sexta-feira, 3 de maio de 2019

“A dúvida de Cézanne” – por Maurice Merleau-Ponty. A aparência das coisas pelas sensações


Pintar é para Cézanne não separar o pensamento da visão, interpretar a natureza e tudo aquilo que se vê e que se vive. Para Cézanne a arte torna-se visível na medida em que se desenvolve “uma harmonia paralela à natureza”. O artista procura “restituir o encontro do olhar com as coisas que o solicitam”, retomando-as tal como se dão a ver, originariamente, a cada consciência, isto é, “a vibração das aparências”. Cézanne quer pintar a matéria ao tomar forma, quer mostrar as coisas em seu nascimento espontâneo. Segundo Merleau-Ponty, para Cézanne a linha divisória não está entre “os sentidos” e a “inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. O filósofo elucida: “a pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, já que ver é ter à distância, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspetos do Ser, que de alguma maneira devem fazer-se visíveis para entrar nela”.

“A dúvida de Cézanne” é um ensaio estético de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que trata da perceção nas obras do pintor Paul Cézanne (1839-1906). Em "A dúvida de Cézanne", Merleau-Ponty apresenta reflexões sobre a questão da visão e do visível, ou seja, da aparência e do ser. O exame da corporalidade e das suas relações, restitui profundidade de campo, e uma pluralidade de sentidos que o reducionismo de cunho mecanicista e naturalista lhe fizeram perder. Descobrir a interceção dos corpos, das formas, das cores, fora da banalidade do hábito, é olhar mais a fundo na diversidade. Há uma busca incansável do artista em pintar as características do visível fugidias, que instantaneamente escapam aos nossos sentidos. É a relação efémera entre a visão e o visível, num processo interminável, que provoca a investigação à sua própria obra. Inicialmente, Cézanne passa por uma insatisfação com as suas pinturas.

O desenho é resultado da cor. Estas e outras questões técnicas, tão bem desenvolvidas na linguagem de Merleau-Ponty, não aparecem como simples apresentações das técnicas de Cézanne, mas propõem uma colaboração à compreensão da leitura do real, escrita em suas obras. A pintura põe decerto em contacto com o real, com o Ser mundo visível e invisível, com a imanência das coisas. Cézanne procurava um efeito em suas obras. Ansiava transpor nas suas telas a perceção no momento em que ela se realiza. Daí a necessidade de pintar a matéria no instante em que ela toma forma, se configura em sua espontaneidade.

Durante toda a vida, Cézanne terá desejado pintar o que Balzac descrevera em Peau de chagrin: “uma toalha branca como uma camada de neve caída de fresco e na qual se elevam simetricamente os talheres coroados por paninhos doirados”. Mas em Cézanne, o uso das cores não carrega o mesmo fim que os impressionistas buscavam. O pintor explorava uma gama de cores (um total de dezoito cores) para construir os seus quadros. Uma construção que seguia rigorosas leis formais e cromáticas, e trazia uma expressão de solidez e materialidade. Para destacar as cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, Cézanne empregava o azul. Traços de azul turquesa a contornar os objetos: maçãs, pêssegos, laranjas…

A sua vida solitária, a fuga do mundo humano, confere-lhe a liberdade necessária para se poder dedicar por inteiro à representação do seu mundo visível. E foi assim que Cézanne desenvolveu um género novo de representação de objetos no espaço, dando uma profundidade espacial através de meios composicionais. Ao renunciar à perspetiva linear na representação dos objetos, ele pôde revelá-los nas dimensões impostas pela composição. A liberdade criadora de Cézanne é revelada por intermédio do sentido que o artista dava aos seus personagens, às figuras de seus quadros, ao próprio mundo que ele via. A reflexão sobre a liberdade criadora compreende o ápice filosófico da sua obra.

Cézanne respondia em relação aos Impressionistas: "eles pintam um quadro e nós (ele) tentamos um pedaço da natureza". É desta natureza, da natureza de Aix-en-Provence, que Cézanne nos deixa uma das suas maiores tentativas para ultrapassar a sua Dúvida, as cerca de oitenta montanhas de Saint Victoire. Esta paisagem que ficava perto de sua casa exerceu grande atração sobre o pintor justamente por ser o local que, de um modo muito especial, poderia tentar a ligação da arte com a natureza, não no sentido de cópia, mas no sentido de captação do momento genésico do aparecer da montanha. Cézanne pinta de um modo bastante consciente, onde a consciência é quiasma. Ele observa e pensa o mundo, mas deixa-se envolver pelo mundo para criar uma imagem que a ambos abarca num equilíbrio entre a sensação visual e a consciência daquilo que o olho vê numa totalidade quase perfeita. Esta quase perfeição implica a totalidade que se encontra na dinâmica incessante entre o homem e a natureza, entre o pintor e a coisa pintada, entre o músico e a melodia.

Merleau-Ponty com a sua filosofia da perceção, onde a imaginação trabalha para a construção da "imagem externa", subscreve Husserl quando afirmava que não "há imaginação sem perceção". Esta é uma filosofia que entende fazer da perceção o fundamento último da nossa relação ao ser. No seu livro – “O olho e o Espírito” – a mente que percebe é uma mente corpórea (na carne), uma união mente-corpo. O dualismo cartesiano é completamente banido da face deste novo modo de pensar e de ser. Neste universo, não existe pensar sem ser, nem ser sem pensar. Não existe sujeito sem objecto, nem objecto sem sujeito, não existe o Eu sem o Outro.

Na relação com a natureza, eu sou essa mesma natureza e por isso o pintor, o artista, o cientista-artista cria, faz aparecer, produz algo que de um modo muito especial o interliga naquilo que ele já é, Natureza e Ser: olhar o mundo é afinal uma expressão de quiasma. O quiasma não é somente a troca eu-outro (as mensagens que recebe, é a mim que chegam, as mensagens que recebo é a ele que chegam), é também troca de mim e do mundo, do corpo fenomenal e do corpo "objetivo", do que percebe e do percebido: o que começa como coisa termina como consciência da coisa, o que começa como "estado de consciência" termina como "coisa". É essa a tarefa, do artista: coisificar num quadro um pedaço da natureza.

É essa a tarefa do artista-cientista, coisificar no ente o Ser, que nele e por ele se revela. Evidentemente que o eu se reporta ao mundo de diversas maneiras, conforme diferentes modos de intenção, o que implica, ao mesmo tempo, que o papel da consciência dialogante com o mundo não é apenas o do espectador imparcial. É na inter-relação dos diferentes modos de ser, de sentir, de querer, de imaginar, que se encontra a totalidade da dança da existência humana. Por isso podemos afirmar que, na linha de Cézanne a inteligibilidade da pintura não é reduzida a um quadro, mas é, na sua plenitude, a tentativa de captação de um pedaço da natureza.

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