quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ateísmo e liberdade religiosa

Historicamente, o conceito de religião foi desenvolvido no contexto judaico-cristão e tem ainda a sua aplicação tal como o conceito de ateísmo. Mas fora deste contexto original, religião ou ateísmo podem ser mal interpretados.

Assim, pode ser consensual um certo enunciado de características que, apesar de não terem a pretensão de uma definição – a crença em seres sobrenaturais que de alguma forma são ritualizados em cerimónias centradas em objetos sagrados e formalizados por orações ou preces – sirvam para contextualizar uma conversa quando se pretende falar de religião.

Todavia, argumentando que não se pode definir “religião” em termos de uma crença em Deus, ainda assim para alguns crentes pode ser problemático não se mencionar a palavra “Deus”. Mas a verdade é que, se quisermos ser o mais abrangentes possível, verificamos que para o budismo, o taoísmo/confucionismo e o xintoísmo, apenas para mencionar religiões bem conhecidas e que são professadas por muitos milhões de pessoas, Deus não faz parte dos seus conceitos de religião. Portanto, poderíamos dizer que estas religiões são religiões ateístas.

Bem, é tão controversa a definição de religião que há autores que incluem nesta categoria ideologias humanistas e marxistas. E nesse caso teríamos religiões ateístas propriamente ditas.

Seja como for, quero conduzir esta questão para o caso da liberdade religiosa e para a memória das perseguições religiosas aos ateus, mesmo nos tempos da tolerância Lockiana ou do ecumenismo atual. Devido á ameaça política que os ateus representavam, os governos pré-modernos negavam-lhes qualquer proteção. Apoio filosófico a esta perseguição é abundante no início da filosofia ocidental, por filósofos tão diversos como Platão, Agostinho ou Tomás de Aquino, que achavam legítima a punição do ateísmo por ser um crime contra a sociedade. Argumentavam que os ateus deviam ser excluídos da cultura política, reeducados à força e, em alguns casos, condenados à morte. E Thomas More, um dos primeiros humanistas, descreveu na “Utopia” que a tolerância religiosa se alargaria a todos os residentes exceto os que não acreditavam em Deus ou na imortalidade da alma. Locke, de certo modo, não rompe completamente com os seus antecessores ao recusar conceder aos ateus e agnósticos os mesmos direitos e privilégios políticos e legais de que beneficiavam os seus concidadãos mais devotos. Locke não queria matar ateus, mas também não lhes concedia todos os benefícios da cidadania.

Locke negava a tolerância aos ateus não por causa de não serem tementes a Deus, mas por causa de não se poder confiar neles no cumprimento das suas promessas; nos seus testemunhos sob juramento num tribunal; e a capacidade para governar com lealdade os compromissos com o povo. Os ateus desleais ameaçavam fazer ruir a capacidade dos novos governos liberais para proteger o mundo comercial que estava a desenvolver-se conjuntamente com a estrutura política do liberalismo clássico. Seja qual for a razão de ser que justifique a intolerância perante os ateus, a perseguição jurídica destes era muito comum nos estados liberais do início da época moderna. Por exemplo, na Inglaterra, os ateus continuaram a sofrer impedimentos legais graves até ao fim do século XIX.

Pierre Bayle foi um outro britânico contemporâneo de Locke que escreveu tratados filosóficos muitíssimo disseminados sobre muitos dos temas da tolerância religiosa. Muito enquadrado intelectualmente no Iluminismo, ao contrário de Locke, Bayle argumentou que o governo não deve fazer valer a crença religiosa através da lei, devendo os governos proteger os ateus da pressão por parte dos crentes religiosos. Os governos tinham o dever político de respeitar as decisões individuais sobre questões de fé religiosa. Mesmo indivíduos que tenham chegado à conclusão, que Deus não existe.

Bayle cultivava o espírito do ceticismo que enquadrava o pensamento do mundo moderno. Por conseguinte, nenhuma autoridade política poderia impor através da lei um conjunto particular de preceitos discutíveis e insuscetíveis de prova sobre a existência de Deus. A fonte mais comum da ação jurídica contra os ateus ocorria quando as ideias ateias se expressavam de um modo que ofendia as sensibilidades da cultura religiosa dominante. A Grã-Bretanha, por exemplo, mantém o crime de blasfémia no direito comum. Este crime aplica-se a qualquer publicação que contenha qualquer conteúdo insolente, ultrajante, grosseiro ou grotesco para com os elementos mais sagrados das religiões. Acaba por incidir mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, porque não é por se ser ateu, ou defender ideias ateístas que se é punido. É mais pela forma como se ofende a sensibilidade do crente. Assim, a religião pode ser criticada, como faz Richard Dawkins, mas numa linguagem decente e moderada. O problema com estas leis é serem formuladas de modo muito vago em relação a um certo tipo de linguagem.

Nos Estados Unidos da América, paradoxalmente, as coisas correram de outra maneira. A Constituição e a Carta dos Direitos adotaram as disposições mais amplas que era possível quanto à liberdade religiosa. Thomas Jefferson desempenhou um papel importante no desenvolvimento da liberdade religiosa americana. Jefferson não era ateu, mas tinha ideias muito liberais para o seu tempo. Ele era um deísta, acreditava no deus naturalista, no Grande Arquiteto dos maçons, que não intervinha diretamente nos assuntos humanos.

O paradoxo reside no facto de o país ser constitucionalmente secular e ao mesmo tempo os Presidentes jurarem sobre a Bíblia e sob Deus a sua lealdade com o povo na sua governação. Tal tem resultado na prática uma tendência maior do que nos restantes países ocidentais para abraçar oficialmente a religião, ostracizando assim politicamente os ateus. Atualmente os EUA têm uma das mais elevadas taxas de filiação religiosa evangélica comparado com os restantes países do hemisfério norte do planeta. E o atual presidente reflete diretamente as crenças e preconceitos religiosos que predominam na população em geral. Apesar de contrário à Constituição, o governo dos EUA subscreve a religião abertamente com frequência em muitas das suas declarações oficiais.

Em muitos aspetos, os Europeus enfrenam uma tarefa mais simples do que os Norte-Americanos em relação à liberdade religiosa e em coerência com as suas Constituições. Em contraste, os Norte-Americanos operam numa atmosfera política profundamente hipócrita e contraditória. Por um lado, a Constituição é muito clara e específica quanto à separação da religião do poder político e dos papeis do Estado do ponto de vista administrativo. Mas por outro lado, a cultura política dos EUA está eivada de expressões obrigatórias de devoção religiosa pública, tendo o governo respondido às perspetivas religiosas da população endossando abertamente valores religiosos.Para terminar, uma palavra ainda para o ambiente que se vive a nível académico, sobretudo nos Departamentos de Filosofia, onde se encontram hoje em dia os mais brilhantes filósofos nos seus argumentos a favor do teísmo. Só para mencionar os representantes mais proeminentes da filosofia teísta contemporânea nos EUA escolho Alvin Plantinga – Universidade de Note Dame, South Bend, Indiana; e William Lane Craig – Depois de uma temporada de um ano em Westmont College nos arredores de Santa Bárbara, foi estudar para a Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Estes autores elevaram muito a fasquia no campo dos debates filosóficos contemporâneos sobre religião, com os seus escritos elegantes, incisivos e muitíssimo influentes. Plantinga, nos seus argumentos a favor da fé religiosa, escreve: “É razoável acreditar que Deus existe mesmo que não existam argumentos, razões ou indícios favoráveis à afirmação de que Deus existe.” Plantinga rejeita pura e simplesmente, sequer o desafio de procurar indícios, para além de ter rejeitado a motivação epistemológica fundacionalista subjacente a grande parte da filosofia ocidental.

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