quarta-feira, 15 de maio de 2019

Religiosidades


Tudo começa com os rituais funerários, suspeitando-se que já há 60.000 anos os Neandertais ritualizavam a memória dos seus mortos. Há efetivamente no homo sapiens um sentido de transcendência, sentido esse que é sobrenatural, identificado com o nome de espiritualidade, indefinível, ora de um Eu fugidio, ora de um Deus omnipresente, algo maior acima de nós. É o nível da autodeterminação aberta ao infinito numa relação transcendente que os meios científicos não conseguiram ainda compreender. É ainda difícil uma aproximação científica de tipo experimental e analisável de forma independente, na perspetiva de terceira pessoa. De que maneira se relaciona essa qualquer coisa com o corpo, e em particular com o cérebro, está ainda por compreender.

Depois, no despertar da consciência moral, surgiu a cultura há 30.000 anos tendo deixado vestígios em pinturas rupestres, pedaços de osso trabalhados, estatuetas relacionadas com a fertilidade, ídolos domésticos e antigas práticas funerárias. Só mais tarde, no dealbar da agricultura neolítica, encontramos as primeiras ressonâncias da mitologia. Desenvolve-se a mente criadora de mitos, comum às culturas que a partir do fim da era glacial apareceram em todo o lado. Portanto, desenvolveu-se no cérebro humano a fonte do imaginário, dos mitos e da religiosidade que é comum ao sapiens de todos os tempos e lugares. O tal inconsciente que se mostra através das emoções. E para o perceber das duas uma: ou procuramos as suas pistas subliminares por investigações neuropsicológicas; ou as captamos por um qualquer sexto sentido, que não é adquirido, mas inato, através de uma panóplia de sinais discretos numa nuvem enigmaticamente fugidia. A dimensão da transcendência humana não se faz representar apenas na Religião. Com igual grau de importância e necessidade se faz representar na Arte. Que nada tem a ver com aquilo que se designa por instinto.

Filosoficamente falando, enquanto o instinto remete para a imanência ontológica, o espírito remete para a transcendência ontológica. É o sentido psicossomático que traduz o imanente, objeto da Psicologia e da Psicoterapia. É o sentido religioso que traduz o transcendente. A angústia existencial, como é da esfera espiritual, não é resolúvel pela abordagem psicológica consciente, mas por uma atitude que classificamos de filosófica.

Na modernidade tardia ou pós-moderna ocidental vivemos uma racionalidade que preconiza uma religião sem Deus. Vivemos num mundo secularizado, um mundo predominantemente de ateus e agnósticos, em que as pessoas continuam à procura de um sentido, mas sem fé em Deus. É um tempo de Igrejas a afundarem as suas instituições, num mar de escândalos sexuais e corrupção financeira.

Tudo se desencadeou nos finais da década de 1960 em que os jovens estudantes acreditaram na ideia utópica que era possível mudar o mundo através do amor livre. Na Califórnia as universidades fervilhavam em grupos políticos de esquerda que se manifestavam contra a guerra. Viviam-se as atrocidades da Guerra do Vietname. Em Paris dá-se uma nova forma de revolução que foi para a história como “O Maio de 68”. Na China Mao Tsé-tung havia encetado em 1966 uma Revolução Cultural com uma profunda campanha político-ideológica que cativou os jovens universitários de Paris.

Mas quando entrámos nos primeiros anos da década de 1980 todos os centros de estratégia política se tinham transformado em lugares de meditação importados da Índia e da China. O zen e o taoismo passam a ser a “moda que está a dar” no Norte da América e no Oeste da Europa, e a meditação transcendental na América do Sul. E as livrarias já se enchiam de livros de autoajuda, esoterismo e misticismo. E agora, inícios do século XXI, o que está a dar, sobretudo nos Estados Unidos da América, são os Evangélicos com um fortíssimo assento neocapitalista.

Filósofos como Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Jean-Luc Marion e Gianni Vattimo – com o novo conceito de teologia desconstrutiva ou negativa, deixaram uma porta aberta para a religião, mas para uma religião sem Deus. Derrida via que os “três caminhos religiosos de vida” do Pseudo-Dionísio (+/- 500 d.C.) conduzia à ideia de que o pensamento humano da transcendência desembocava em última análise numa aporia interrompida pelo Nada absoluto. Mas para Marion, pelo contrário, o pensamento humano sobre a transcendência leva a deixar-se submergir por uma plenitude divina inexprimível, inacessível ao conceito, e que não é possível nem anexar nem manipular.

O Ocidente conhece uma metafísica da pessoa para a qual a divindade tem pelo menos traços “pessoais” como a consciência e o amor. Mas o Oriente, pelo contrário, a absoluta transcendência não tem nada a ver com o Si. E por isso não se põe a questão da revelação nem da oração nos termos das religiões monoteístas ditas do Livro. Todos os nossos conceitos não são adequados para exprimir coisas divinas, incluindo os que utilizamos em relação a Deus. Todos os nossos conceitos e imagens de Deus são, sem nenhuma exceção, invenções e produções humanas. Mas as manifestações do divino em si não. Daí as religiões orientais falarem de nirvana, anatman (vazio) e mesmo de nada.

Para todos os que sofrem, a natureza da comunidade crente exige que a Igreja tome uma forma humana credível, tanto masculina como feminina, e que ofereça uma tradução da sua mensagem evangélica mais próxima do humano e mais criticamente adaptada ao pensamento contemporâneo. A coerência ética e a credibilidade da fé são assim os pressupostos mais importantes. A experiência de contradição da nossa humanidade cristã e do nosso cristianismo inumano é superabundante: ódio xenófobo; nacionalismo fanático; fanatismo ideológico na guerra santa; violação de crianças; e desigualdades sociais e de género.

Há já vários anos que há médicos sem fronteiras, trabalhadores sociais sem fronteiras e toda a espécie de voluntários sem fronteiras. Os tempos mudam sempre e hoje é a humanidade cristã que mais uma vez está em jogo. Estamos de novo perante novas escolhas. De que escolhas estou a falar?

Bem, situo a questão na Europa da União Europeia, que presentemente tem problemas em várias frentes. E no que concerne à religião, deveria ser escolhida a conceção de uma Europa enquadrada pelos valores do “pluralismo religioso”, que inclui a laicidade e o ateísmo, em vez dos valores exclusivos do laicismo.

Não há determinação do ethos europeu sem memória histórica. Certamente a democracia radica no consenso, mas o ethos da democracia radica na memória. Parece que a Europa perdeu a sua memória pura e simplesmente, como se se tivesse tornado vítima daquela amnésia cultural progressiva, que aparentemente muitos europeus consideram ser o progresso autêntico.

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