segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Do mundo da técnica ao mundo da arte


          De volta à espiritualidade, à transcendência, mas liberto de religião e metafísica, eis de novo o humanismo a ler com agrado Homero, ou a ouvir Bach, ou fascinado com o templo de Angkor para ver se consegue libertar-se das garras do materialismo.
          É a crença na universalidade da pluralidade do Outro, que impulsiona este novo humanismo para o “amor do próximo”. Já não é com o pensamento frouxo da “tolerância” democrática, mas sim com um pensamento aberto e alargado que possa abarcar o significado da “transcendência na imanência”. Assim se resume em pensamento a experiência fundamental da humanidade que passa pela compreensão do estoicismo, do budismo, do espinosismo e de todas as filosofias que nos convidam a esperar um pouco menos e a amar um pouco mais.
          A transcendência na imanência de 2018 é uma transcendência enraizada no humano, e já não em Deus nem na Pátria, fundamentada na sacralidade do Outro. O slogan do “mais vale vermelho que morto” desapareceu em 1989 com o totalitarismo soviético. Mas até aí, mais valia ceder à opressão do que arriscar a vida resistindo-lhe. Os motivos tradicionais do sacrifício, em que a vida não era o único valor importante e por isso se prescindia dela em nome de Deus ou da Pátria, já não fazem sentido. Agora é pelo Outro.
          É por isso que é deplorável ainda vermos humanos a massacrarem outros humanos inocentes. Enquanto seres humanos eles poderiam ter agido de outra maneira. Eles têm liberdade de escolha. Não são ursos, animais selvagens.
          Há na técnica uma transcendência em relação aos códigos morais. Na técnica não há juízos de valor em relação à vida, ou mesmo à própria existência do Universo. Neste ponto a técnica falha o essencial. Num pequeno ensaio intitulado “A Superação da metafísica”, Heidegger descreve como o domínio da técnica resulta de um processo que tem origem na ciência do século XVII para se estender pouco a pouco a todos os domínios da vida democrática. Lamentavelmente foi a sua descrença na democracia que o fez lançar-se nos braços do pior regime autoritário que a humanidade conheceu: “a maldade absoluta”. Já em apontamento anterior eu havia recordado o debate entre os filósofos sobre a “maldade” a seguir ao famoso terramoto de Lisboa em 1755. Decididamente, a Natureza, tal como propalavam os estoicos antigos, nada tinha de cosmos harmonioso e bom. E todos, ou quase todos, pensavam na época que a ciência iria salvar-nos das tiranias da Natureza. Havia entrado em cena a ideia moderna de uma felicidade conquistada pela ciência, de um bem-estar tornado possível pelo domínio do mundo.
          A técnica é um processo sem finalidade, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido. Diz respeito aos meios e não aos fins. Numa lógica de competição globalizada, uma empresa que não progrida todos os dias é uma empresa votada à morte. Mas este progresso não tem outro objetivo senão ele mesmo. Tudo isto ultrapassa, em muito, as vontades individuais conscientes.
          Hoje já ninguém arrisca dizer que a sobrevivência da espécie está garantida. Pela primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os meios de destruir o planeta inteiro. Os seus poderes de transformação são suficientemente gigantescos para provocar a destruição do mundo na Terra. Líderes europeus, ou melhor, burocratas, apesar de empregarem discursos moralizadores e piedosos, assistem praticamente impotentes a tudo isto.

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