quinta-feira, 9 de maio de 2019

A semiologia dos objetos



Há dias, enquanto respigava O Sistema dos Objetos, livro de Jean Baudrillard, primeira edição de 1968, grosso modo uma análise sobre a sociedade de consumo capitalista, passavam na tela da TV imagens atuais do incêndio inominável da catedral de Notre-Dame de Paris, e simultaneamente imagens de confrontos de manifestantes com coletes amarelos e a polícia nas suas imediações. Mais uma manifestação de uma série que se vem arrastando nas ruas de Paris há mais de dois meses – os denominados “coletes amarelos”.

Jean Baudrillard, sociólogo, é nome de grande destaque na ensaística francesa. O Sistema dos Objetos vincula a sociologia à semiologia. Volta-se para o mundo da cultura por meio do objeto, estudando-o na sua dupla condição, de instrumento e de signo. Através desse caráter dual (das contradições a ele inerentes) o leitor investiga o que – na incessante multiplicação e consumo de objetos da sociedade contemporânea – lhe escapa de vital e lhe sobra como inércia, trapaça ou fingimento de ação.

Vemos o mundo através de filtros, ainda a TV, mas a perder terreno para a tela dos computadores e smartphones. Interações humanas no mundo físico são agora empurradas de forma impiedosa para o mundo virtual dos dispositivos ligados em rede. Na era da internet, a ordem mundial tem sido muitas vezes equiparada à proposição de que, se as pessoas dispõem da capacidade de aceder e trocar livremente as informações do mundo, o impulso humano natural para a liberdade acabará por se enraizar e se realizar, e a história passará a avançar como se estivesse no piloto automático.

Onde já vai a sabedoria adquirida por transmissão oral de geração para geração através de anos e anos de tentativa e erro e de experiência vivida. E pelo mesmo caminho vai a aquisição do conhecimento a partir de livros. Resta agora apenas Informação – extraída pela Internet, a qual proporciona uma nova forma de vivenciar a realidade – virtual.

Ler é uma atividade que, em termos relativos, consome certo tempo; para facilitar o processo, o estilo é importante. Como não é possível ler todos os livros sobre determinado assunto, muito menos a totalidade dos livros, ou organizar com facilidade tudo o que foi lido, aprender por meio de livros é uma atividade que premia a capacidade que se tem de pensar em termos conceptuais — a aptidão para reconhecer dados e acontecimentos comparáveis e projetar padrões no futuro. E o estilo estimula o leitor a estabelecer uma relação com o autor, ou com o tema, ao fundir substância e estética.

O computador permite o acesso a uma quantidade de dados impensável no mundo dos livros. O estilo não é mais necessário para torná-los acessíveis, nem sua memorização. Ao lidar com uma única decisão separada do seu contexto, o computador oferece instrumentos inimagináveis, mas ele também estreita a perspetiva. Como as informações são tão acessíveis e a comunicação é instantânea, ocorre uma diminuição do foco no seu significado, ou mesmo na definição do que é significativo.

Assim, a manipulação da informação substitui a reflexão. Da mesma maneira, a internet apresenta uma tendência a diminuir a memória histórica. O fenómeno tem sido descrito da seguinte maneira: “As pessoas esquecem itens que acreditam poder obter externamente e se lembram de itens aos quais julgam não ter acesso.” Ao deslocar tantos itens para o domínio do que está disponível, a internet reduz o impulso que nos leva a lembrar deles. A tecnologia das comunicações ameaça diminuir a capacidade do indivíduo para uma busca interior ao aumentar sua confiança na tecnologia como um facilitador e mediador do pensamento.

O que vemos quando a tecnologia incorpora a ciência nos objetos, e se fragmenta em especializações sem fim, o mesmo não acontece nas artes e letras. Que não significa que as artes não evoluam e não mudem. Mas a boa arte, a que alcança a excelência, resiste mais ao desgaste do tempo.

Jean Baudrillard pulveriza com furor as teses de Foucault sobre o fim do Homem, na senda de Nietzsche depois de ter anunciado a morte de Deus. É claro, como ele diz: isto é um simulacro. A realidade virtual suplanta o mundo dos factos e das ações objetivas. Hoje os factos, para serem certificados como realidade, têm de passar pelos ecrãs. Não há realidade sem ecrãs que projetem a realidade na forma de imagens manipuladas. Têm de ser manipuladas. Não há imagens sem manipulação. De outra forma não seriam compreensíveis por quem não tem qualquer perspetiva crítica sobre o que acontece. Porque as pessoas estão domesticadas pela fantasia mediática.

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