sexta-feira, 31 de maio de 2019

A lição do Mulá Omar, e o que significa “guerra” no século XXI

Mohammed Omar, chamado simplesmente de Mulá Omar, foi o líder dos Talibã no Afeganistão e chefe de Estado de facto do país entre 1996 e 2001, quando deu guarida a Osama bin Laden. Nascido numa família pobre, sem ligações políticas, Omar juntou-se aos Mujahideen afegãos na guerra contra a União Soviética. É preciso recordar que o Afeganistão é uma entidade artificial, uma zona tampão criada pelos britânicos há mais de cem anos para deixar os russos à distância. Por outro lado, dividiram os pashtun a meio, uma parte no Afeganistão e outra parte no Paquistão, para os ingleses melhor defenderem os seus interesses na zona do Paquistão.

Mas, pouco se sabe sobre ele e sobre a sua vida. Além do fato de ter perdido um olho durante a guerra contra a União Soviética, relatos de sua aparência física afirmam que Omar era alto, com cerca de 2 metros de altura. Era descrito como tímido e pouco falador. Saiu poucas vezes de Kandahar, e raramente teve contactos com gente de fora. Para a maior parte das necessidades diplomáticas, confiou essa tarefa a Wakil Ahmed Muttawakil. Segundo o governo oficial afegão em Cabul, Omar teria morrido de tuberculose em 2013.

A lição a que me estou a referir, dirige-se aos políticos europeus de esquerda que nos dias que se seguiram ao 11 de setembro defenderam que os autores dos ataques deviam ser perseguidos e tratados como criminosos. A maioria das pessoas de esquerda, nessa altura, não discerniu a dimensão política do terrorismo contemporâneo. Depois de os ânimos de indignação terem serenado em relação ao islão, as pessoas de boa-fé quiseram compreender o islão. O próprio Jürgen Habermas juntou-se a este coro, mas sublinhando que terminara a época pós-moderna do relativismo dos valores, e da ironia à moda de Richard Rorty.

Suponhamos que a grande maioria dos que exprimiram esse desejo não eram racistas em relação aos árabes, mas pessoas que queriam dar uma oportunidade ao islão, compreendê-lo do interior e, desse modo, redimi-lo. Em suma, queriam convencer-se a si próprios da grande força espiritual do islão, para que a própria religião não fosse condenada por crimes terroristas. Era assim a doutrina do relativismo de esquerda, colocando-se na posição do Outro. Mas essa atitude não podia ser apropriada para avaliar as dinâmicas políticas que conduziram à guerra jihadista. O terrorismo atual é simplesmente a contrapartida dessa guerra. A longo prazo, a verdadeira ameaça está noutros atos de terror em massa efetuados por participantes virtuais como se de um jogo de vídeo se tratasse.

A ironia está no facto de o Outro estar disposto a arriscar tudo, quando ao consagrar a sua vida a uma causa transcendente, entrando num combate que poderá implicar a sua própria destruição. Enquanto Nós, gozamos com satisfação uma cultura de saúde material assegurada, esse último homem nietzschiano imerso na estupidez dos prazeres quotidianos. Este é o nosso paradoxo nietzschiano de mestres colonizadores que deu em escravo agarrado à existência sem ter de arriscar a sua pele. É difícil imaginar uma causa, universal que seja, em nome da qual estaríamos dispostos a sacrificar a própria vida.

É claro que sendo o terrorismo uma entidade difusa e espetral, as próprias medidas antiterroristas do Estado estão envolvidas num halo de secretismo, o que só amplia o roteiro para as teorias da conspiração e para a paranoia social generalizada. É certo que os objetos críticos dos chamados cultural studies acabaram por ser ridicularizados pelo poder hegemónico das ciências duras. Os estudos culturais são um ramo das humanidades que se desenvolveram particularmente nos EUA a partir dos anos 1960, no contexto do surgimento do pós-modernismo e multiculturalismo. Um dos principais contribuintes dos estudos culturais em Inglaterra foi Stuart Hall (1932-2014 – sociólogo de origem jamaicana e diretor do Center for Contemporany Cultural Studies (CCCS), localizado na Universidade de Birmingham. Hall, juntamente com Richard Hoggart e Raymond Williams, foi uma das figuras fundadoras da escola de pensamento que hoje é conhecida como estudos culturais britânicos ou a escola Birmingham dos Estudos Culturais. Ele foi presidente da Associação Britânica de Sociologia entre 1995 e 1997.

Portanto, resumindo, temos dois tipos de reação a seguir ao 11 de setembro: a versão patriótica americana, o que se compreende, mas obviamente vã; e a versão de uma certa esquerda multiculturalista que considera que os EUA só tiveram o que mereceram depois do que vinham infligindo aos outros há décadas. Algumas declarações até escandalosas, como a das Torres Gémeas a serem destruídas, qual símbolo fálico à espera de ser castrado. No entanto, quando em Outubro de 2001, o primeiro-ministro italiano – Sílvio Berlusconi – declarou que os direitos do homem e as liberdades fundamentais eram fruto de uma tradição cristã nitidamente superior ao islão, houve muita gente que veio a terreiro dizer que num certo sentido – para consternação da esquerda liberal ocidental – a sua posição era mais pertinente do que as dos outros dirigentes que tratavam a profundeza espiritual do Outro com uma condescendência repugnante e um respeito completamente subserviente.

O que nos espera é muito mais fantástico: o espetro de uma guerra imaterial em que o ataque é invisível e os vírus e os venenos podem estar em toda a parte e em lado nenhum. Nada se passará ao nível da realidade material visível à vista desarmada. O que há de irónico no 11 de setembro é que nesta fase da desmaterialização da realidade para o fluido virtual, o colapso das Torres Gémeas foram o último grito espetacular da arte da guerra do século XX. Perdeu o seu significado porque – uma superpotência em pleno século XXI, bombardear um país desértico e desolado, como é o Afeganistão – não serve de nada quando ao mesmo tempo fica refém de uma rede invisível. Esta foi a grande resposta que o islão deu às grandes corporações multinacionais do capitalismo globalizado.

À laia de apontamento histórico, alguns historiadores dizem que pelo facto de ainda não se ter dado no islão uma espécie de Reforma, como aconteceu no cristianismo com Lutero, o mundo muçulmano está a ver passivamente reemergir a forma mais radical do islamismo – o wahhabismo – incapaz de fazer nada. Mas há outros historiadores que interpretam o fenómeno de forma oposta, dizendo que o equivalente no islamismo, da revolução protestante no cristianismo, já se deu há mais de dois séculos na forma de wahhabismo, onde é hoje a Arábia Saudita. Por conseguinte, esses especialistas consideram que a razão não é essa, para explicar por que os muçulmanos não tenham aderido àquilo a que os cristãos ocidentais chamam de modernidade. Os wahhabitas foram os maiores representantes da pureza e do dogma, razão pela qual se tornaram os maiores opositores a qualquer forma de acomodamento às novas tendências da modernidade ocidental. É assim, uma reação contra a inércia corruptora da tradição.

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