Tudo começa com os
rituais funerários, suspeitando-se que já há 60.000 anos os Neandertais
ritualizavam a memória dos seus mortos. Há efetivamente no homo sapiens um
sentido de transcendência, sentido
esse que é sobrenatural, identificado com o nome de espiritualidade, indefinível, ora de um Eu fugidio, ora de um Deus omnipresente,
algo maior acima de nós. É o nível da autodeterminação aberta ao infinito numa
relação transcendente que os meios científicos não conseguiram ainda compreender.
É ainda difícil uma aproximação científica de tipo experimental e analisável de
forma independente, na perspetiva de terceira pessoa. De que maneira se
relaciona essa qualquer coisa com o corpo, e em particular com o cérebro, está
ainda por compreender.
Depois, no
despertar da consciência moral, surgiu a cultura há 30.000 anos tendo deixado
vestígios em pinturas rupestres, pedaços de osso trabalhados, estatuetas
relacionadas com a fertilidade, ídolos domésticos e antigas práticas
funerárias. Só mais tarde, no dealbar da agricultura neolítica, encontramos as
primeiras ressonâncias da mitologia. Desenvolve-se a mente criadora de mitos,
comum às culturas que a partir do fim da era glacial apareceram em todo o lado.
Portanto, desenvolveu-se no cérebro humano a fonte do imaginário, dos mitos e da
religiosidade que é comum ao sapiens de todos os tempos e lugares. O tal inconsciente que se mostra através das
emoções. E para o perceber das duas uma: ou procuramos as suas pistas
subliminares por investigações neuropsicológicas; ou as captamos por um
qualquer sexto sentido, que não é adquirido, mas inato, através de uma panóplia
de sinais discretos numa nuvem enigmaticamente fugidia. A dimensão da
transcendência humana não se faz representar apenas na Religião. Com igual grau de importância e necessidade se faz
representar na Arte. Que nada tem a
ver com aquilo que se designa por instinto.
Filosoficamente
falando, enquanto o instinto remete
para a imanência ontológica, o espírito remete para a transcendência ontológica. É o sentido
psicossomático que traduz o imanente, objeto da Psicologia e da Psicoterapia. É
o sentido religioso que traduz o transcendente. A angústia existencial, como é
da esfera espiritual, não é resolúvel pela abordagem psicológica consciente,
mas por uma atitude que classificamos de filosófica.
Na modernidade
tardia ou pós-moderna ocidental vivemos uma racionalidade que preconiza uma
religião sem Deus. Vivemos num mundo secularizado, um mundo predominantemente
de ateus e agnósticos, em que as pessoas continuam à procura de um sentido, mas
sem fé em Deus. É um tempo de Igrejas a afundarem as suas instituições, num mar
de escândalos sexuais e corrupção financeira.
Tudo se desencadeou nos finais da década de 1960 em que os jovens estudantes acreditaram na ideia utópica que era possível mudar o mundo através do amor livre. Na Califórnia as universidades fervilhavam em grupos políticos de esquerda que se manifestavam contra a guerra. Viviam-se as atrocidades da Guerra do Vietname. Em Paris dá-se uma nova forma de revolução que foi para a história como “O Maio de 68”. Na China Mao Tsé-tung havia encetado em 1966 uma Revolução Cultural com uma profunda campanha político-ideológica que cativou os jovens universitários de Paris.
Mas quando
entrámos nos primeiros anos da década de 1980 todos os centros de estratégia
política se tinham transformado em lugares de meditação importados da Índia e
da China. O zen e o taoismo passam a ser a “moda que está a dar” no Norte da
América e no Oeste da Europa, e a meditação transcendental na América do Sul. E
as livrarias já se enchiam de livros de autoajuda, esoterismo e misticismo. E
agora, inícios do século XXI, o que está a dar, sobretudo nos Estados Unidos da
América, são os Evangélicos com um fortíssimo assento neocapitalista.
Filósofos como
Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Jean-Luc Marion e Gianni Vattimo – com
o novo conceito de teologia desconstrutiva ou negativa, deixaram uma porta
aberta para a religião, mas para uma religião sem Deus. Derrida via que os
“três caminhos religiosos de vida” do Pseudo-Dionísio (+/- 500 d.C.) conduzia à
ideia de que o pensamento humano da transcendência desembocava em última
análise numa aporia interrompida pelo Nada absoluto. Mas para Marion, pelo
contrário, o pensamento humano sobre a transcendência leva a deixar-se
submergir por uma plenitude divina inexprimível, inacessível ao conceito, e que
não é possível nem anexar nem manipular.
O Ocidente conhece
uma metafísica da pessoa para a qual a divindade tem pelo menos traços
“pessoais” como a consciência e o amor. Mas o Oriente, pelo contrário, a
absoluta transcendência não tem nada a ver com o Si. E por isso não se põe a
questão da revelação nem da oração nos termos das religiões monoteístas ditas
do Livro. Todos os nossos conceitos não são adequados para exprimir coisas
divinas, incluindo os que utilizamos em relação a Deus. Todos os nossos
conceitos e imagens de Deus são, sem nenhuma exceção, invenções e produções
humanas. Mas as manifestações do divino em si não. Daí as religiões orientais
falarem de nirvana, anatman (vazio) e
mesmo de nada.
Para todos os que sofrem, a natureza da comunidade crente exige que a Igreja tome uma forma humana credível, tanto masculina como feminina, e que ofereça uma tradução da sua mensagem evangélica mais próxima do humano e mais criticamente adaptada ao pensamento contemporâneo. A coerência ética e a credibilidade da fé são assim os pressupostos mais importantes. A experiência de contradição da nossa humanidade cristã e do nosso cristianismo inumano é superabundante: ódio xenófobo; nacionalismo fanático; fanatismo ideológico na guerra santa; violação de crianças; e desigualdades sociais e de género.
Há já vários anos
que há médicos sem fronteiras, trabalhadores sociais sem fronteiras e toda a
espécie de voluntários sem fronteiras. Os tempos mudam sempre e hoje é a
humanidade cristã que mais uma vez está em jogo. Estamos de novo perante novas
escolhas. De que escolhas estou a falar?
Bem, situo a
questão na Europa da União Europeia, que presentemente tem problemas em várias
frentes. E no que concerne à religião, deveria ser escolhida a conceção de uma
Europa enquadrada pelos valores do “pluralismo religioso”, que inclui a
laicidade e o ateísmo, em vez dos valores exclusivos do laicismo.
Não há
determinação do ethos europeu sem memória histórica. Certamente a democracia
radica no consenso, mas o ethos da democracia radica na memória. Parece que a
Europa perdeu a sua memória pura e simplesmente, como se se tivesse tornado
vítima daquela amnésia cultural progressiva, que aparentemente muitos europeus
consideram ser o progresso autêntico.
Sem comentários:
Enviar um comentário