sexta-feira, 31 de maio de 2019

A lição do Mulá Omar, e o que significa “guerra” no século XXI

Mohammed Omar, chamado simplesmente de Mulá Omar, foi o líder dos Talibã no Afeganistão e chefe de Estado de facto do país entre 1996 e 2001, quando deu guarida a Osama bin Laden. Nascido numa família pobre, sem ligações políticas, Omar juntou-se aos Mujahideen afegãos na guerra contra a União Soviética. É preciso recordar que o Afeganistão é uma entidade artificial, uma zona tampão criada pelos britânicos há mais de cem anos para deixar os russos à distância. Por outro lado, dividiram os pashtun a meio, uma parte no Afeganistão e outra parte no Paquistão, para os ingleses melhor defenderem os seus interesses na zona do Paquistão.

Mas, pouco se sabe sobre ele e sobre a sua vida. Além do fato de ter perdido um olho durante a guerra contra a União Soviética, relatos de sua aparência física afirmam que Omar era alto, com cerca de 2 metros de altura. Era descrito como tímido e pouco falador. Saiu poucas vezes de Kandahar, e raramente teve contactos com gente de fora. Para a maior parte das necessidades diplomáticas, confiou essa tarefa a Wakil Ahmed Muttawakil. Segundo o governo oficial afegão em Cabul, Omar teria morrido de tuberculose em 2013.

A lição a que me estou a referir, dirige-se aos políticos europeus de esquerda que nos dias que se seguiram ao 11 de setembro defenderam que os autores dos ataques deviam ser perseguidos e tratados como criminosos. A maioria das pessoas de esquerda, nessa altura, não discerniu a dimensão política do terrorismo contemporâneo. Depois de os ânimos de indignação terem serenado em relação ao islão, as pessoas de boa-fé quiseram compreender o islão. O próprio Jürgen Habermas juntou-se a este coro, mas sublinhando que terminara a época pós-moderna do relativismo dos valores, e da ironia à moda de Richard Rorty.

Suponhamos que a grande maioria dos que exprimiram esse desejo não eram racistas em relação aos árabes, mas pessoas que queriam dar uma oportunidade ao islão, compreendê-lo do interior e, desse modo, redimi-lo. Em suma, queriam convencer-se a si próprios da grande força espiritual do islão, para que a própria religião não fosse condenada por crimes terroristas. Era assim a doutrina do relativismo de esquerda, colocando-se na posição do Outro. Mas essa atitude não podia ser apropriada para avaliar as dinâmicas políticas que conduziram à guerra jihadista. O terrorismo atual é simplesmente a contrapartida dessa guerra. A longo prazo, a verdadeira ameaça está noutros atos de terror em massa efetuados por participantes virtuais como se de um jogo de vídeo se tratasse.

A ironia está no facto de o Outro estar disposto a arriscar tudo, quando ao consagrar a sua vida a uma causa transcendente, entrando num combate que poderá implicar a sua própria destruição. Enquanto Nós, gozamos com satisfação uma cultura de saúde material assegurada, esse último homem nietzschiano imerso na estupidez dos prazeres quotidianos. Este é o nosso paradoxo nietzschiano de mestres colonizadores que deu em escravo agarrado à existência sem ter de arriscar a sua pele. É difícil imaginar uma causa, universal que seja, em nome da qual estaríamos dispostos a sacrificar a própria vida.

É claro que sendo o terrorismo uma entidade difusa e espetral, as próprias medidas antiterroristas do Estado estão envolvidas num halo de secretismo, o que só amplia o roteiro para as teorias da conspiração e para a paranoia social generalizada. É certo que os objetos críticos dos chamados cultural studies acabaram por ser ridicularizados pelo poder hegemónico das ciências duras. Os estudos culturais são um ramo das humanidades que se desenvolveram particularmente nos EUA a partir dos anos 1960, no contexto do surgimento do pós-modernismo e multiculturalismo. Um dos principais contribuintes dos estudos culturais em Inglaterra foi Stuart Hall (1932-2014 – sociólogo de origem jamaicana e diretor do Center for Contemporany Cultural Studies (CCCS), localizado na Universidade de Birmingham. Hall, juntamente com Richard Hoggart e Raymond Williams, foi uma das figuras fundadoras da escola de pensamento que hoje é conhecida como estudos culturais britânicos ou a escola Birmingham dos Estudos Culturais. Ele foi presidente da Associação Britânica de Sociologia entre 1995 e 1997.

Portanto, resumindo, temos dois tipos de reação a seguir ao 11 de setembro: a versão patriótica americana, o que se compreende, mas obviamente vã; e a versão de uma certa esquerda multiculturalista que considera que os EUA só tiveram o que mereceram depois do que vinham infligindo aos outros há décadas. Algumas declarações até escandalosas, como a das Torres Gémeas a serem destruídas, qual símbolo fálico à espera de ser castrado. No entanto, quando em Outubro de 2001, o primeiro-ministro italiano – Sílvio Berlusconi – declarou que os direitos do homem e as liberdades fundamentais eram fruto de uma tradição cristã nitidamente superior ao islão, houve muita gente que veio a terreiro dizer que num certo sentido – para consternação da esquerda liberal ocidental – a sua posição era mais pertinente do que as dos outros dirigentes que tratavam a profundeza espiritual do Outro com uma condescendência repugnante e um respeito completamente subserviente.

O que nos espera é muito mais fantástico: o espetro de uma guerra imaterial em que o ataque é invisível e os vírus e os venenos podem estar em toda a parte e em lado nenhum. Nada se passará ao nível da realidade material visível à vista desarmada. O que há de irónico no 11 de setembro é que nesta fase da desmaterialização da realidade para o fluido virtual, o colapso das Torres Gémeas foram o último grito espetacular da arte da guerra do século XX. Perdeu o seu significado porque – uma superpotência em pleno século XXI, bombardear um país desértico e desolado, como é o Afeganistão – não serve de nada quando ao mesmo tempo fica refém de uma rede invisível. Esta foi a grande resposta que o islão deu às grandes corporações multinacionais do capitalismo globalizado.

À laia de apontamento histórico, alguns historiadores dizem que pelo facto de ainda não se ter dado no islão uma espécie de Reforma, como aconteceu no cristianismo com Lutero, o mundo muçulmano está a ver passivamente reemergir a forma mais radical do islamismo – o wahhabismo – incapaz de fazer nada. Mas há outros historiadores que interpretam o fenómeno de forma oposta, dizendo que o equivalente no islamismo, da revolução protestante no cristianismo, já se deu há mais de dois séculos na forma de wahhabismo, onde é hoje a Arábia Saudita. Por conseguinte, esses especialistas consideram que a razão não é essa, para explicar por que os muçulmanos não tenham aderido àquilo a que os cristãos ocidentais chamam de modernidade. Os wahhabitas foram os maiores representantes da pureza e do dogma, razão pela qual se tornaram os maiores opositores a qualquer forma de acomodamento às novas tendências da modernidade ocidental. É assim, uma reação contra a inércia corruptora da tradição.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Identidades e nacionalismos na Europa


Na Europa o nacionalismo sobrevive como reflexo do arcaísmo político, conotado com a direita. Em África, ou na Ásia, a referência “nacionalista” muda de sinal e consagra os grandes heróis de emancipação colonial. Depois da Segunda Guerra Mundial o bloco soviético fechou-se na cortina de ferro que só viria a abrir-se em 1989 com a queda do muro de Berlim. Suprimiu todas as veleidades que tivessem a ver com a expressão nacionalista e subsumiu-a no internacionalismo comunista.

A invenção da nação como forma política original e mesmo vital para o homem moderno é um fantasma sempre presente no nosso horizonte. Nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, que se realizarão no dia 26 de maio de 2019, vislumbra-se que possa acontecer uma subida significativa de deputados pertencentes a partidos da extrema direita e franjas da extrema esquerda que na prática se têm batido pelo fim da União Europeia. Ora, a EU é um espaço comunitário que congregou os esforços das pessoas mais bem formadas politicamente para que, entre outros objetivos, o reflexo nacionalista se tornasse cada vez mais improvável.

Há razões que podem explicar o fenómeno do populismo, mas o fenómeno do nacionalismo propriamente dito aparece como uma espécie de efeito secundário ou colateral ao medo que uma certa camada populacional europeia, considerada mais pobre, apresenta ao crescente aumento de migrantes vindos sobretudo do Médio Oriente. São problemas, por conseguinte, que não radicam diretamente do seio da própria EU, mas da sua fronteira.

É claro que os europeus tinham sido despertados para o fenómeno do nacionalismo com a guerra dos Balcãs no início dos anos 1990. Mas depois de ter passado meses com os olhos postos em Dubrovnik e Sarajevo, admitiram que era uma anomalia para a qual não tinham meios para o resolver. E então desistiram, não querendo olhar mais. Era um absurdo que na cena europeia se estivessem a verificar genocídios e outras atrocidades em nome do ideal de nação, para não ir mais longe com a palavra etnicidade. Muitos europeus pensaram que o caso da Jugoslávia teria pouco a ver com o ressurgimento nacionalista na Europa, cujo exemplo mais visível era o da Frente Popular em França da família Le Pen, agora com Marine Le Pen à frente do partido Rassemblement Nationel a liderar as intenções de voto para o Parlamento Europeu com 22%, embora pouco à frente do partido REM do presidente Emmanuel Macron.

O nacionalismo, qualquer que seja a sua versão, é sempre de estrutura ideológica, a máscara de outra coisa, para tapar sobretudo medos e carências. É possível que o caso da França tenha sido inflacionado após a reunificação alemã. Caso bem diferente é o que se passa no Reino Unido com o brexit. A postura eurocética ou mesmo antieuropeia da Inglaterra é uma idiossincrasia muito sui generis desde o primeiro momento da sua entrada. A França, com a posição que a extrema direita assume no momento, hesita, deprime-se, porque sente que já perdeu aquele fulgor intelectual e cultural que marcou o segundo e terceiro quartel do século XX na Europa. A França tentou cavalgar o seu nacionalismo cultural como marca da identidade cultural europeia. Mas a Europa não é uma nação.

A essência indigente da Europa, uma espécie de interminável guerra civil, é por assim dizer a principal causa do estado a que chegou a Europa, insignificante no xadrez da geopolítica. Paradoxalmente, de continente predador e imperial, mercantil e revolucionário na ciência, passou agora para o tal estado de indigência. E mais uma vez paradoxalmente, em termos de darwinismo político e cultural, esse dinamismo, sem paralelo na história humana conhecida, deveu-se precisamente às guerras civis internas de europeus contra europeus. Agora, roubando palavras a Eduardo Lourenço, encontramos uma Europa à procura de si mesma no seu próprio labirinto.

Continuando na senda de Eduardo Lourenço, e agora mais focado no perfil identitário da Europa, encontramos, pelo menos, duas grandes perspetivas em relação ao perfil identitário da Europa: a perspetiva do Norte; e a perspetiva do Sul.

A Europa do Sul é uma Europa com traços marcados de uma herança que remonta à Grécia Antiga e ao Império Romano. A Europa do Norte é uma Europa do “choque”. Choque esse que resultou da chamada invasão pacífica dos “bárbaros”. A verdadeira Europa é a que bebeu das águas mediterrânicas a matriz do pensamento grego e leis romanas, e da sabedoria judaico-cristã. A outra Europa é a Europa da ordem política, jurídica e administrativa assente na matriz do imperativo categórico, da ética do dever patrocinado pela graça divina. Esta Europa, a bem dizer, é filha dos bárbaros na sua intrínseca diversidade e turbulência.

Assim, temos um Híbrido contruído como Europa: de um lado os bárbaros cristianizados e o seu choque com Roma; e do outro lado uns nostálgicos reciclados da herança mais ou menos mítica de uma Grécia e de uma Roma que desapareceram ao fim de muitos séculos de esplendor e domínio.
Mas a resposta que se nos impôs, ou melhor, que de mútuo acordo nos comprometemos criar, varrendo do mundo o tempo das nossas mais profundas inquietações escatológicas, foi a utopia de uma Europa-nação, com um estatuto de autonomia política digna de milagre, na medida em que eram esquecidas para todo o sempre as nações de um outro Tempo, certamente hegemónicas mas também egoístas.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Autoconsciência e valores éticos


Como responder à questão: o que nos torna sujeitos éticos, isto é, pessoas? É a pessoa um sujeito racional, consciente e livre? Consciência, racionalidade, liberdade e ética são termos intimamente relacionados e interdependentes. Esclarecer o sentido de um pressupõe que de algum modo se conheça o sentido dos outros. Por exemplo, a racionalidade, pedra de toque da autoconsciência e da ética, não é uma capacidade humana independente de outras dimensões não racionais nem sequer necessariamente conscientes (memória, emoção, etc.), de tal modo que o que nos aparece como produto da nossa racionalidade (princípios éticos, argumentos filosóficos e religiosos, etc.) talvez não seja mais que o afloramento de um campo imenso a que damos pelo nome de inconsciente. O nível do inconsciente tem uma influência muito maior sobre o pensar e o decidir éticos do que aquela que estamos dispostos a aceitar.

Existem poucas coisas em que a sociedade secular acredita com tanto fervor como na instrução escolar. Desde o Iluminismo que a instrução é apresentada como a resposta mais eficaz contra os males da sociedade. Mas as elevadas afirmações feitas em nome da instrução, como as que ouvimos em atos solenes e cerimónias de variadas espécies e feitios, tendem a fazer-nos crer que as universidades não são mais do que meras fábricas de produção de tecnocratas e engenheiros. Aquela ideia de que as escolas têm como tarefa transformar-nos em pessoas melhores, mais sábias e felizes, uma ideia absolutamente quimérica. A aplicação dos académicos nas suas universidades até chega a ser comovente. Independentemente da retórica, o que se passa é que a universidade moderna parece ter muito pouco interesse em ensinar aos alunos quaisquer aptidões emocionais ou éticas, para não falar em como amar os vizinhos e deixar o mundo mais feliz do que quando o encontrou. Mas não há que ter medo da experiência vivida e do autodidatismo através da leitura dos melhores. Só por mera exemplificação menciono nomes como Michel de Montaigne, Lev Tolstoi, George Steiner ou Agostinho da Silva.

A autoconsciência é algo que embora objecto de múltiplas investigações realizadas sobretudo por filósofos, psicólogos e neurobiólogos, continua a constituir uma realidade de difícil compreensão. Ora, o conceito de autoconsciência é essencial para a definição de outros conceitos, como o da liberdade, e este é, por sua vez, um conceito central na definição da ética. Acresce ainda que esta diversidade de conceitos que forma uma complexa rede semântica se torna ainda mais complexa e problemática se considerarmos a diversidade de perspetivas a partir das quais esses conceitos podem ser entendidos. Refiro-me sobretudo às perspetivas filosófica, científica e religiosa, e também à do senso comum. Atualmente, o grande desafio que se nos coloca é o de confrontar e eventualmente harmonizar numa perspetiva interdisciplinar abordagens tão diferentes. É problemática a ligação das imagens de nós mesmos provenientes do senso comum com a conceção científica global do mundo físico, um mundo de quarks sem mente nem significado. Esta hipótese é estranha às ideias da maioria das pessoas.

Muitos cientistas nem sequer querem ouvir falar na nossa interioridade e na perspetiva de primeira pessoa, outra forma de falar da nossa subjetividade. A verdade é que as perspetivas filosóficas sobre os problemas da mente e da consciência evoluíram muito desde os primeiros desenvolvimentos da Inteligência Artificial a partir da segunda metade do século XX. As abordagens que acentuam a dimensão ética são por vezes criticadas por terem sido realizadas à margem dos desenvolvimentos científicos, sobretudo da biologia e das ciências cognitivas, ciências que, numa perspetiva oposta, fazem uma abordagem do ser humano numa linha individualista, caracterizando a identidade pessoal em termos meramente neurobiológicos e de desempenho baseado nas capacidades e competências individuais. Mas o caráter relacional da mente humana é porventura a marca constitutiva mais importante da identidade pessoal do ser humano. Esta abordagem relacional permite repensar as questões éticas de um modo novo, como é o caso, por exemplo, das questões bioéticas.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ateísmo e liberdade religiosa

Historicamente, o conceito de religião foi desenvolvido no contexto judaico-cristão e tem ainda a sua aplicação tal como o conceito de ateísmo. Mas fora deste contexto original, religião ou ateísmo podem ser mal interpretados.

Assim, pode ser consensual um certo enunciado de características que, apesar de não terem a pretensão de uma definição – a crença em seres sobrenaturais que de alguma forma são ritualizados em cerimónias centradas em objetos sagrados e formalizados por orações ou preces – sirvam para contextualizar uma conversa quando se pretende falar de religião.

Todavia, argumentando que não se pode definir “religião” em termos de uma crença em Deus, ainda assim para alguns crentes pode ser problemático não se mencionar a palavra “Deus”. Mas a verdade é que, se quisermos ser o mais abrangentes possível, verificamos que para o budismo, o taoísmo/confucionismo e o xintoísmo, apenas para mencionar religiões bem conhecidas e que são professadas por muitos milhões de pessoas, Deus não faz parte dos seus conceitos de religião. Portanto, poderíamos dizer que estas religiões são religiões ateístas.

Bem, é tão controversa a definição de religião que há autores que incluem nesta categoria ideologias humanistas e marxistas. E nesse caso teríamos religiões ateístas propriamente ditas.

Seja como for, quero conduzir esta questão para o caso da liberdade religiosa e para a memória das perseguições religiosas aos ateus, mesmo nos tempos da tolerância Lockiana ou do ecumenismo atual. Devido á ameaça política que os ateus representavam, os governos pré-modernos negavam-lhes qualquer proteção. Apoio filosófico a esta perseguição é abundante no início da filosofia ocidental, por filósofos tão diversos como Platão, Agostinho ou Tomás de Aquino, que achavam legítima a punição do ateísmo por ser um crime contra a sociedade. Argumentavam que os ateus deviam ser excluídos da cultura política, reeducados à força e, em alguns casos, condenados à morte. E Thomas More, um dos primeiros humanistas, descreveu na “Utopia” que a tolerância religiosa se alargaria a todos os residentes exceto os que não acreditavam em Deus ou na imortalidade da alma. Locke, de certo modo, não rompe completamente com os seus antecessores ao recusar conceder aos ateus e agnósticos os mesmos direitos e privilégios políticos e legais de que beneficiavam os seus concidadãos mais devotos. Locke não queria matar ateus, mas também não lhes concedia todos os benefícios da cidadania.

Locke negava a tolerância aos ateus não por causa de não serem tementes a Deus, mas por causa de não se poder confiar neles no cumprimento das suas promessas; nos seus testemunhos sob juramento num tribunal; e a capacidade para governar com lealdade os compromissos com o povo. Os ateus desleais ameaçavam fazer ruir a capacidade dos novos governos liberais para proteger o mundo comercial que estava a desenvolver-se conjuntamente com a estrutura política do liberalismo clássico. Seja qual for a razão de ser que justifique a intolerância perante os ateus, a perseguição jurídica destes era muito comum nos estados liberais do início da época moderna. Por exemplo, na Inglaterra, os ateus continuaram a sofrer impedimentos legais graves até ao fim do século XIX.

Pierre Bayle foi um outro britânico contemporâneo de Locke que escreveu tratados filosóficos muitíssimo disseminados sobre muitos dos temas da tolerância religiosa. Muito enquadrado intelectualmente no Iluminismo, ao contrário de Locke, Bayle argumentou que o governo não deve fazer valer a crença religiosa através da lei, devendo os governos proteger os ateus da pressão por parte dos crentes religiosos. Os governos tinham o dever político de respeitar as decisões individuais sobre questões de fé religiosa. Mesmo indivíduos que tenham chegado à conclusão, que Deus não existe.

Bayle cultivava o espírito do ceticismo que enquadrava o pensamento do mundo moderno. Por conseguinte, nenhuma autoridade política poderia impor através da lei um conjunto particular de preceitos discutíveis e insuscetíveis de prova sobre a existência de Deus. A fonte mais comum da ação jurídica contra os ateus ocorria quando as ideias ateias se expressavam de um modo que ofendia as sensibilidades da cultura religiosa dominante. A Grã-Bretanha, por exemplo, mantém o crime de blasfémia no direito comum. Este crime aplica-se a qualquer publicação que contenha qualquer conteúdo insolente, ultrajante, grosseiro ou grotesco para com os elementos mais sagrados das religiões. Acaba por incidir mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, porque não é por se ser ateu, ou defender ideias ateístas que se é punido. É mais pela forma como se ofende a sensibilidade do crente. Assim, a religião pode ser criticada, como faz Richard Dawkins, mas numa linguagem decente e moderada. O problema com estas leis é serem formuladas de modo muito vago em relação a um certo tipo de linguagem.

Nos Estados Unidos da América, paradoxalmente, as coisas correram de outra maneira. A Constituição e a Carta dos Direitos adotaram as disposições mais amplas que era possível quanto à liberdade religiosa. Thomas Jefferson desempenhou um papel importante no desenvolvimento da liberdade religiosa americana. Jefferson não era ateu, mas tinha ideias muito liberais para o seu tempo. Ele era um deísta, acreditava no deus naturalista, no Grande Arquiteto dos maçons, que não intervinha diretamente nos assuntos humanos.

O paradoxo reside no facto de o país ser constitucionalmente secular e ao mesmo tempo os Presidentes jurarem sobre a Bíblia e sob Deus a sua lealdade com o povo na sua governação. Tal tem resultado na prática uma tendência maior do que nos restantes países ocidentais para abraçar oficialmente a religião, ostracizando assim politicamente os ateus. Atualmente os EUA têm uma das mais elevadas taxas de filiação religiosa evangélica comparado com os restantes países do hemisfério norte do planeta. E o atual presidente reflete diretamente as crenças e preconceitos religiosos que predominam na população em geral. Apesar de contrário à Constituição, o governo dos EUA subscreve a religião abertamente com frequência em muitas das suas declarações oficiais.

Em muitos aspetos, os Europeus enfrenam uma tarefa mais simples do que os Norte-Americanos em relação à liberdade religiosa e em coerência com as suas Constituições. Em contraste, os Norte-Americanos operam numa atmosfera política profundamente hipócrita e contraditória. Por um lado, a Constituição é muito clara e específica quanto à separação da religião do poder político e dos papeis do Estado do ponto de vista administrativo. Mas por outro lado, a cultura política dos EUA está eivada de expressões obrigatórias de devoção religiosa pública, tendo o governo respondido às perspetivas religiosas da população endossando abertamente valores religiosos.Para terminar, uma palavra ainda para o ambiente que se vive a nível académico, sobretudo nos Departamentos de Filosofia, onde se encontram hoje em dia os mais brilhantes filósofos nos seus argumentos a favor do teísmo. Só para mencionar os representantes mais proeminentes da filosofia teísta contemporânea nos EUA escolho Alvin Plantinga – Universidade de Note Dame, South Bend, Indiana; e William Lane Craig – Depois de uma temporada de um ano em Westmont College nos arredores de Santa Bárbara, foi estudar para a Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Estes autores elevaram muito a fasquia no campo dos debates filosóficos contemporâneos sobre religião, com os seus escritos elegantes, incisivos e muitíssimo influentes. Plantinga, nos seus argumentos a favor da fé religiosa, escreve: “É razoável acreditar que Deus existe mesmo que não existam argumentos, razões ou indícios favoráveis à afirmação de que Deus existe.” Plantinga rejeita pura e simplesmente, sequer o desafio de procurar indícios, para além de ter rejeitado a motivação epistemológica fundacionalista subjacente a grande parte da filosofia ocidental.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Religiosidades


Tudo começa com os rituais funerários, suspeitando-se que já há 60.000 anos os Neandertais ritualizavam a memória dos seus mortos. Há efetivamente no homo sapiens um sentido de transcendência, sentido esse que é sobrenatural, identificado com o nome de espiritualidade, indefinível, ora de um Eu fugidio, ora de um Deus omnipresente, algo maior acima de nós. É o nível da autodeterminação aberta ao infinito numa relação transcendente que os meios científicos não conseguiram ainda compreender. É ainda difícil uma aproximação científica de tipo experimental e analisável de forma independente, na perspetiva de terceira pessoa. De que maneira se relaciona essa qualquer coisa com o corpo, e em particular com o cérebro, está ainda por compreender.

Depois, no despertar da consciência moral, surgiu a cultura há 30.000 anos tendo deixado vestígios em pinturas rupestres, pedaços de osso trabalhados, estatuetas relacionadas com a fertilidade, ídolos domésticos e antigas práticas funerárias. Só mais tarde, no dealbar da agricultura neolítica, encontramos as primeiras ressonâncias da mitologia. Desenvolve-se a mente criadora de mitos, comum às culturas que a partir do fim da era glacial apareceram em todo o lado. Portanto, desenvolveu-se no cérebro humano a fonte do imaginário, dos mitos e da religiosidade que é comum ao sapiens de todos os tempos e lugares. O tal inconsciente que se mostra através das emoções. E para o perceber das duas uma: ou procuramos as suas pistas subliminares por investigações neuropsicológicas; ou as captamos por um qualquer sexto sentido, que não é adquirido, mas inato, através de uma panóplia de sinais discretos numa nuvem enigmaticamente fugidia. A dimensão da transcendência humana não se faz representar apenas na Religião. Com igual grau de importância e necessidade se faz representar na Arte. Que nada tem a ver com aquilo que se designa por instinto.

Filosoficamente falando, enquanto o instinto remete para a imanência ontológica, o espírito remete para a transcendência ontológica. É o sentido psicossomático que traduz o imanente, objeto da Psicologia e da Psicoterapia. É o sentido religioso que traduz o transcendente. A angústia existencial, como é da esfera espiritual, não é resolúvel pela abordagem psicológica consciente, mas por uma atitude que classificamos de filosófica.

Na modernidade tardia ou pós-moderna ocidental vivemos uma racionalidade que preconiza uma religião sem Deus. Vivemos num mundo secularizado, um mundo predominantemente de ateus e agnósticos, em que as pessoas continuam à procura de um sentido, mas sem fé em Deus. É um tempo de Igrejas a afundarem as suas instituições, num mar de escândalos sexuais e corrupção financeira.

Tudo se desencadeou nos finais da década de 1960 em que os jovens estudantes acreditaram na ideia utópica que era possível mudar o mundo através do amor livre. Na Califórnia as universidades fervilhavam em grupos políticos de esquerda que se manifestavam contra a guerra. Viviam-se as atrocidades da Guerra do Vietname. Em Paris dá-se uma nova forma de revolução que foi para a história como “O Maio de 68”. Na China Mao Tsé-tung havia encetado em 1966 uma Revolução Cultural com uma profunda campanha político-ideológica que cativou os jovens universitários de Paris.

Mas quando entrámos nos primeiros anos da década de 1980 todos os centros de estratégia política se tinham transformado em lugares de meditação importados da Índia e da China. O zen e o taoismo passam a ser a “moda que está a dar” no Norte da América e no Oeste da Europa, e a meditação transcendental na América do Sul. E as livrarias já se enchiam de livros de autoajuda, esoterismo e misticismo. E agora, inícios do século XXI, o que está a dar, sobretudo nos Estados Unidos da América, são os Evangélicos com um fortíssimo assento neocapitalista.

Filósofos como Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Jean-Luc Marion e Gianni Vattimo – com o novo conceito de teologia desconstrutiva ou negativa, deixaram uma porta aberta para a religião, mas para uma religião sem Deus. Derrida via que os “três caminhos religiosos de vida” do Pseudo-Dionísio (+/- 500 d.C.) conduzia à ideia de que o pensamento humano da transcendência desembocava em última análise numa aporia interrompida pelo Nada absoluto. Mas para Marion, pelo contrário, o pensamento humano sobre a transcendência leva a deixar-se submergir por uma plenitude divina inexprimível, inacessível ao conceito, e que não é possível nem anexar nem manipular.

O Ocidente conhece uma metafísica da pessoa para a qual a divindade tem pelo menos traços “pessoais” como a consciência e o amor. Mas o Oriente, pelo contrário, a absoluta transcendência não tem nada a ver com o Si. E por isso não se põe a questão da revelação nem da oração nos termos das religiões monoteístas ditas do Livro. Todos os nossos conceitos não são adequados para exprimir coisas divinas, incluindo os que utilizamos em relação a Deus. Todos os nossos conceitos e imagens de Deus são, sem nenhuma exceção, invenções e produções humanas. Mas as manifestações do divino em si não. Daí as religiões orientais falarem de nirvana, anatman (vazio) e mesmo de nada.

Para todos os que sofrem, a natureza da comunidade crente exige que a Igreja tome uma forma humana credível, tanto masculina como feminina, e que ofereça uma tradução da sua mensagem evangélica mais próxima do humano e mais criticamente adaptada ao pensamento contemporâneo. A coerência ética e a credibilidade da fé são assim os pressupostos mais importantes. A experiência de contradição da nossa humanidade cristã e do nosso cristianismo inumano é superabundante: ódio xenófobo; nacionalismo fanático; fanatismo ideológico na guerra santa; violação de crianças; e desigualdades sociais e de género.

Há já vários anos que há médicos sem fronteiras, trabalhadores sociais sem fronteiras e toda a espécie de voluntários sem fronteiras. Os tempos mudam sempre e hoje é a humanidade cristã que mais uma vez está em jogo. Estamos de novo perante novas escolhas. De que escolhas estou a falar?

Bem, situo a questão na Europa da União Europeia, que presentemente tem problemas em várias frentes. E no que concerne à religião, deveria ser escolhida a conceção de uma Europa enquadrada pelos valores do “pluralismo religioso”, que inclui a laicidade e o ateísmo, em vez dos valores exclusivos do laicismo.

Não há determinação do ethos europeu sem memória histórica. Certamente a democracia radica no consenso, mas o ethos da democracia radica na memória. Parece que a Europa perdeu a sua memória pura e simplesmente, como se se tivesse tornado vítima daquela amnésia cultural progressiva, que aparentemente muitos europeus consideram ser o progresso autêntico.

A singularidade cósmica


As respostas que os cosmólogos e os astrofísicos nos dão às perguntas que lhes fazemos acerca do Universo, são respostas conjeturais apenas ao como e não ao porquê. A cosmovisão atual dos cientistas não se mete por nenhuma tese meta-científica. O raciocínio metafísico e teológico faz-se por outras vias. No entanto, ainda existem resquícios do deísmo, em que o Genial Arquiteto no início dos tempos criou o mundo como uma máquina perfeita que agora marcha por si mesma, enquanto Ele se retirou não se sabe bem para onde. Deus no céu atento ao mundo, passivo, atuando só de vez em quando para fazer um milagre ou outro, movido por petições e sacrifícios, pedidos diretamente pelos seus fiéis, ou por recomendação dos santos e santas. O deísmo é a conceção que os filósofos e os cientistas do Iluminismo abraçaram, agora guardada preferencialmente pela Maçonaria. Uma conceção de Deus em tudo idêntica à anterior, mas que nega a providência divina e, por consequência, a sua intervenção no mundo. Nesta conceção, Deus é uma espécie de relojoeiro, que fez o mundo e o abandonou à sua sorte. Mas o porquê do aparecimento do mundo, muito menos o para quê, para isso não contem connosco. Por contingência, tudo até poderia nunca ter existido.

Se antes de Kant as provas da existência de Deus tinham um caráter cosmológico, a partir de Kant sofreu uma viragem antropológica, marcada por uma intensa emergência de subjetividade. Quer dizer, se antes a contingência se descobria sobretudo na observação do cosmos, hoje a contingência remete prioritariamente para a realidade humana.

A nível filosófico continua a ser possível tanto uma interpretação ateísta como teísta do big-bang. Esta teoria foi muito saudada pelas autoridades religiosas do Vaticano. Mais controversa é a finalidade no mundo, quando se tenta traduzir acaso e necessidade no mundo. Hoje é muito mais difícil uma cosmovisão circular de um mundo de matéria eterna. Hoje é a complexidade imensa de uma evolução que nasce de uma imensa explosão de energia incalculável. Como é que a ordem pode ser fruto da matéria abandonada a si mesma contrariando a entropia? Não sabemos.

De todas as crenças religiosas, a principal é a crença em Deus e, por isso, de um modo geral, os problemas mais importantes investigados pelos filósofos da religião estão relacionados com essa crença. Esses problemas são os que dizem respeito à existência, à natureza e à atividade de Deus. As grandes religiões monoteístas ocidentais ― o judaísmo, o islamismo e o cristianismo ― partilham uma conceção da natureza de Deus a que normalmente se chama teísta. De acordo com esta conceção, Deus é um ser pessoal, espiritual, sumamente sábio, sumamente bom e sumamente poderoso, que criou o mundo para o homem, que intervém no mundo por intermédio de milagres e profecias e que, graças à sua providência, protege o homem.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Cientistas, filósofos e teólogos: diálogo ou disputa entre trincheiras?


Nem cientistas, ainda que Prémios Nobel no seu campo, nem teólogos se devem arrogar a superioridades intelectuais para estancarem qualquer tipo de diálogo. Todos temos a ganhar com o intercâmbio de ideias entre diferentes maneiras de ver o mundo. No caminho que foi feito na Europa em direção à secularização, há uma história lamentável na luta pelo prestígio e pelo poder que se tem travado sobretudo entre os campos científico e teológico. Quem o diz, é Jürgen Habermas na sua “Razão Comunicativa”.

Em primeiro lugar, teologia não é a mesma coisa que filosofia da religião, nem ciência das religiões. A teologia é o estudo sistemático do conjunto de crenças, tanto reveladas como racionalizadas, de uma religião específica, com o objetivo de dar forma e coerência a uma determinada doutrina. Embora teologia não seja exatamente o mesmo que apologética religiosa, isto é, que defenda a crenças numa dada religião, está muito próxima dela. Ora, de acordo com o que acabámos de dizer, há duas razões que impedem a teologia de se identificar com a filosofia da religião. A primeira é que a filosofia da religião não é uma apologética religiosa. O género de estudo que se faz em filosofia da religião é independente de qualquer religião particular. A segunda é que a filosofia da religião não faz qualquer apelo à revelação.

A filosofia da religião também não se confunde com a psicologia da religião. Podemos dizer que, em geral, a psicologia é o estudo dos processos mentais e dos comportamentos humanos. Por conseguinte, a psicologia da religião é o estudo dos processos mentais e dos comportamentos associados com a religião. Em psicologia da religião estuda-se, por exemplo, os fenómenos da conversão ou da experiência mística, com o objetivo de formular teorias que expliquem os processos mentais a eles ligados. Num sentido diferente, a psicologia da religião também pode ser entendida como a busca das causas psicológicas das crenças religiosas. Um dos primeiros a fazer psicologia da religião neste sentido da palavra foi David Hume, no século XVIII, com a obra História Natural da Religião. A filosofia da religião também não é sociologia da religião. A sociologia é uma ciência que estuda as sociedades humanas, as suas instituições, comunidades, populações, grupos, etc., e procura determinar como interagem e evoluem. Assim, a sociologia da religião estuda as instituições e comunidades religiosas e procura compreender a sua distribuição e influência nos diferentes sectores da sociedade. Por muito interessante e importante que este estudo possa ser, é muito diferente do estudo efetuado em filosofia da religião.

Quando Derrida descreveu a différance como sendo, em si, nem uma palavra nem um conceito, mas a condição de possibilidade quase transcendente das palavras e dos conceitos, isso pareceu-se bastante com o deus absconditus da teologia negativa. Derrida fazia questão de dizer de si mesmo que era “justamente considerado um ateu”, porque em bom rigor não tinha maneira de saber se o era realmente. Daí que muitos dos seus pares na Academia achassem que Derrida era um teólogo negativo. Para Derrida, sendo um filósofo de esquerda conotado com o pós-modernismo pós década de 60 do século XX, Deus não é um ser lá em cima, nem algo fora da mente humana. A transcendência metafísica está para lá da linguagem de um sujeito humano autónomo. O cristianismo é apenas uma história construída com imagens no próprio chão do nosso ser, que agora, nesta era pós-moderna, precisa de ser desconstruída pela filosofia.


Mark C. Taylor em: “Erring: An A/theology, 1984” – o livro que foi para muitos leitores a primeira inserção da obra de Derrida na teologia, descreve a desconstrução como a “hermenêutica da morte de Deus”, querendo dizer não a a dialética modernista preto-ou-branco, mas a indecidibilidade matizada do “a/teológico”, na qual se atrapalha a distinção clara entre o teísta e o ateísta. Tomado em termos estritamente filosóficos, o pós-modernismo é uma tentativa persistente de deslocar uma oposição categorial fixa entre teísmo e ateísmo. Os pós-modernistas identificam as maneiras como estes opostos dependem de uma estrutura comum.


Slavoj Zizek, um filósofo marxista/lacaniano, queixa-se que o pós-modernismo é um tipo de permissividade no qual tudo é possível, inclusivamente o regresso da religião sob a designação de políticas da identidade, correção política – não apenas a religião fundamentalista e a religião Nova Era, mas até a religião sem religião.

Temos várias vozes dentro da cabeça de um eu que diz eu acredito; ou eu não acredito. Há um inconsciente que fala, de modo que nunca alcançamos esse tipo de identidade própria de um si transparente. Nunca sabemos até que ponto a nossa crença ou descrença é uma forma disfarçada do seu oposto ou de uma terceira coisa. Não temos maneira de monitorizar a verdadeira distância entre um ateu que afirma a justiça por vir e um crente religioso que afirma o advento de uma era messiânica. As palavras teísmo e ateísmo são demasiado simplistas para descrever o que se passa. 

Para a teologia, a oportunidade autêntica não reside num aproveitamento apologético que tenta fazer com que os conteúdos científicos, enquanto tais, tenham uma tradução religiosa. O que deve fazer é a sua interpretação, ou seja, o seu trabalho hermenêutico no que respeita às suas implicações filosóficas na inteleção do Mistério. A chave para a compreensão última da realidade. Trata-se, pois, de uma interpretação que se apoia na convicção e na descoberta de uma presença não visível, mas implicada no que se vê. Nunca é demais recordar que a religião não é algo caído do nada, pois resulta de um processo que é inerente à condição humana, e como tal suscetível de tocar qualquer um. Não, claro está, no sentido de que tenha de convencer a todos, mas na revelação do seu modo de interpretação.

Por seu lado a ciência está no seu direito de exigir provas, e que nada aceita sem a correspondente verificação ou falsificação, salvo as devidas distâncias para tudo aquilo que por definição transcende o físico e o empírico. Aliás a ciência está hoje em boa posição para pensar assim, pois tem boa experiência dos seus limites intrinsecamente marcados pelas advertências feitas pelos métodos da Fenomenologia Husserliana.

Uma crença muito difundida é a que identifica a filosofia da religião com a fenomenologia da religião. A fenomenologia da religião é a tentativa, por um lado, de descrever os fenómenos religiosos de modo a revelar as crenças e atitudes dos crentes e, por outro, de classificar as atividades, as crenças e as instituições religiosas. Inclui-se neste estudo a compreensão das categorias de sagrado e profano, assim como as relações dos crentes com os objetos que se incluem nestas categorias. Uma vez mais, este é certamente um estudo muito interessante, mas também não é filosofia da religião. A filosofia da religião é apenas a busca da justificação racional das nossas crenças religiosas.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Como é que se gerou a religião a partir do nada?


O Semanário Expresso desta última semana apresenta um estudo em que nos últimos 15 anos foram admitidos 853 grupos religiosos pelo Instituto de Registos Notariais, 97 nos últimos cinco anos. E ao mesmo tempo que ainda vemos peregrinos a deslocarem-se no 13 de maio a Fátima, as pessoas sem religião continuam a aumentar. A diversificação religiosa está a fazer o seu caminho em Portugal, embora 90% sejam Igrejas Evangélicas.

A religião ainda hoje toma conta das respostas para aquelas perguntas que vão resistindo à nossa capacidade de as desmentir pela evidência científica. Lacunas que constituem para alguns crentes uma espécie de seguro de vida, no momento em que, apesar de a religião católica não estar a gozar de muita boa saúde. Se alguém rezar pedindo a Deus para que uma doença sua ou de um familiar próximo cure, e por fim isso não acontecer, algumas pessoas até podem perder a sua fé por falta de credibilidade das suas rezas. Mas o que é mais frequente acontecer é arranjar explicações para o falhanço ser humano, talvez quem rezou, ou a pessoa doente, tenha feito algo terrivelmente errado. O que é notícia é o milagre, ainda que seja contemplado apenas um por cada cem mil pedidos.

Alguns antropólogos preferem inverter a pergunta, achando estranho que haja ateus, uma vez que a religiosidade é uma característica intrínseca à espécie humana. O que carece de explicação não é a fé religiosa, mas sim a sua ausência.

Uma hipótese é a religião ter surgido na altura em que o género homo – de que não apenas faz parte a espécie sapiens (nós), mas pelo menos mais cinco, das quais o homem de Neandertal é a espécie mais conhecida – organizado em sociedades de caçadores-recolectores começou a fazer perguntas, ainda que de forma ainda muito rudimentar, sobre a morte e outros fenómenos muito surpreendentes como tremores de terra, tempestades raios e trovões, e por aí adiante. Pela última estimativa, os indícios mais antigos de religião datam de há cerca de 60.000 anos.

O homo sapiens, como o próprio nome indica, ávido por explicações de tantos acontecimentos, de forma inconsciente e intuitiva construiu um corpo de explicações a que hoje chamamos religião. Explicações, por exemplo, acerca do princípio e o fim de todas as coisas. Os escritos bíblicos, para dar outro exemplo, fala-nos dos fins dos tempos e do mundo em termos apocalípticos.
Bem, a religião e a religiosidade são um fenómeno que ao longo da história da humanidade, apesar de ter estado sempre presente em todo o tempo e lugar, e ter contribuído para muita salvação, também tem dado muitas dores de cabeça a todos aqueles que na margem da estrada foram considerados hereges ou infiéis.

Tendo como boa, a ideia de que temos um mundo interno, que é o mesmo que nos é revelado nos sonhos, em situações limite – seja numa calamidade por ação dos elementos físicos, seja por uma convulsão de ordem emocional – esse mundo interno sobrepõe-se à razão e subjuga-a de forma a que seja a religiosidade inata a tomar as rédeas da sua conduta.

Os povos que formaram as primeiras civilizações desenvolveram mitos. Ao longo do tempo, à medida que que as suas aldeias se tornavam cidades e se convertiam em Estados, os mitos transformaram-se em histórias complexas e interligadas, que formaram a base de intrincados sistemas de crenças com os seus rituais organizadores centrais das culturas. E assi chegámos às religiões. É o cariz sagrado dos mitos que os separa dos outros tipos de histórias, tais como lendas e contos populares.

Chamo a atenção para a distinção entre mitos, lendas, fábulas e contos populares. As lendas relatam histórias com algum fundamento em acontecimentos humanos significativos, mas não divinos, que foram adulterados e fantasiados de geração em geração desde tempos ancestrais. Os mitos antigos que formataram a nossa cultura, principalmente gregos e egípcios, mas também célticos, apresentam um panteão de divindades, que apesar de padecerem do mesmo tipo de idiossincrasias que os humanos, possuíam de uma aura sobrenatural, portanto divina, porque eram eles que controlavam os acontecimentos do mundo natural. Em alguns casos os mitos e as lendas fundem-se para dar lugar a alegorias religiosas. Mitos e deuses criados à imagem humana. Um dos arquétipos universais mais difundido em mitos e lendas é o do dragão, símbolo do mal e do caos que se encontra em todas as civilizações e culturas – esculturas em osso nos inuítes, pergaminhos chineses, e por aí fora como nas várias civilizações que ocorreram nas margens mediterrânicas e do Médio Oriente.

É difícil afirmar o que surgiu primeiro – o ritual ou o mito. Quando é que o mito se transforma em religião? E qual é a diferença? A questão essencial subjacente é a seguinte: se os mitos foram outrora criados para responder a perguntas fundamentais e resolver problemas para lá do controlo dos mortais, quando é que estes mitos se transformaram em religião? UM sistema organizado de crenças, cerimónias, práticas e venerações que se podem centrar num Deus ou divindades supremas, ou em vários deles e divindades. Dos rituais, a oração é a mais comum. E no cristianismo, no ritual da eucaristia, pão e vinho são transformados no corpo e no sangue de Cristo. Em suma, um rito de sacrifício que é o acontecimento central nos rituais do cristianismo, como era em mutas outras religiões do passado.

O que precisamos de fazer para que eles não se continuem a rir com tanta desfaçatez?


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Laicidade e religiosidade


A laicidade é um conceito que resultou da necessidade de separar tudo aquilo que fazia parte da vida social, incluindo a moralidade e as instituições que não tinham necessidade do domínio religioso. Filósofos e teólogos da esfera do cristianismo procuraram entender-se quanto às dicotomias filosófico/teológicas: religioso/secular; sagrado/profano; espiritual/temporal; eclesiástico/laico.

A doutrina laica no que concerne à moralidade, considera que a moralidade deve-se basear em considerações racionais, tendo em vista o propósito do maior bem-estar de todos neste mundo de forma independente de considerações relativas a Deus ou à vida para além da morte. E as instituições públicas, em especial as dedicadas à educação universal, devem ter uma orientação baseada em doutrinas laicas e não religiosas.

Ora, a laicidade foi uma evolução exclusiva do mundo cristão, não do mundo muçulmano. E isto remete para a doutrina alegadamente propalada pelos seus fundadores: Jesus Cristo e Maomé. Enquanto o pronunciamento de Jesus Cristo: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus” dava a entender que era de todo o interesse para a boa convivialidade a separação entre o poder político e o poder religioso, o mesmo não o entendeu Maomé, um profeta que apesar de tudo era evolutivamente mais novo que Jesus. Maomé voltou a recuperar o culto ancestral das formas mais antigas das religiões do Médio Oriente, do qual fazia parte integral o determinismo da autoridade do poder político que em última instância remetia para o poder divino.

Quando o laicismo foi trazido pela Revolução Francesa, num primeiro momento o islamismo viu com bons olhos o laicismo, pois parecia significar o fim do cristianismo. E para o islão isso era bom, porque retirava do seu caminho o infiel. Mas não tardou que os muçulmanos percebessem que tais ideias, que vinham no mesmo pacote das ideias científicas do Iluminismo, poderiam ser ameaçadoras não apenas para o cristianismo, mas também para o islão, e, portanto, passaram a manifestar claramente a sua oposição.

No processo de secularização que se verificou no Ocidente, Deus foi duplamente destronado, quer como fonte de soberania, quer como objeto de veneração. Na atualidade o laicismo enfrenta grandes dificuldades no Médio Oriente, porque personifica o inimigo. A jihad do aqui e agora foi inspirada em Faraj, o guia ideológico do grupo que assassinou o presidente Sadat do Egito em 1981. Na jihad, o sangue dos muçulmanos deve correr até a vitória ser alcançada. Faraj foi um dos líderes fundadores da Jihad islâmica egípcia, no final da década de 1970, um dos mais importantes movimentos islamistas radicais e violentos do mundo islâmico. Considerado culpado do assassinato de Sadat, Faraj foi executado e muitos dos membros do movimento foram forçados a viver no exílio desde o início dos anos 80. Destes, uma parte importante passou pelo Afeganistão e eventualmente integrou a Al-Qaeda, de Osama bin Laden. A seguinte frase é do próprio Faraj: “É nosso dever concentrar-nos na causa islâmica propriamente dita, o que significa primeiro e fundamentalmente estabelecer a lei de Deus na nossa terra e fazer com que a palavra de Deus prevaleça. Não pode haver lugar para dúvidas quanto ao facto de o primeiro campo de batalha da jihad ser extirpar os infiéis da liderança do mundo, e garantir a sua substituição por uma ordem islâmica perfeita. Daí virá a libertação”.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

A semiologia dos objetos



Há dias, enquanto respigava O Sistema dos Objetos, livro de Jean Baudrillard, primeira edição de 1968, grosso modo uma análise sobre a sociedade de consumo capitalista, passavam na tela da TV imagens atuais do incêndio inominável da catedral de Notre-Dame de Paris, e simultaneamente imagens de confrontos de manifestantes com coletes amarelos e a polícia nas suas imediações. Mais uma manifestação de uma série que se vem arrastando nas ruas de Paris há mais de dois meses – os denominados “coletes amarelos”.

Jean Baudrillard, sociólogo, é nome de grande destaque na ensaística francesa. O Sistema dos Objetos vincula a sociologia à semiologia. Volta-se para o mundo da cultura por meio do objeto, estudando-o na sua dupla condição, de instrumento e de signo. Através desse caráter dual (das contradições a ele inerentes) o leitor investiga o que – na incessante multiplicação e consumo de objetos da sociedade contemporânea – lhe escapa de vital e lhe sobra como inércia, trapaça ou fingimento de ação.

Vemos o mundo através de filtros, ainda a TV, mas a perder terreno para a tela dos computadores e smartphones. Interações humanas no mundo físico são agora empurradas de forma impiedosa para o mundo virtual dos dispositivos ligados em rede. Na era da internet, a ordem mundial tem sido muitas vezes equiparada à proposição de que, se as pessoas dispõem da capacidade de aceder e trocar livremente as informações do mundo, o impulso humano natural para a liberdade acabará por se enraizar e se realizar, e a história passará a avançar como se estivesse no piloto automático.

Onde já vai a sabedoria adquirida por transmissão oral de geração para geração através de anos e anos de tentativa e erro e de experiência vivida. E pelo mesmo caminho vai a aquisição do conhecimento a partir de livros. Resta agora apenas Informação – extraída pela Internet, a qual proporciona uma nova forma de vivenciar a realidade – virtual.

Ler é uma atividade que, em termos relativos, consome certo tempo; para facilitar o processo, o estilo é importante. Como não é possível ler todos os livros sobre determinado assunto, muito menos a totalidade dos livros, ou organizar com facilidade tudo o que foi lido, aprender por meio de livros é uma atividade que premia a capacidade que se tem de pensar em termos conceptuais — a aptidão para reconhecer dados e acontecimentos comparáveis e projetar padrões no futuro. E o estilo estimula o leitor a estabelecer uma relação com o autor, ou com o tema, ao fundir substância e estética.

O computador permite o acesso a uma quantidade de dados impensável no mundo dos livros. O estilo não é mais necessário para torná-los acessíveis, nem sua memorização. Ao lidar com uma única decisão separada do seu contexto, o computador oferece instrumentos inimagináveis, mas ele também estreita a perspetiva. Como as informações são tão acessíveis e a comunicação é instantânea, ocorre uma diminuição do foco no seu significado, ou mesmo na definição do que é significativo.

Assim, a manipulação da informação substitui a reflexão. Da mesma maneira, a internet apresenta uma tendência a diminuir a memória histórica. O fenómeno tem sido descrito da seguinte maneira: “As pessoas esquecem itens que acreditam poder obter externamente e se lembram de itens aos quais julgam não ter acesso.” Ao deslocar tantos itens para o domínio do que está disponível, a internet reduz o impulso que nos leva a lembrar deles. A tecnologia das comunicações ameaça diminuir a capacidade do indivíduo para uma busca interior ao aumentar sua confiança na tecnologia como um facilitador e mediador do pensamento.

O que vemos quando a tecnologia incorpora a ciência nos objetos, e se fragmenta em especializações sem fim, o mesmo não acontece nas artes e letras. Que não significa que as artes não evoluam e não mudem. Mas a boa arte, a que alcança a excelência, resiste mais ao desgaste do tempo.

Jean Baudrillard pulveriza com furor as teses de Foucault sobre o fim do Homem, na senda de Nietzsche depois de ter anunciado a morte de Deus. É claro, como ele diz: isto é um simulacro. A realidade virtual suplanta o mundo dos factos e das ações objetivas. Hoje os factos, para serem certificados como realidade, têm de passar pelos ecrãs. Não há realidade sem ecrãs que projetem a realidade na forma de imagens manipuladas. Têm de ser manipuladas. Não há imagens sem manipulação. De outra forma não seriam compreensíveis por quem não tem qualquer perspetiva crítica sobre o que acontece. Porque as pessoas estão domesticadas pela fantasia mediática.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Lembrando a morte, assim vamos libertando o engenho e a arte de viver



Depois de me ter confrontado tantas vezes contra a morte de pessoas no meu campo de batalha médica num hospital fim de linha, ter perdido muitas vezes, e ganhado algumas, agora penso na morte sem ficar desesperado ou assustado como no tempo do Teatro Anatómico, nas salas de aula de Anatomia com cadáveres deitados em bancas de mármore, que estavam guardados em arcas de formol, e ainda no tempo das aulas de Medicina Legal, no Instituto de Medicina Legal do Porto com o Prof. Pinto da Costa à frente.

Agora apenas estou preocupado com a qualidade da vida que ainda vale a pena ser vivida. Nada devo lamentar, de resto, quando já percorri mais de metade do caminho que me foi dado para percorrer, sem grandes pedras nem sobressaltos, apenas escapadelas a algumas armadilhas.
Aquele que aproveitou cada instante da sua vida para se tornar um ser melhor e contribuir para a sua felicidade e a dos outros, nada terá de temer, podendo legitimamente morrer em paz. No fim, deve-se estar feliz como alguém que realizou uma grande tarefa.

Quando cada um e nós deixar de existir, é como se tudo deixasse de existir. Podemos, em todo o caso, enquanto se está são de corpo e mente, preparar o desaparecimento do ego, aquele grande malandro. Não se deve, porém, esperar o último momento para se preparar. É assim que o sábio se prepara, que sabe que não tem tempo a perde, que o tempo é precioso e que seria vão desperdiçá-lo em tolices. Quando chegar realmente o dia da morte, morre sereno, sem tristeza nem pesar, sem apego ao que deixa para trás.
Cada pessoa caminha a partir de um ponto em que se encontra, com uma natureza, disposições pessoais e diferentes crenças. É preciso ouvir, refletir, meditar e integrar o que se compreendeu no interior de Si – bondade, paciência, tolerância… Depois, uma vez serenados os pensamentos, contemplamos a própria natureza e o sentido da vida. Mergulhados num recolhimento profundo, na solidão tranquila de um lugar retirado. Retirar-se para a solidão não é desinteressar-se do destino dos outros, muito pelo contrário. Distanciar-se da agitação do mundo permite ver as coisas numa perspetiva nova, mais vasta e mais serena. Aí chegados, a uma nova perceção da realidade, contemplamos mais do que refletimos intelectualmente a transformação do Si.

Para conseguir isso não é necessário ir para um mosteiro, ou ir até ao Tibete. Pode ser feito no dia a dia em qualquer sítio, à escolha de cada um conforme as suas circunstâncias. O que é preciso é desligar os telefones e tudo o que possa incomodar. Para se poder manter calmo e começar a tentar ver o mundo de outra maneira. A dada altura começamos a perceber que está tudo ligado, tudo interdependente, nem o eu nem o mundo são dotados de existência própria. O eu individual e as aparências do mundo fenomenal não têm qualquer realidade intrínseca. Portanto, trata-se de um estado de não-dualidade. Encontro eco desta noção em Ludwig Wittgenstein: “Os aspetos das coisas que são mais importantes para nós estão escondidos em virtude da sua simplicidade e da sua familiaridade”. O despontar da nossa compreensão da natureza não-dual, da natureza última das coisas, esbate de certa maneira o edifício conceptual que nos havia sido dado pela linguagem. A força do vivido fala mais alto do que qualquer discurso.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Do pensamento simplificado ao pensamento complexo



Sonhando na esperança de encontrar uma pessoa 
que nos dispensará a necessidade de ter por perto mais gente

Pensamento complexo é o pensamento da segunda revolução cognitiva moderna, do conhecimento multidimensional e globalizante, muito para além de Descartes, Galileu e Newton. É na interdependência dos elementos que repousa a sua essência.

Quando ouvimos alguém dizer que a sua afirmação é baseada em conhecimentos científicos, muito provavelmente se estará a referir à ciência determinista começada por Descartes e patenteada por Newton. Esta ciência, considerada uma revolução cultural na Europa, corresponde ao pensamento da primeira revolução cognitiva moderna, que foi construída sob os princípios do determinismo, em que o acaso não poderia ter lugar. E assim se distinguia do mundo das humanidades, que era o domínio das artes e letras. Ora, em bom rigor, esta é a ciência antes do aparecimento de um Werner Heisenberg, ou de um Schrödinger. Depois deles impôs-se a mecânica quântica, em que a matéria é corpuscular e ondulatória ao mesmo tempo. E por fim a teoria do caos, com a metáfora do efeito borboleta: a sensibilidade às condições iniciais pode desencadear muito depressa um sistema de consequências não-previsíveis. Gödel com o seu teorema da incompletude veio demonstrar que um sistema formal como a matemática não podia ser completo e coerente. Não podia decidir por si da sua coerência e completude. Este terramoto conceptual devastou todas as certezas de quatro séculos. Foi a segunda revolução científica, nos termos de Thomas Kuhn: “uma mudança de paradigma”. Os cientistas descobrem coisas novas e diferentes com novos instrumentos. Quando os paradigmas se alteram o mundo muda com eles.

A ordem e a desordem opõem-se, mas nenhuma delas exclui a outra. Pelo contrário, é na sua desintegração que o Universo se organiza. E a vida na Terra resulta da evolução natural do Universo, que para continuar a evoluir os indivíduos têm de morrer. Do mesmo modo, as organizações sociais não podem evoluir sem conflituar. Uma empresa mal gerida morre. Mas também morre sem inovação. E assim com a morte da empresa tanto morre o gestor como o inovador. Portanto, a empresa para se manter precisa do gestor e do inventor.

Ora, entre a causa e o efeito há uma recursividade virtuosa, em que indivíduos e sociedade interagem para se produzirem mutuamente. Sociedade e indivíduos são uma existência única, indissociavelmente ligados de forma recursiva: o indivíduo influencia a sociedade e a sociedade influencia o indivíduo. É o princípio da auto-organização. E assim é a sociedade democrática: diversidade contraditória de ideias.

Contradições e complementaridade entre os interesses das pessoas e dos grupos, tensões permanentes, conflitos – a procura de equilíbrio com a alternância democrática. Os cidadãos criam a democracia, que por sua vez cria os cidadãos. A cidadania é importante para que cada um seja realmente portador da consciência do que representa toda a sociedade como uma unidade, partilhando os mesmos valores fundamentais e as mesmas regras do jogo. Digamos, que é esse o papel de uma Constituição, num país onde todos devem partilhar uma certa consciência democrática. Esse é o sentido que deve ser seguido para que não se perca a confiança, ingrediente essencial na coesão das sociedades e dos povos em geral.

É verdade que hoje as pessoas estão muito mais interconectadas que no passado ainda recente. Mas ao mesmo tempo, as novas formas de as pessoas se relacionarem através das redes sociais da internet provocaram a emergência de uma nova vida, mais urbana e mais egoísta, cheia de angústia e de solidão. Este é o paradoxo da atual sociedade em rede.

A entrada na era das redes sociais digitais provocou em nós uma nova forma de apreendermos a realidade. E daí uma nova forma radical da representação que fazemos da realidade. Pelo menos é uma mudança que vai levar tempo até nos prepararmos para melhor compreendermos a fenomenologia deste novo paradigma. Ainda são as pessoas formadas no paradigma precedente – mecanicista, lógico, linear, fechada na racionalidade dedutiva – que detêm o verdadeiro poder e determinam as políticas que regem a vida da geração que já nasceu com a internet. Já se sabe falar nos novos termos, mas ainda não se encontrou o verdadeiro sentido disto tudo, e o verdadeiro significado para o traduzirmos em atos, em razão prática, em ética, em valores.

Porque o tempo não trava a mudança de paradigma em curso ainda por fechar, não temos uma visão clara de todas as implicações e consequências. É como se estivéssemos na condição de cego a esconder os olhos. É essa a grande dificuldade da representação sistémica que impõe uma cultura flexível e não a cultura rígida da obediência e da disciplina. Nesta nova era em curso, é da desordem criativa e do sentido de risco que irá nascer uma nova ordem mundial.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Ética e equanimidade em Espinosa

Equanimidade é aquela serenidade de espírito que nos dá a coragem (conatos nos termos de Espinosa) de não sermos soberbos no sucesso, nem pusilânimes na adversidade; e aquela imparcialidade e retidão que suporta uma ética verdadeiramente universal, que reflete a aspiração mais profunda de todo o ser vivo, tanto do homem como do animal, a saber: procurar o bem-estar e evitar o sofrimento.

Ao falar de ética não estou propriamente a entrar na genealogia do bem e do mal em absoluto, à moda de Nietzsche a seguir as pegadas de Espinosa, mas a trazer para a consciência o que podemos contribuir, por atos, em prol de um menor sofrimento, e se possível felicidade. Por um lado, a nossa motivação para isso. Por outro lado, o resultado dos nossos atos. É claro que estamos longe de dominar a evolução dos acontecimentos que não dependem de nós, seja ao nível da natureza da força dos elementos, seja ao nível das atitudes alheias. Mas, sejam quais forem as circunstâncias, podemos sempre adotar uma motivação altruísta. A afirmação da vida e do mundo como são, a celebração do aqui e agora através da expressão máxima de nossa potência é, para Espinosa, o caminho e a vivência a que chama liberdade. Assim como Nietzsche dedica à superação do mundo-espírito moralizado pelo ressentimento, Espinosa também se eleva em repúdio à nefasta experiência da vida como martírio.

Diz Espinosa: “Aquele que compreende retamente que todas as coisas se seguem em virtude da necessidade da natureza divina, e que se produzem segundo as leis eternas da natureza não encontrará em verdade nada que seja digno de ódio ou desprezo, nem terá pena de ninguém, senão que se esforçará, tanto quanto a virtude humana o permite, para fazer o bem. A isso se soma que quem costuma ser tocado pela pena, e se comove diante da miséria ou das lágrimas alheias, faz coisas das quais logo se arrepende, tanto porque, se guiado pelo mero afeto, não faz nada que saiba com certeza ser bom, porque as falsas lágrimas enganam facilmente”.

Acima da motivação altruísta precisamos de lhe juntar a sabedoria que nos permite distinguir a forma das aparências que são enganadoras. Por exemplo, pode parecer uma violência privar um alcoólico crónico com cirrose hepática de uma garrafa de álcool onde ele pensa que lhe estamos a cortar a oportunidade de ser feliz. E, todavia, o que lhe estamos a proporcionar é uma melhor qualidade vida, mais saudável e porventura menos curta. Ou por exemplo, não é uma violência se uma mãe usa de uma certa brutalidade sobre um seu filho para que ele não sofra um atropelamento que lhe vai tirar a vida. O seu ato só é violento na aparência: poupou-o à morte. Ou ser igualmente violento para impedir um assassínio.

Esse entendimento do caráter necessário das coisas parece ser para Nietzsche uma forma não apenas de afetar-se menos com tristezas, mas também uma maneira de ‘embelezar a vida’. Inversamente, se não é possível amar o que se nos apresenta, seja ele bom ou mau, então talvez possamos simplesmente seguir em frente.

Nas palavras de Nietzsche: “Olhando a grande cidade, Zaratustra suspirou e ficou um longo tempo calado. Um louco furioso, movido por um forte espírito de desafeto e vingança, lhe havia prevenido que só encontraria o que há de mais deplorável naquele lugar. Também eu estou desgostoso nesta grande cidade. Aqui e ali nada há o que melhorar, nada há que piorar. Ai desta grande cidade! Quereria ver já a coluna de fogo em que se há de consumir. Isto, contudo, tem o seu tempo e o seu próprio destino. A ti, louco, te dou este ensinamento a modo de despedida: por onde já não se pode amar, deve-se... passar!

A sabedoria consiste em saber distinguir a verdadeira felicidade de outras imitações tal como seja o prazer imediato e efémero. Ora, esta sabedoria não é adquirida através de dogmas, mas sim através da experiência. Tudo isto não de forma alguma sem a presença de regras de conduta e de leis. Elas são indispensáveis como expressão da sabedoria acumulada no passado.

No debate filosófico atual em ética, avultam duas correntes que geralmente se opõem: o imperativo categórico kantiano e o utilitarismo britânico. E para contextualizar este tópico recorro a um romance da autoria de William Styron – A Escolha de Sofia. O livro conta a história de um jovem sulista que pretende tornar-se escritor e vai viver para Brooklyn. Aqui conhece um casal que vive um turbulento caso de amor e ódio. Nathan Landau, um judeu que se apresenta como um cientista, e Sofia Zawistowk, uma polonesa sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. O jovem envolve-se com Sofia, assombrada pela terrível escolha que teve de fazer um dia. Está em Auschwitz com os dois filhos, até que um dia é intimada por um oficial nazi para designar qual dos seus filhos irá para a câmara de gás. O outro será poupado. Se não o fizer, então irão os dois. É um pungente desafio, forçar Sofia a uma tomada de decisão insuportável.

Um filósofo kantiano, aconselharia Sofia a optar por não agir, e deixar as duas crianças à sua sorte por ação alheia. Será falta de coragem deixar morrer os filhos a expensas da consciência alheia, para não carregar na sua consciência um peso tão grande, uma escolha tão dolorosa, como o de sacrificar um dos filhos à morte. Mas um filósofo utilitarista pensa de um modo diferente. Então vejamos: “o gesto de Sofia não tem de ser visto como o sacrifício de um filho, mas sim a salvação do outro. Fecharia os olhos e entregaria um dos filhos à Sorte”. Aqui é fácil perceber como podemos sair daquele dilema ético se é aceitável sacrificar um filho para salvar outro. Na formulação genérica o utilitarista é mais generoso ao exemplificar o seu ponto de vista com a expressão "sacrificar um para salvar um milhão". É claro que Sofia era uma verdadeira altruísta. E ao ser encostada à parede, logo de imediato disse que preferia dar a sua vida e morrer em lugar de um dos filhos. E uma vez sem exemplo, o oficial nazi aceitou a proposta de Sofia.

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano, tendo nascido e morrido em Konigsberg, que na altura fazia parte da Prússia – apesar de hoje ser uma cidade russa com o nome de Kaliningrado, foi primeiro Konigsberg aquando da fundação em 1255 pelos cavaleiros Teutónicos, fez parte da Polónia de 1466 a 1656, e a partir de 1871 passa a fazer parte do império alemão. Kant apela ao sentido do Dever para decidir de maneira absoluta todas as questões morais. Não confiando nos sentimentos, defende que devemos agir em conformidade com a lei moral, ainda que esta obrigue a ir contra os seus próprios sentimentos. O Dever está condensado na sua exigência de universalidade e por isso relega para segundo plano os casos particulares. É claro que noção de absoluto e universal desemboca na crença da existência de uma entidade transcendente, ou entidades transcendentes como as Ideias e o Bem platónicos. Bem em si, residindo no universo perfeito e inacessível aos sentidos do mundo ordinário, imperfeito.

John Stuart Mill (1806-1873) um filósofo britânico defensor do Utilitarismo, tomou mais em consideração a noção de qualidade de vida, incluindo não apenas os valores morais, mas também os prazeres intelectuais. Coloca antes de tudo a defesa da liberdade individual. A única razão legítima de impedir a liberdade de cada um pela força seria quando ela fosse prejudicar outros. Preconizava uma ética pragmática assente na consideração pela natureza humana. O mal não era um poder demoníaco exterior a nós, nem o bem um princípio absoluto independente de nós. A noção de um Bem absoluto não é mais do que uma construção mental. Como poderiam o Bem e o Dever existir por si mesmos?

Pela perspetiva kantiana uma pessoa pode ser considerada um grande moralista, e, todavia, possuir um ego desmedido. Para uma ética kantiana não há problemas que um pensador ou um filósofo proponham ao mundo um sistema ético fiável, e ao mesmo tempo manifeste desvios de caráter. Como Kant era um dogmático, não tinha em conta as consequências práticas das ações reais, não aceitava que a mentira pudesse ter valor ético, mesmo quando se tratasse de salvar uma vida humana.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

“A dúvida de Cézanne” – por Maurice Merleau-Ponty. A aparência das coisas pelas sensações


Pintar é para Cézanne não separar o pensamento da visão, interpretar a natureza e tudo aquilo que se vê e que se vive. Para Cézanne a arte torna-se visível na medida em que se desenvolve “uma harmonia paralela à natureza”. O artista procura “restituir o encontro do olhar com as coisas que o solicitam”, retomando-as tal como se dão a ver, originariamente, a cada consciência, isto é, “a vibração das aparências”. Cézanne quer pintar a matéria ao tomar forma, quer mostrar as coisas em seu nascimento espontâneo. Segundo Merleau-Ponty, para Cézanne a linha divisória não está entre “os sentidos” e a “inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. O filósofo elucida: “a pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, já que ver é ter à distância, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspetos do Ser, que de alguma maneira devem fazer-se visíveis para entrar nela”.

“A dúvida de Cézanne” é um ensaio estético de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que trata da perceção nas obras do pintor Paul Cézanne (1839-1906). Em "A dúvida de Cézanne", Merleau-Ponty apresenta reflexões sobre a questão da visão e do visível, ou seja, da aparência e do ser. O exame da corporalidade e das suas relações, restitui profundidade de campo, e uma pluralidade de sentidos que o reducionismo de cunho mecanicista e naturalista lhe fizeram perder. Descobrir a interceção dos corpos, das formas, das cores, fora da banalidade do hábito, é olhar mais a fundo na diversidade. Há uma busca incansável do artista em pintar as características do visível fugidias, que instantaneamente escapam aos nossos sentidos. É a relação efémera entre a visão e o visível, num processo interminável, que provoca a investigação à sua própria obra. Inicialmente, Cézanne passa por uma insatisfação com as suas pinturas.

O desenho é resultado da cor. Estas e outras questões técnicas, tão bem desenvolvidas na linguagem de Merleau-Ponty, não aparecem como simples apresentações das técnicas de Cézanne, mas propõem uma colaboração à compreensão da leitura do real, escrita em suas obras. A pintura põe decerto em contacto com o real, com o Ser mundo visível e invisível, com a imanência das coisas. Cézanne procurava um efeito em suas obras. Ansiava transpor nas suas telas a perceção no momento em que ela se realiza. Daí a necessidade de pintar a matéria no instante em que ela toma forma, se configura em sua espontaneidade.

Durante toda a vida, Cézanne terá desejado pintar o que Balzac descrevera em Peau de chagrin: “uma toalha branca como uma camada de neve caída de fresco e na qual se elevam simetricamente os talheres coroados por paninhos doirados”. Mas em Cézanne, o uso das cores não carrega o mesmo fim que os impressionistas buscavam. O pintor explorava uma gama de cores (um total de dezoito cores) para construir os seus quadros. Uma construção que seguia rigorosas leis formais e cromáticas, e trazia uma expressão de solidez e materialidade. Para destacar as cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, Cézanne empregava o azul. Traços de azul turquesa a contornar os objetos: maçãs, pêssegos, laranjas…

A sua vida solitária, a fuga do mundo humano, confere-lhe a liberdade necessária para se poder dedicar por inteiro à representação do seu mundo visível. E foi assim que Cézanne desenvolveu um género novo de representação de objetos no espaço, dando uma profundidade espacial através de meios composicionais. Ao renunciar à perspetiva linear na representação dos objetos, ele pôde revelá-los nas dimensões impostas pela composição. A liberdade criadora de Cézanne é revelada por intermédio do sentido que o artista dava aos seus personagens, às figuras de seus quadros, ao próprio mundo que ele via. A reflexão sobre a liberdade criadora compreende o ápice filosófico da sua obra.

Cézanne respondia em relação aos Impressionistas: "eles pintam um quadro e nós (ele) tentamos um pedaço da natureza". É desta natureza, da natureza de Aix-en-Provence, que Cézanne nos deixa uma das suas maiores tentativas para ultrapassar a sua Dúvida, as cerca de oitenta montanhas de Saint Victoire. Esta paisagem que ficava perto de sua casa exerceu grande atração sobre o pintor justamente por ser o local que, de um modo muito especial, poderia tentar a ligação da arte com a natureza, não no sentido de cópia, mas no sentido de captação do momento genésico do aparecer da montanha. Cézanne pinta de um modo bastante consciente, onde a consciência é quiasma. Ele observa e pensa o mundo, mas deixa-se envolver pelo mundo para criar uma imagem que a ambos abarca num equilíbrio entre a sensação visual e a consciência daquilo que o olho vê numa totalidade quase perfeita. Esta quase perfeição implica a totalidade que se encontra na dinâmica incessante entre o homem e a natureza, entre o pintor e a coisa pintada, entre o músico e a melodia.

Merleau-Ponty com a sua filosofia da perceção, onde a imaginação trabalha para a construção da "imagem externa", subscreve Husserl quando afirmava que não "há imaginação sem perceção". Esta é uma filosofia que entende fazer da perceção o fundamento último da nossa relação ao ser. No seu livro – “O olho e o Espírito” – a mente que percebe é uma mente corpórea (na carne), uma união mente-corpo. O dualismo cartesiano é completamente banido da face deste novo modo de pensar e de ser. Neste universo, não existe pensar sem ser, nem ser sem pensar. Não existe sujeito sem objecto, nem objecto sem sujeito, não existe o Eu sem o Outro.

Na relação com a natureza, eu sou essa mesma natureza e por isso o pintor, o artista, o cientista-artista cria, faz aparecer, produz algo que de um modo muito especial o interliga naquilo que ele já é, Natureza e Ser: olhar o mundo é afinal uma expressão de quiasma. O quiasma não é somente a troca eu-outro (as mensagens que recebe, é a mim que chegam, as mensagens que recebo é a ele que chegam), é também troca de mim e do mundo, do corpo fenomenal e do corpo "objetivo", do que percebe e do percebido: o que começa como coisa termina como consciência da coisa, o que começa como "estado de consciência" termina como "coisa". É essa a tarefa, do artista: coisificar num quadro um pedaço da natureza.

É essa a tarefa do artista-cientista, coisificar no ente o Ser, que nele e por ele se revela. Evidentemente que o eu se reporta ao mundo de diversas maneiras, conforme diferentes modos de intenção, o que implica, ao mesmo tempo, que o papel da consciência dialogante com o mundo não é apenas o do espectador imparcial. É na inter-relação dos diferentes modos de ser, de sentir, de querer, de imaginar, que se encontra a totalidade da dança da existência humana. Por isso podemos afirmar que, na linha de Cézanne a inteligibilidade da pintura não é reduzida a um quadro, mas é, na sua plenitude, a tentativa de captação de um pedaço da natureza.