quarta-feira, 8 de maio de 2019

Lembrando a morte, assim vamos libertando o engenho e a arte de viver



Depois de me ter confrontado tantas vezes contra a morte de pessoas no meu campo de batalha médica num hospital fim de linha, ter perdido muitas vezes, e ganhado algumas, agora penso na morte sem ficar desesperado ou assustado como no tempo do Teatro Anatómico, nas salas de aula de Anatomia com cadáveres deitados em bancas de mármore, que estavam guardados em arcas de formol, e ainda no tempo das aulas de Medicina Legal, no Instituto de Medicina Legal do Porto com o Prof. Pinto da Costa à frente.

Agora apenas estou preocupado com a qualidade da vida que ainda vale a pena ser vivida. Nada devo lamentar, de resto, quando já percorri mais de metade do caminho que me foi dado para percorrer, sem grandes pedras nem sobressaltos, apenas escapadelas a algumas armadilhas.
Aquele que aproveitou cada instante da sua vida para se tornar um ser melhor e contribuir para a sua felicidade e a dos outros, nada terá de temer, podendo legitimamente morrer em paz. No fim, deve-se estar feliz como alguém que realizou uma grande tarefa.

Quando cada um e nós deixar de existir, é como se tudo deixasse de existir. Podemos, em todo o caso, enquanto se está são de corpo e mente, preparar o desaparecimento do ego, aquele grande malandro. Não se deve, porém, esperar o último momento para se preparar. É assim que o sábio se prepara, que sabe que não tem tempo a perde, que o tempo é precioso e que seria vão desperdiçá-lo em tolices. Quando chegar realmente o dia da morte, morre sereno, sem tristeza nem pesar, sem apego ao que deixa para trás.
Cada pessoa caminha a partir de um ponto em que se encontra, com uma natureza, disposições pessoais e diferentes crenças. É preciso ouvir, refletir, meditar e integrar o que se compreendeu no interior de Si – bondade, paciência, tolerância… Depois, uma vez serenados os pensamentos, contemplamos a própria natureza e o sentido da vida. Mergulhados num recolhimento profundo, na solidão tranquila de um lugar retirado. Retirar-se para a solidão não é desinteressar-se do destino dos outros, muito pelo contrário. Distanciar-se da agitação do mundo permite ver as coisas numa perspetiva nova, mais vasta e mais serena. Aí chegados, a uma nova perceção da realidade, contemplamos mais do que refletimos intelectualmente a transformação do Si.

Para conseguir isso não é necessário ir para um mosteiro, ou ir até ao Tibete. Pode ser feito no dia a dia em qualquer sítio, à escolha de cada um conforme as suas circunstâncias. O que é preciso é desligar os telefones e tudo o que possa incomodar. Para se poder manter calmo e começar a tentar ver o mundo de outra maneira. A dada altura começamos a perceber que está tudo ligado, tudo interdependente, nem o eu nem o mundo são dotados de existência própria. O eu individual e as aparências do mundo fenomenal não têm qualquer realidade intrínseca. Portanto, trata-se de um estado de não-dualidade. Encontro eco desta noção em Ludwig Wittgenstein: “Os aspetos das coisas que são mais importantes para nós estão escondidos em virtude da sua simplicidade e da sua familiaridade”. O despontar da nossa compreensão da natureza não-dual, da natureza última das coisas, esbate de certa maneira o edifício conceptual que nos havia sido dado pela linguagem. A força do vivido fala mais alto do que qualquer discurso.

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