sexta-feira, 17 de maio de 2019

Autoconsciência e valores éticos


Como responder à questão: o que nos torna sujeitos éticos, isto é, pessoas? É a pessoa um sujeito racional, consciente e livre? Consciência, racionalidade, liberdade e ética são termos intimamente relacionados e interdependentes. Esclarecer o sentido de um pressupõe que de algum modo se conheça o sentido dos outros. Por exemplo, a racionalidade, pedra de toque da autoconsciência e da ética, não é uma capacidade humana independente de outras dimensões não racionais nem sequer necessariamente conscientes (memória, emoção, etc.), de tal modo que o que nos aparece como produto da nossa racionalidade (princípios éticos, argumentos filosóficos e religiosos, etc.) talvez não seja mais que o afloramento de um campo imenso a que damos pelo nome de inconsciente. O nível do inconsciente tem uma influência muito maior sobre o pensar e o decidir éticos do que aquela que estamos dispostos a aceitar.

Existem poucas coisas em que a sociedade secular acredita com tanto fervor como na instrução escolar. Desde o Iluminismo que a instrução é apresentada como a resposta mais eficaz contra os males da sociedade. Mas as elevadas afirmações feitas em nome da instrução, como as que ouvimos em atos solenes e cerimónias de variadas espécies e feitios, tendem a fazer-nos crer que as universidades não são mais do que meras fábricas de produção de tecnocratas e engenheiros. Aquela ideia de que as escolas têm como tarefa transformar-nos em pessoas melhores, mais sábias e felizes, uma ideia absolutamente quimérica. A aplicação dos académicos nas suas universidades até chega a ser comovente. Independentemente da retórica, o que se passa é que a universidade moderna parece ter muito pouco interesse em ensinar aos alunos quaisquer aptidões emocionais ou éticas, para não falar em como amar os vizinhos e deixar o mundo mais feliz do que quando o encontrou. Mas não há que ter medo da experiência vivida e do autodidatismo através da leitura dos melhores. Só por mera exemplificação menciono nomes como Michel de Montaigne, Lev Tolstoi, George Steiner ou Agostinho da Silva.

A autoconsciência é algo que embora objecto de múltiplas investigações realizadas sobretudo por filósofos, psicólogos e neurobiólogos, continua a constituir uma realidade de difícil compreensão. Ora, o conceito de autoconsciência é essencial para a definição de outros conceitos, como o da liberdade, e este é, por sua vez, um conceito central na definição da ética. Acresce ainda que esta diversidade de conceitos que forma uma complexa rede semântica se torna ainda mais complexa e problemática se considerarmos a diversidade de perspetivas a partir das quais esses conceitos podem ser entendidos. Refiro-me sobretudo às perspetivas filosófica, científica e religiosa, e também à do senso comum. Atualmente, o grande desafio que se nos coloca é o de confrontar e eventualmente harmonizar numa perspetiva interdisciplinar abordagens tão diferentes. É problemática a ligação das imagens de nós mesmos provenientes do senso comum com a conceção científica global do mundo físico, um mundo de quarks sem mente nem significado. Esta hipótese é estranha às ideias da maioria das pessoas.

Muitos cientistas nem sequer querem ouvir falar na nossa interioridade e na perspetiva de primeira pessoa, outra forma de falar da nossa subjetividade. A verdade é que as perspetivas filosóficas sobre os problemas da mente e da consciência evoluíram muito desde os primeiros desenvolvimentos da Inteligência Artificial a partir da segunda metade do século XX. As abordagens que acentuam a dimensão ética são por vezes criticadas por terem sido realizadas à margem dos desenvolvimentos científicos, sobretudo da biologia e das ciências cognitivas, ciências que, numa perspetiva oposta, fazem uma abordagem do ser humano numa linha individualista, caracterizando a identidade pessoal em termos meramente neurobiológicos e de desempenho baseado nas capacidades e competências individuais. Mas o caráter relacional da mente humana é porventura a marca constitutiva mais importante da identidade pessoal do ser humano. Esta abordagem relacional permite repensar as questões éticas de um modo novo, como é o caso, por exemplo, das questões bioéticas.

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