sábado, 27 de outubro de 2018

A genética no estudo das migrações

A informação genética é muito importante para a reconstituição das migrações populacionais ao longo da história humana. O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são duas porções do genoma humano que permite rastrear respetivamente as linhagens materna e paterna de um indivíduo. As mulheres transmitem o ADN mitocondrial aos descendentes dos dois sexos, ao passo que os homens, apesar de também possuírem obviamente mitocôndrias, não transmitem ADN mitocondrial. Em contrapartida transmitem o cromossoma Y, e obviamente apenas o sexo masculino.

O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são haploides, isto é, são exemplares de transmissão uniparental. E às diversas formas polimórficas destes marcadores presentes na população dá-se o nome de haplótipos. E um grupo grande de haplótipos, que são séries de alelos em lugares específicos de um cromossoma constitui um haplogrupo. Em genética humana os HAPLOGRUPOS mais estudados que podem ser usados para definir populações genéticas são os HAPLOGRUPOS DO CROMOSSOMA Y (ADN-Y); e os HAPLOGRUPOS DO ADN MITOCONDRIAL (ADN-mt).

Assim, dentro dos HAPLOGRUPOS DO CROMOSSOMA Y, temos o HAPLOGRUPO I2, que pode ser o haplogrupo de referência para o Homem de Cro-Magnon, remontando a 13.000-15.000 anos e tendo atingido a sua máxima frequência nos Alpes Dináricos, Balcãs. Por sua vez o HAPLOGRUPO I2a1 é de longe o maior ramo de I2 e o mais frequentemente ligado às culturas neolíticas do sudeste, sudoeste e noroeste da Europa.

Dentro dos HAPLOGRUPOS DO ADN MITOCONDRIAL, várias linhagens femininas, denominadas H, U, T, X, K e I, se espalharam por toda a Europa vindas do Próximo Oriente há cerca de 40.000 anos, cujo efetivo populacional durante o Último Máximo Glaciar seria pequeno. Contudo, no refúgio ibérico, um maior efetivo populacional criaria a oportunidade para o aparecimento de novas linhagens mais recentes. Dentro daqueles grupos o HAPLOGRUPO H, é o marcador genético mais frequente da população europeia. Nos nossos dias estas linhagens perduram, sendo ainda mais frequentes na Ibéria. Por exemplo, em 499 amostras colhidas em Portugal, 25,5% são H1. Usando o relógio molecular, as suas idades apontam para 15.000 anos. À medida que o gelo ia recuando para Norte estes grupos também iam subindo pela Europa refazendo rapidamente o seu povoamento. Portanto, o atual património genético feminino europeu sinaliza esse repovoamento europeu a partir da Península Ibérica.

Svante Pääbo dirige o departamento de genética evolutiva do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na cidade de Leipzig. Pääbo, que é sueco, muitas vezes é chamado de “pai da paleogenética”. Pääbo praticamente inventou o estudo do ADN antigo, quando anunciou o projeto em 2006, dizendo: “Eu quero saber o que mudou nos seres humanos plenamente modernos, comparando com os homens de Neandertal que tinham crânios bem grandes, maiores do que os de hoje”. Isso tornava difícil encaixá-los numa narrativa iniciada com macacos de crânio pequeno que evoluíram aos poucos até alcançarem as grandes dimensões do crânio de Einstein. Em ‘A descendência do homem’, publicado em 1871, Darwin faz apenas uma alusão passageira aos homens de Neandertal: “Devemos admitir que alguns crânios de extrema antiguidade, tais como os dos famosos homens de Neandertal, são bem desenvolvidos e espaçosos”.

Nos anos 1960, o arqueólogo americano Ralph Solecki descobriu os restos mortais de diversos homens de Neandertal numa caverna no norte do Iraque. Um deles, conhecido como Shanidar I, ou Nandy, sofrera graves ferimentos na cabeça que, presumiu-se, tinham-no deixado pelo menos parcialmente cego. Os ferimentos haviam cicatrizado, sugerindo que ele devia ter sido cuidado por outros membros do grupo. Um outro, Shanidar IV, parecia ter sido enterrado, e os resultados da análise do solo do túmulo convenceram Solecki de que Shanidar IV fora sepultado com flores. Ele interpretou o achado como evidência da profunda espiritualidade do homem de Neandertal.

Para o seu projeto, Pääbo conseguiu 21 ossos do homem de Neandertal descobertos numa caverna na Croácia. O projeto enfim começou a gerar resultados úteis quando um dos membros da equipa de Pääbo, David Reich, geneticista da Escola de Medicina de Harvard, notou algo estranho. As sequências do homem de Neandertal eram, como se esperava, muito semelhantes às sequências do homem atual. Entretanto, eram ainda mais semelhantes às de certos seres humanos do que de outros. De modo mais específico, europeus e asiáticos partilhavam mais ADN com o homem de Neandertal do que com os africanos. Então a primeira reação de Reich foi tentar livrar-se desse resultado, pensando que isso devia estar errado.

Portugal teve um papel importante a desempenhar quando em 1998 um fóssil dito e transição foi encontrado no vale do Lapedo, em Leiria, de há aproximadamente 24.500 anos. Os autores desta descoberta, pertencentes a uma equipa liderada pelo arqueólogo João Zilhão, afirmam existirem características híbridas entre os Homens Modernos e os Neandertais, sobretudo ao nível do crânio, da mandíbula e da dentição. Ficou conhecida por “Criança do Lapedo” – um híbrido resultante de várias gerações, à volta de 200, uma vez que a datação do enterramento dista vários milénios do possível desaparecimento do Neandertal da Península Ibérica há 28/30 mil anos.

Num artigo publicado na revista Science em maio de 2010, eles apresentaram o que Pääbo passou a referir como a hipótese da “substituição permeável”. Antes de os seres humanos modernos “substituírem” os de Neandertal, tiveram relações sexuais com eles. Essas interações geraram filhos, que ajudaram a povoar a Europa e a Ásia. A hipótese da substituição permeável vinha fornecer a mais forte evidência possível para se tratar da mesma espécie. Algumas dessas criaturas híbridas sobreviveram e tiveram seus próprios filhos, que, por sua vez, tiveram filhos, e assim por diante, até aos dias atuais. Ainda hoje, pelo menos trinta mil anos depois, o sinal é distinguível: todos os não africanos, desde os nativos da Nova Guiné, chineses da etnia Han, ou franceses, carregam algo entre 1% e 4% do ADN dos homens de Neandertal.

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