terça-feira, 23 de outubro de 2018

Despreocupação descontraída com os factos


Dois tópicos: o da violência simbólica infligida por quem tem mais poder sobre o corpo do sujeito; e o do afeto dos chamados “eleitores” do mundo ocidental por candidatos cujas ideias se apresentam perfumadas por um perfume barato fedendo a fascismo, num tempo descendente de um outro tempo em que na Europa as ciências sociais foram marcadas pela chamada “teoria crítica”. Era uma teoria que tinha como objetivo principal o desejo de fazer avançar a norma no combate à opressão patrocinada pela ciência de cunho positivista.

Este livro em epígrafe “The Seduction of Unreason”, de Richard Wolin, um filósofo oriundo do movimento da “New Left” dos anos 60, e que se define como um pensador liberal no sentido norte-americano da palavra (ou seja, não conservador), é uma provocação aos pensadores pós-estruturalistas. Um dos atingidos foi Jacques Derrida (1930-2004), que só não ficou à beira de um ataque de nervos porque faleceu no ano da publicação. Ele critica um pós-estruturalismo ou pós-modernismo, enquanto corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo. Um pós-estruturalismo que por sua vez é crítico de uma ciência considerada como uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista. É um pós-estruturalismo que desvaloriza a racionalidade, sustentando o relativismo cultural da verdade em prol da defesa da identidade minoritária.

Alguns anos antes, anos 70/80, Habermas já havia escrito um ensaio crítico sobre Foucault acusando-o de “normativista críptico”. A acusação era que, embora o trabalho de Foucault fosse claramente alimentado por um conjunto de preocupações morais, ele se recusava a dizer claramente quais eram os seus comprometimentos morais, utilizando em vez disso um vocabulário normativamente carregado, como “poder” ou “regime”, como dispositivos retóricos para induzir o leitor a partilhar as suas avaliações normativas, enquanto negava oficialmente que estava a fazer algo desse tipo, fingindo que não tinha valor algum.

Richard Wolin também procura atingir os pensadores como Georges Bataille, Maurice Blanchot e Paul de Man, seguidores de Martin Heidegger, que tiveram um papel central na “transmutação” de ideias próximas de ideologias totalitárias de direita (fascismo e nazismo) em ideias que passaram a ser apresentadas como “progressistas”, “democráticas” e de esquerda. Tal veio a desembocar no desconstrucionismo de Jacques Derrida, cujo relativismo extremo acabou por contaminar a própria ideia de verdade e de justiça. É claro que todos estes pensadores remetem para Nietzsche, onde os nazis também foram beber inspiração. Os textos dos pós-estruturalistas franceses, como Michel Foucault e Jaques Derrida, efetivamente surgem com uma imagem “desnazificada”, com sublimes preocupações estéticas e de crítica cultural e social.

A maioria das pessoas que recentemente se pronunciou sobre o caso “da violência sobre o corpo”, nas redes sociais, foi no sentido de haver algo de errado nesse tipo de argumentação. É claro que todos os pronunciamentos que se fazem neste tipo de redes é de um modo geral pouco refletido e carregado de exageros retóricos, o que acaba por descambar no assassinato de caráter e na intimidação, cujo fito consiste em limitar a opinião dos outros. Muitas pessoas simplesmente não estão para entrar numa discussão com alguém cuja estratégia básica de argumentação é acusar todos os que discordam de si de serem racistas ou agentes de lavagens cerebrais.

Encontrar respostas precisas para questões complexas pode ser um trabalho árduo, e, por conseguinte, “a despreocupação descontraída com os factos” é tida como a “atitude”. A postura de um cidadão perante um candidato político ou é de uma atitude a favor ou contra. E de um modo geral esta atitude é uma atitude afetiva. Pode-se dizer que um cidadão se sente indiferente em relação ao candidato, mas o característico da indiferença é a ausência de certos sentimentos ou emoções e não a sua presença. Contudo, nem mesmo a indiferença é uma ausência pura; há algo que se sente quando não nos importamos com uma coisa ou quando somos indiferentes a isso. Como a insensibilidade, a indiferença é ao mesmo tempo um sentimento e uma ausência de sentimento. As posturas afetivas são tipicamente involuntárias. O sentido em que isto é assim é que não são questões de escolha ou decisão. Isto não é surpreendente visto que a maneira como alguém se sente não é habitualmente uma questão de escolha ou decisão. Quando se sente desprezo ou respeito por outra pessoa, não se escolheu habitualmente desprezá-la ou respeitá-la. Podemos, é claro, escolher mostrar respeito, mas não se pode escolher ter respeito por alguém se nada conseguimos ver nela que mereça respeito.

Há uma outra atitude diferente desta: a “malevolência epistémica”. A malevolência epistémica é a que atualmente está ligada aos “factos alternativos”. A malevolência epistémica é uma atitude, mas não uma atitude afetiva como “a despreocupação descontraída com os factos”. É o caso de quem nega a importância da atividade humana no aquecimento global, ou de quem faz campanha contra as vacinas. Em todos os casos, a estratégia básica é usar cientistas para denegrir o trabalho dos seus colegas convencionais e sugerir que os factos são menos claros do que na realidade são. São uma espécie de “cientistas alternativos” que lutaram contra as provas científicas e espalham a confusão em muitas das mais importantes questões do nosso tempo. Uma questão óbvia é: por que razão haveria um cientista de respeito querer fazer o que os “cientistas alternativos” fazem? Sem dúvida que os incentivos financeiros devem ser consideráveis. Não nos deve, portanto, surpreender, a difusão e manutenção de conhecimentos e atitudes que têm o efeito oposto ao conhecimento científico sério e honesto.

É por isso que não deixa de ser desconcertante ver como a esquerda tradicionalmente universalista, herdeira do Iluminismo e da Revolução Francesa, acabou por capturar os seus ideais e as reivindicações sociais e políticas pela noção de “desrazão” (‘unreason’ no texto em inglês). Verdade, direitos humanos, justiça e democracia, que estavam na linha da frente da luta contra o obscurantismo, acabou por se perder na nebulosa do pós-estruturalismo/pós-modernismo. Parte do pensamento de esquerda, a chamada esquerda pós-marxista, foi capturado pelo perspetivismo nietzschiano ao assimilar as suas ideias de não haver factos, mas apenas interpretações. E assim relativizou as normas sociais e/ou jurídicas da sociedade liberal-burguesa, denunciando-as como expressão de interesses particulares ou relações de poder que arbitrariamente favorecem alguns povos, culturas ou grupos sociais em detrimento de outros. Com este fundamento filosófico e epistemológico os “progressistas pós-modernistas” consideram-se em posição de “desconstruir” as normas dos grupos dominantes, ou privilegiados socialmente, e denunciar a hipocrisia social que lhe está subjacente, proclamando, em alternativa, que todas as “culturas são boas”.

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