisão insuportável.
Um filósofo kantiano, aconselharia Sofia a optar por não agir, e deixar as duas crianças à sua sorte por ação alheia. Será falta de coragem deixar morrer os filhos a expensas da consciência alheia, para não carregar na sua consciência um peso tão grande, uma escolha tão dolorosa, como o de sacrificar um dos filhos à morte. Mas um filósofo utilitarista pensa de um modo diferente. Então vejamos: “o gesto de Sofia não tem de ser visto como o sacrifício de um filho, mas sim a salvação do outro. Fecharia os olhos e entregaria um dos filhos à Sorte”. Aqui é fácil perceber como podemos sair daquele dilema ético se é aceitável sacrificar um filho para salvar outro. Na formulação genérica o utilitarista é mais generoso ao exemplificar o seu ponto de vista com a expressão "sacrificar um para salvar um milhão". É claro que Sofia era uma verdadeira altruísta. E ao ser encostada à parede, logo de imediato disse que preferia dar a sua vida e morrer em lugar de um dos filhos. E uma vez sem exemplo, o oficial nazi aceitou a proposta de Sofia.
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano, tendo nascido e morrido em Konigsberg, que na altura fazia parte da Prússia – apesar de hoje ser uma cidade russa com o nome de Kaliningrado, foi primeiro Konigsberg aquando da fundação em 1255 pelos cavaleiros Teutónicos, fez parte da Polónia de 1466 a 1656, e a partir de 1871 passa a fazer parte do império alemão. Kant apela ao sentido do Dever para decidir de maneira absoluta todas as questões morais. Não confiando nos sentimentos, defende que devemos agir em conformidade com a lei moral, ainda que esta obrigue a ir contra os seus próprios sentimentos. O Dever está condensado na sua exigência de universalidade e por isso relega para segundo plano os casos particulares. É claro que noção de absoluto e universal desemboca na crença da existência de uma entidade transcendente, ou entidades transcendentes como as Ideias e o Bem platónicos. Bem em si, residindo no universo perfeito e inacessível aos sentidos do mundo ordinário, imperfeito.
John Stuart Mill (1806-1873) um filósofo britânico defensor do Utilitarismo, tomou mais em consideração a noção de qualidade de vida, incluindo não apenas os valores morais, mas também os prazeres intelectuais. Coloca antes de tudo a defesa da liberdade individual. A única razão legítima de impedir a liberdade de cada um pela força seria quando ela fosse prejudicar outros. Preconizava uma ética pragmática assente na consideração pela natureza humana. O mal não era um poder demoníaco exterior a nós, nem o bem um princípio absoluto independente de nós. A noção de um Bem absoluto não é mais do que uma construção mental. Como poderiam o Bem e o Dever existir por si mesmos?
Pela perspetiva kantiana uma pessoa pode ser considerada um grande moralista, e, todavia, possuir um ego desmedido. Para uma ética kantiana não há problemas que um pensador ou um filósofo proponham ao mundo um sistema ético fiável, e ao mesmo tempo manifeste desvios de caráter. Como Kant era um dogmático, não tinha em conta as consequências práticas das ações reais, não aceitava que a mentira pudesse ter valor ético, mesmo quando se tratasse de salvar uma vida humana.