segunda-feira, 6 de maio de 2019

Ética e equanimidade em Espinosa

Equanimidade é aquela serenidade de espírito que nos dá a coragem (conatos nos termos de Espinosa) de não sermos soberbos no sucesso, nem pusilânimes na adversidade; e aquela imparcialidade e retidão que suporta uma ética verdadeiramente universal, que reflete a aspiração mais profunda de todo o ser vivo, tanto do homem como do animal, a saber: procurar o bem-estar e evitar o sofrimento.

Ao falar de ética não estou propriamente a entrar na genealogia do bem e do mal em absoluto, à moda de Nietzsche a seguir as pegadas de Espinosa, mas a trazer para a consciência o que podemos contribuir, por atos, em prol de um menor sofrimento, e se possível felicidade. Por um lado, a nossa motivação para isso. Por outro lado, o resultado dos nossos atos. É claro que estamos longe de dominar a evolução dos acontecimentos que não dependem de nós, seja ao nível da natureza da força dos elementos, seja ao nível das atitudes alheias. Mas, sejam quais forem as circunstâncias, podemos sempre adotar uma motivação altruísta. A afirmação da vida e do mundo como são, a celebração do aqui e agora através da expressão máxima de nossa potência é, para Espinosa, o caminho e a vivência a que chama liberdade. Assim como Nietzsche dedica à superação do mundo-espírito moralizado pelo ressentimento, Espinosa também se eleva em repúdio à nefasta experiência da vida como martírio.

Diz Espinosa: “Aquele que compreende retamente que todas as coisas se seguem em virtude da necessidade da natureza divina, e que se produzem segundo as leis eternas da natureza não encontrará em verdade nada que seja digno de ódio ou desprezo, nem terá pena de ninguém, senão que se esforçará, tanto quanto a virtude humana o permite, para fazer o bem. A isso se soma que quem costuma ser tocado pela pena, e se comove diante da miséria ou das lágrimas alheias, faz coisas das quais logo se arrepende, tanto porque, se guiado pelo mero afeto, não faz nada que saiba com certeza ser bom, porque as falsas lágrimas enganam facilmente”.

Acima da motivação altruísta precisamos de lhe juntar a sabedoria que nos permite distinguir a forma das aparências que são enganadoras. Por exemplo, pode parecer uma violência privar um alcoólico crónico com cirrose hepática de uma garrafa de álcool onde ele pensa que lhe estamos a cortar a oportunidade de ser feliz. E, todavia, o que lhe estamos a proporcionar é uma melhor qualidade vida, mais saudável e porventura menos curta. Ou por exemplo, não é uma violência se uma mãe usa de uma certa brutalidade sobre um seu filho para que ele não sofra um atropelamento que lhe vai tirar a vida. O seu ato só é violento na aparência: poupou-o à morte. Ou ser igualmente violento para impedir um assassínio.

Esse entendimento do caráter necessário das coisas parece ser para Nietzsche uma forma não apenas de afetar-se menos com tristezas, mas também uma maneira de ‘embelezar a vida’. Inversamente, se não é possível amar o que se nos apresenta, seja ele bom ou mau, então talvez possamos simplesmente seguir em frente.

Nas palavras de Nietzsche: “Olhando a grande cidade, Zaratustra suspirou e ficou um longo tempo calado. Um louco furioso, movido por um forte espírito de desafeto e vingança, lhe havia prevenido que só encontraria o que há de mais deplorável naquele lugar. Também eu estou desgostoso nesta grande cidade. Aqui e ali nada há o que melhorar, nada há que piorar. Ai desta grande cidade! Quereria ver já a coluna de fogo em que se há de consumir. Isto, contudo, tem o seu tempo e o seu próprio destino. A ti, louco, te dou este ensinamento a modo de despedida: por onde já não se pode amar, deve-se... passar!

A sabedoria consiste em saber distinguir a verdadeira felicidade de outras imitações tal como seja o prazer imediato e efémero. Ora, esta sabedoria não é adquirida através de dogmas, mas sim através da experiência. Tudo isto não de forma alguma sem a presença de regras de conduta e de leis. Elas são indispensáveis como expressão da sabedoria acumulada no passado.

No debate filosófico atual em ética, avultam duas correntes que geralmente se opõem: o imperativo categórico kantiano e o utilitarismo britânico. E para contextualizar este tópico recorro a um romance da autoria de William Styron – A Escolha de Sofia. O livro conta a história de um jovem sulista que pretende tornar-se escritor e vai viver para Brooklyn. Aqui conhece um casal que vive um turbulento caso de amor e ódio. Nathan Landau, um judeu que se apresenta como um cientista, e Sofia Zawistowk, uma polonesa sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. O jovem envolve-se com Sofia, assombrada pela terrível escolha que teve de fazer um dia. Está em Auschwitz com os dois filhos, até que um dia é intimada por um oficial nazi para designar qual dos seus filhos irá para a câmara de gás. O outro será poupado. Se não o fizer, então irão os dois. É um pungente desafio, forçar Sofia a uma tomada de decisão insuportável.

Um filósofo kantiano, aconselharia Sofia a optar por não agir, e deixar as duas crianças à sua sorte por ação alheia. Será falta de coragem deixar morrer os filhos a expensas da consciência alheia, para não carregar na sua consciência um peso tão grande, uma escolha tão dolorosa, como o de sacrificar um dos filhos à morte. Mas um filósofo utilitarista pensa de um modo diferente. Então vejamos: “o gesto de Sofia não tem de ser visto como o sacrifício de um filho, mas sim a salvação do outro. Fecharia os olhos e entregaria um dos filhos à Sorte”. Aqui é fácil perceber como podemos sair daquele dilema ético se é aceitável sacrificar um filho para salvar outro. Na formulação genérica o utilitarista é mais generoso ao exemplificar o seu ponto de vista com a expressão "sacrificar um para salvar um milhão". É claro que Sofia era uma verdadeira altruísta. E ao ser encostada à parede, logo de imediato disse que preferia dar a sua vida e morrer em lugar de um dos filhos. E uma vez sem exemplo, o oficial nazi aceitou a proposta de Sofia.

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano, tendo nascido e morrido em Konigsberg, que na altura fazia parte da Prússia – apesar de hoje ser uma cidade russa com o nome de Kaliningrado, foi primeiro Konigsberg aquando da fundação em 1255 pelos cavaleiros Teutónicos, fez parte da Polónia de 1466 a 1656, e a partir de 1871 passa a fazer parte do império alemão. Kant apela ao sentido do Dever para decidir de maneira absoluta todas as questões morais. Não confiando nos sentimentos, defende que devemos agir em conformidade com a lei moral, ainda que esta obrigue a ir contra os seus próprios sentimentos. O Dever está condensado na sua exigência de universalidade e por isso relega para segundo plano os casos particulares. É claro que noção de absoluto e universal desemboca na crença da existência de uma entidade transcendente, ou entidades transcendentes como as Ideias e o Bem platónicos. Bem em si, residindo no universo perfeito e inacessível aos sentidos do mundo ordinário, imperfeito.

John Stuart Mill (1806-1873) um filósofo britânico defensor do Utilitarismo, tomou mais em consideração a noção de qualidade de vida, incluindo não apenas os valores morais, mas também os prazeres intelectuais. Coloca antes de tudo a defesa da liberdade individual. A única razão legítima de impedir a liberdade de cada um pela força seria quando ela fosse prejudicar outros. Preconizava uma ética pragmática assente na consideração pela natureza humana. O mal não era um poder demoníaco exterior a nós, nem o bem um princípio absoluto independente de nós. A noção de um Bem absoluto não é mais do que uma construção mental. Como poderiam o Bem e o Dever existir por si mesmos?

Pela perspetiva kantiana uma pessoa pode ser considerada um grande moralista, e, todavia, possuir um ego desmedido. Para uma ética kantiana não há problemas que um pensador ou um filósofo proponham ao mundo um sistema ético fiável, e ao mesmo tempo manifeste desvios de caráter. Como Kant era um dogmático, não tinha em conta as consequências práticas das ações reais, não aceitava que a mentira pudesse ter valor ético, mesmo quando se tratasse de salvar uma vida humana.

Sem comentários:

Enviar um comentário