quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Declínios civilizacionais


          Talvez para um cristão católico, o que se passou depois de Rómulo Augústulo ter sido deposto pelo general germânico Odoacro em 476, e até à entrada de Maomé II em Constantinopla em 1453, não foi o que durante séculos se disse: uma “idade de trevas”. A alvorada da civilização cristã, com todas as suas formas de criação, e que perduraram até aos dias de hoje, diz um católico, criou uma cultura com raízes comuns e unidade, apesar do seu passado conturbado em guerras internas. Uma herança cristã comum com boas credenciais históricas para a base de uma cultura e identidade comuns. Mas a retórica não cola à realidade, e ainda nos dias de hoje o cristianismo é tão divisório como outrora. Em todo o caso, hoje seria impensável o Papa ter aquelas ideias que os papas tiveram no tempo de Carlos Magno.
          Os romanos, antes da queda, estavam tão certos como nós estamos hoje de que o seu mundo continuaria para sempre substancialmente inalterado. É o que alguns historiadores da atualidade, sobretudo os pós-estruturalistas, pensam para se sentirem mais confortáveis a discutir ascensões disto ou daquilo do que quedas ou declínios de aqueloutro. Parece que assim correm menos riscos, com um vocabulário otimista e positivo. Parece que há menos dificuldades e menos complicações se concebermos as transformações das sociedades de uma forma suave e contínua, essencialmente num sentido positivo. Portanto, para os intelectuais de agora, sobretudo os do norte da Europa, os povos germânicos foram sobretudo migrantes que se acomodaram pacificamente nas províncias romanas, e não invadiram coisa nenhuma. E a cultura de Roma evoluiu lentamente para novas formas.



          Depois de leituras de um lado e de outro, eu ainda acredito que os séculos pós-romanos assistiram a um declínio dramático na sofisticação e prosperidade económica, com impacte em toda a sociedade. Independentemente da influência do cristianismo, ao fim e ao cabo, sempre foram as condições materiais que condicionaram e ditaram os fluxos humanos para fazer andar a roda da História. Daí que eu também acredite, mais cedo do que tarde, que o declínio dos EUA e o fim da UE, à semelhança do fim da civilização greco-romana antiga arrastada pelo declínio de Roma, será inexorável.
          Tem sido nestes últimos tempos de “despreocupação descontraída com os factos” que se tem contrariado a teoria histórica que interpretava o facto de a civilização mediterrânica do mundo antigo, centrada em Roma, ter colapsado a partir do século V devido ao golpe de misericórdia dado pelas invasões germânicas. Em primeiro lugar, porque o conceito de civilização é um conceito ultrapassado pelo conceito de culturas. Segundo, porque não houve invasões nenhumas. Terceiro, porque Roma era um império.
          Estas ideias, tão auspiciosas e tão radicalmente diferentes, terão suportado o facto de o Império Romano, por si só, nunca ter merecido a satisfação dos líderes políticos como um antepassado honroso da União Europeia. Acreditam que uma União Europeia inteiramente mediterrânica marginalizaria a Europa do Norte, a Europa de Bruxelas e Estrasburgo, a pouco mais de 100 quilómetros da residência favorita de Carlos Magno e de Aachen, o local onde está enterrado.  

A recente reação dos italianos face às migrações e o papel da Organização Internacional para as Migrações

A maioria dos italianos não concorda com a seguinte opinião: “Queiramos ou não, não é possível parar a imigração, não se pode fazer nada em relação ao que foge ao nosso controlo”. Os italianos consideram que essa postura é potencialmente desastrosa. Assim como também rejeitam a ideia de que os germânicos do século V tenham sido imigrantes pacíficos. Não compram a teoria que é hoje padrão nas academias do norte da Europa: “. . . a dita invasão pacífica dos bárbaros não causou nenhum retrocesso civilizacional, antes pelo contrário. . .”


António Vitorino é o atual diretor geral da Organização Internacional para as Migrações, e segundo ele, os italianos culpam os imigrantes como bode expiatório dos seus problemas de fundo para os quais não querem ou não sabem resolver. As ideias de que as migrações são uma invasão, que põem em causa a identidade dos países de acolhimento, são falsas ideias feitas. É uma visão desfocada da realidade, impregnada de preconceitos e juízos apriorísticos completamente errados, de que os imigrantes descaracterizam as identidades nacionais dos países de acolhimento: “. . . temos, felizmente, casos de sucesso de sociedades abertas, tolerantes, onde o ajustamento e a convivialidade são garantidos por um esforço de duplo sentido — dos que chegam, para se adaptarem, e dos que os recebem, para se adaptarem à sua chegada. . .”

Esta ideia de invasão está muito ligada a fenómenos importantes, como seja o envelhecimento das sociedades mais ricas, comunidades de destino. Elas têm necessidade de rejuvenescimento para responder com maior agilidade e maior criatividade aos desafios de uma economia global mais competitiva e mais agressiva. Em todo o caso, Vitorino tem consciência de que a Europa não vai ficar como muitos europeus queriam: “tudo como dantes”. Ainda não sabemos todas as implicações que estas novas realidades vão ter sobre a sobrevivência da própria democracia. Apenas uma coisa é certa: a democracia representativa como a conhecemos no passado não vai ficar incólume a estas transformações. Não nega que haja riscos sérios. Mas também confia em que a sociedade, no seu conjunto, seja capaz de encontrar as respostas. Há uma certeza que tem: não é possível resolver problemas complexos na base de ideias simplificadas. As ideias podem ser simples, mas não podem ser simplistas. Isso é particularmente verdade nas migrações, onde o debate é, tantas vezes, dominado por estigmatizações.

As mudanças de perspetiva são sempre moldadas em parte por desenvolvimentos mais latos na sociedade moderna. Existe invariavelmente uma estreita relação entre a forma como vemos o nosso mundo e a forma como interpretamos o passado. As imagens dos povos germânicos do século V e da sua ocupação do Império Romano do Ocidente mudaram dramaticamente desde a Segunda Guerra Mundial, tal como se alteraram as ideias sobre os alemães modernos e o seu papel na União Europeia depois da “Queda do Muro de Berlim”. Os alemães foram reabilitados para se tornarem num elemento essencial da identidade europeia tal como a conhecemos agora.

Seja como for, apesar de algumas exceções, a Europa até agora tem sido um lugar tolerante, pacífico e mais acolhedor do que a maioria dos lugares do mundo. Mas agora as sondagens de opinião mostram consistentemente, em todos os países da Europa, que as migrações passaram para o topo da lista das preocupações públicas.

Na rota migratória da África Ocidental uma boa parte dos migrantes admitem que se lançaram ao inferno do deserto, e ao risco de naufrágio no Mediterrâneo, simplesmente para encontrar trabalho. Ora, nenhum destes migrantes tem direito a refúgio na Europa nos termos da Convenção de 1951para os refugiados, que consagra os direitos das pessoas que fogem da perseguição, mas não da pobreza. Eles arriscam a vida, mas a direita europeia gostaria que eles não arriscassem. E a esquerda dá prioridade aos refugiados, particularmente aos que fogem da Síria. Pessoas que se sujeitam aos horrores do deserto, aos campos de batalha da Líbia e aos barcos de morte do Mediterrâneo não o fazem de ânimo leve, e não são pessoas que serão facilmente impedidas de o fazer. Não é escolha deles ir para a morte. Mas se o governo não os ajuda, se o ACNUR não os ajuda, se ninguém os pode ajudar, então a única opção são os passadores. Quando se foge duma ditadura, da guerra ou da fome, e se é confrontado com novos conflitos, os passadores são a única oportunidade de segurança.

É bom lembrar que passadores e traficantes não são a mesma coisa. Há diferenças entre passadores e traficantes. Os passadores são aqueles a quem os migrantes confiam e pagam para os transportar de um país para outro, que apesar de os tratarem com dureza, e por vezes com brutalidade, fazem-no em pleno teatro de operações com a clara cumplicidade dos migrantes. Ao passo que os traficantes contrabandeiam as pessoas sem que elas deem por nada, portanto, sem que tenham dado o seu consentimento como dão aos passadores. A intenção dos traficantes e pura e simplesmente escravizar essas pessoas, mantendo-as em cativeiro, e às mulheres obrigam-nas a prostituir.

sábado, 27 de outubro de 2018

O azar deles fomos nós?



Esta imagem podia ter a seguinte legenda: “Um Neandertal depois de ter ido ao barbeiro e passado pelo alfaiate”

Um minúsculo conjunto de variações genéticas nos separa dos homens de Neandertal. Mas isso fez toda a diferença. O homem de Neandertal viveu na Europa por mais de cem mil anos e, durante esse período, o impacto que provocou no ecossistema não foi maior do que o de qualquer outro grande vertebrado. Há muitas razões para se acreditar que, se os Sapiens não tivessem saído de África, os Neandertais ainda estariam presentes, com os seus cavalos selvagens e os rinocerontes-lanudos. Os Sapiens, vieram estragar tudo com a capacidade de representar o mundo por meio de sinais e símbolos. E com eles veio a capacidade de transformar o mundo, o que implica a capacidade de o destruir.

“Out of Africa” é o slogan que tem servido nos últimos 30 anos aos cientistas para afirmarem a teoria da origem africana do Homem Moderno. Essa teoria sustenta que todos os seres humanos modernos são descendentes de uma pequena população que viveu no nordeste de África durante 200 mil anos, até que há cerca de 120 mil anos um subgrupo dessa população migrou para o Médio Oriente e, de lá, outros subgrupos se dirigiram para a Europa, a Ásia e até mesmo a Austrália. À medida que se deslocavam para o norte e para o leste do velho continente encontraram os de Neandertal e outros humanos arcaicos, que já habitavam essas regiões, que por fim foram substituídos, uma maneira delicada de dizer que foram extintos. Esse modelo de substituição significa que antes de há cerca de 30 mil anos o Homo Neanderthalensis ter desaparecido, alguns membros do Homo Sapiens ter-se-ão pontualmente miscigenado com o Neanderthalensis. Os registos arqueológicos mostram repetidas vezes que, quando o Homo Sapiens ocupava a região onde vivia o Homo Neanderthalensis este desaparecia. Ou porque tenha sido de facto perseguido, ou porque tenha perdido a corrida evolutiva na competição com o Homo Sapiens, antes do seu declínio o Homo Sapiens teve sexo com o Homo Neanderthalensis.

Adão e Eva, ou o Homem Moderno, e as grandes migrações globais



Chamemos-lhe agora Homo sapiens sapiens ao Homem Moderno e cujo representante primitivo foi conhecido por “Homem de Cro-Magnon”, designação que se deve à localidade francesa onde os seus primeiros vestígios foram encontrados. Ele provinha do Sudoeste Asiático ou Próximo Oriente, e iniciou esta migração durante o Paleolítico Superior.

Há 18.000 anos o gelo da Europa paleolítica encontrava-se no ponto máximo do último período glacial, com 2 km de espessura de gelo na zona dos Alpes, e com o mar a 125 metros mais abaixo do que está hoje. Um dos locais menos afetados pela glaciação foi a região franco-cantábrica – no Sudoeste da Provença e nas Astúrias. Outros houve, como é o caso dos Balcãs, Cáucaso e sul de Itália. Mas a partir de 12.000 a.C. verificou-se uma viragem climática acompanhada de degelo, efeito que se fez sentir noutros pontos do planeta como por exemplo no sudeste asiático, que pelo efeito da subida do nível do mar deixou à superfície inúmeras ilhas à volta de Java, onde 40.000 anos antes existia um continente, o “Sunland”.

Na onda neolítica de migração do Homem Moderno para a Europa, num período compreendido aproximadamente entre 12.000 e 6.000 a.C. a Europa passou a ser repovoada com migrações de Homens Modernos, tanto a partir da Ibéria onde se encontravam refugiados do frio, como a partir do Próximo Oriente onde o Homem Moderno já vivia num regime de produção e de acumulação. Os povos da região da Palestina em 6.000 a.C. já haviam abandonado o modo de vida exclusivamente baseado na caça e na colheita de frutos. Assim, foi possível a pastorícia e o desenvolvimento da agricultura, e com ela surgiu a cultura que foi designada por ‘Cultura Natufiense’. É a partir daqui que o pêndulo se inverte de novo com uma nova onda migratória de leste para oeste. A porta de entrada mais provável terá sido a região do Mar Negro por três vias: o Estreito do Bósforo; o sistema fluvial Danúbio-Main-Reno; e o Cáucaso. O que intriga os cientistas é o facto de os marcadores genéticos daqueles povos ibéricos do Paleolítico, que foram bem-sucedidos, terem desaparecido e substituídos pelos marcadores genéticos desta vaga neolítica de povos vindos do Próximo Oriente.

Há que pense que as comunidades mesolíticas de caçadores recolectores do ocidente ibérico, nomeadamente os concheiros do estuário do Tejo e Sado, começaram a contactar com o modo de vida neolítico por povos do Próximo Oriente, que em vez de terem seguido as rotas referidas atrás, seguiram a via do Mediterrâneo. Já se encontram provas dos primeiros pastores e agricultores do Alentejo Central a partir de 5.500 a.C. A discussão acerca de os marcadores genéticos dos primeiros povos a adotar a cultura Neolítica no Alentejo ser de imigrantes vindos do Leste nessa altura, ou serem de povos autóctones, é já outro tema. O que é certo é que o legado genético dos caçadores/coletores do paleolítico foi apagado por imigrações posteriores vindas do Próximo Oriente.

A genética no estudo das migrações

A informação genética é muito importante para a reconstituição das migrações populacionais ao longo da história humana. O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são duas porções do genoma humano que permite rastrear respetivamente as linhagens materna e paterna de um indivíduo. As mulheres transmitem o ADN mitocondrial aos descendentes dos dois sexos, ao passo que os homens, apesar de também possuírem obviamente mitocôndrias, não transmitem ADN mitocondrial. Em contrapartida transmitem o cromossoma Y, e obviamente apenas o sexo masculino.

O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são haploides, isto é, são exemplares de transmissão uniparental. E às diversas formas polimórficas destes marcadores presentes na população dá-se o nome de haplótipos. E um grupo grande de haplótipos, que são séries de alelos em lugares específicos de um cromossoma constitui um haplogrupo. Em genética humana os HAPLOGRUPOS mais estudados que podem ser usados para definir populações genéticas são os HAPLOGRUPOS DO CROMOSSOMA Y (ADN-Y); e os HAPLOGRUPOS DO ADN MITOCONDRIAL (ADN-mt).

Assim, dentro dos HAPLOGRUPOS DO CROMOSSOMA Y, temos o HAPLOGRUPO I2, que pode ser o haplogrupo de referência para o Homem de Cro-Magnon, remontando a 13.000-15.000 anos e tendo atingido a sua máxima frequência nos Alpes Dináricos, Balcãs. Por sua vez o HAPLOGRUPO I2a1 é de longe o maior ramo de I2 e o mais frequentemente ligado às culturas neolíticas do sudeste, sudoeste e noroeste da Europa.

Dentro dos HAPLOGRUPOS DO ADN MITOCONDRIAL, várias linhagens femininas, denominadas H, U, T, X, K e I, se espalharam por toda a Europa vindas do Próximo Oriente há cerca de 40.000 anos, cujo efetivo populacional durante o Último Máximo Glaciar seria pequeno. Contudo, no refúgio ibérico, um maior efetivo populacional criaria a oportunidade para o aparecimento de novas linhagens mais recentes. Dentro daqueles grupos o HAPLOGRUPO H, é o marcador genético mais frequente da população europeia. Nos nossos dias estas linhagens perduram, sendo ainda mais frequentes na Ibéria. Por exemplo, em 499 amostras colhidas em Portugal, 25,5% são H1. Usando o relógio molecular, as suas idades apontam para 15.000 anos. À medida que o gelo ia recuando para Norte estes grupos também iam subindo pela Europa refazendo rapidamente o seu povoamento. Portanto, o atual património genético feminino europeu sinaliza esse repovoamento europeu a partir da Península Ibérica.

Svante Pääbo dirige o departamento de genética evolutiva do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na cidade de Leipzig. Pääbo, que é sueco, muitas vezes é chamado de “pai da paleogenética”. Pääbo praticamente inventou o estudo do ADN antigo, quando anunciou o projeto em 2006, dizendo: “Eu quero saber o que mudou nos seres humanos plenamente modernos, comparando com os homens de Neandertal que tinham crânios bem grandes, maiores do que os de hoje”. Isso tornava difícil encaixá-los numa narrativa iniciada com macacos de crânio pequeno que evoluíram aos poucos até alcançarem as grandes dimensões do crânio de Einstein. Em ‘A descendência do homem’, publicado em 1871, Darwin faz apenas uma alusão passageira aos homens de Neandertal: “Devemos admitir que alguns crânios de extrema antiguidade, tais como os dos famosos homens de Neandertal, são bem desenvolvidos e espaçosos”.

Nos anos 1960, o arqueólogo americano Ralph Solecki descobriu os restos mortais de diversos homens de Neandertal numa caverna no norte do Iraque. Um deles, conhecido como Shanidar I, ou Nandy, sofrera graves ferimentos na cabeça que, presumiu-se, tinham-no deixado pelo menos parcialmente cego. Os ferimentos haviam cicatrizado, sugerindo que ele devia ter sido cuidado por outros membros do grupo. Um outro, Shanidar IV, parecia ter sido enterrado, e os resultados da análise do solo do túmulo convenceram Solecki de que Shanidar IV fora sepultado com flores. Ele interpretou o achado como evidência da profunda espiritualidade do homem de Neandertal.

Para o seu projeto, Pääbo conseguiu 21 ossos do homem de Neandertal descobertos numa caverna na Croácia. O projeto enfim começou a gerar resultados úteis quando um dos membros da equipa de Pääbo, David Reich, geneticista da Escola de Medicina de Harvard, notou algo estranho. As sequências do homem de Neandertal eram, como se esperava, muito semelhantes às sequências do homem atual. Entretanto, eram ainda mais semelhantes às de certos seres humanos do que de outros. De modo mais específico, europeus e asiáticos partilhavam mais ADN com o homem de Neandertal do que com os africanos. Então a primeira reação de Reich foi tentar livrar-se desse resultado, pensando que isso devia estar errado.

Portugal teve um papel importante a desempenhar quando em 1998 um fóssil dito e transição foi encontrado no vale do Lapedo, em Leiria, de há aproximadamente 24.500 anos. Os autores desta descoberta, pertencentes a uma equipa liderada pelo arqueólogo João Zilhão, afirmam existirem características híbridas entre os Homens Modernos e os Neandertais, sobretudo ao nível do crânio, da mandíbula e da dentição. Ficou conhecida por “Criança do Lapedo” – um híbrido resultante de várias gerações, à volta de 200, uma vez que a datação do enterramento dista vários milénios do possível desaparecimento do Neandertal da Península Ibérica há 28/30 mil anos.

Num artigo publicado na revista Science em maio de 2010, eles apresentaram o que Pääbo passou a referir como a hipótese da “substituição permeável”. Antes de os seres humanos modernos “substituírem” os de Neandertal, tiveram relações sexuais com eles. Essas interações geraram filhos, que ajudaram a povoar a Europa e a Ásia. A hipótese da substituição permeável vinha fornecer a mais forte evidência possível para se tratar da mesma espécie. Algumas dessas criaturas híbridas sobreviveram e tiveram seus próprios filhos, que, por sua vez, tiveram filhos, e assim por diante, até aos dias atuais. Ainda hoje, pelo menos trinta mil anos depois, o sinal é distinguível: todos os não africanos, desde os nativos da Nova Guiné, chineses da etnia Han, ou franceses, carregam algo entre 1% e 4% do ADN dos homens de Neandertal.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Relembrando Hobbes sem medo nem reverência


          Descansemos por umas horas, que os rumores não param de chegar de toda a parte às nossas redações. Já não há espaço para uma posição esperançosa em relação aos agentes do mal que deambulam por aí.
          Aubrey, amigo e biógrafo de Hobbes, conta o episódio dos “Elementos de Euclides” que Hobbes viu pousado sobre uma mesa na casa de um nobre que visitara em Florença, ao qual não resistiu em abrir e folheá-lo. Diz que ele se apaixonou pela geometria depois de o ter começado a ler do fim para o princípio. Em novembro de 1640 Hobbes torna-se o primeiro fugitivo da guerra civil ao trocar a Inglaterra por Paris. Em 1649 Carlos I Stuart haveria de ser decapitado com perturbação por toda a Europa. Hobbes, então com 45 anos, viajou pela Europa como era apanágio dos intelectuais bem-pensantes daquela época. Chegou a encontrar-se com Descartes, manifestando-lhe a sua preocupação com o rumo que o debate sobre a diferença entre aparência e realidade estava a ter.
          Hobbes estava com medo. Não medo de que o mundo pudesse não ser como nos parecia, mas sim medo de que fosse. Hobbes era um pensador audaz até à insolência, inclinado à provocação e à disputa. E, todavia, era o medo que elegia como a questão central da própria filosofia política.
          Em Os elementos da lei encontramos uma descrição sintética do estado de natureza, ligada a uma argumentação que Hobbes nunca mais abandonaria. Em tal estado, os homens são substancialmente iguais e têm os mesmos direitos (entre os quais o de ofender e de se defender): por isso vivem numa condição de guerra perene, de “desconfiança geral”, de “medo recíproco”. Eles saem dessa situação intolerável renunciando a uma parte dos próprios direitos: um pacto que transforma uma multidão amorfa num corpo político. Nasce assim o Estado, aquele que Hobbes chamará Leviatã: um nome que no Livro de Jó designa uma baleia, um gigantesco animal marinho que ninguém consegue fisgar com um anzol.
          Na foto em epígrafe, O frontispício do Leviatã, Hobbes cita, na tradução latina de são Jerónimo, um versículo extraído do capítulo 41 do Livro de Jó: “Non est super terram potestas quae comparetur ei”, não existe poder sobre a terra comparável a ele.
          Para Hobbes o Estado surge de um pacto nascido do medo. Na Europa assolada pelas guerras de religião, na Inglaterra dilacerada pelos conflitos entre rei e Parlamento, a paz se mostrava a Hobbes como o bem supremo, merecedor de qualquer sacrifício: uma ideia que o acompanharia até à morte.
          Mas um pacto estipulado numa circunstância de constrição, como a que caracterizava o estado de natureza, pode ser considerado válido?

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Os Passadores de Agadez


          Como fenómeno, a passagem de migrantes por Agadez não é nova, mas para os seus habitantes foi só nos últimos cinco anos que a palavra ‘migração’ entrou no vocabulário deles. Para os viajantes e mercadores que se atrevem na travessia do Sara, Agadez sempre foi incontornável. Mas agora é também ponto de passagem obrigatória para gente subsariana que arrisca a sorte da rota pela Líbia a fim de entrar na Europa. Até há uns dez anos podia-se também chegar à Europa via Senegal e com destino às ilhas Canárias. Ou de Marrocos para os enclaves espanhóis no noroeste de África. Mas essas rotas estão hoje cortadas. E por essa razão Agadez, no centro do Níger, adquiriu uma importância ainda maior como etapa de migração.
          Só alguns condutores locais, poucos e escolhidos, sabem quais os trilhos que conduzem ao outro lado do deserto do Sara. Em três dias de condução, são muitos os cruzamentos que se podem falhar, e onde africanos ocidentais, muitos nigerianos, camaroneses ou senegaleses vão morrer antes de arriscarem a morte no Mediterrâneo. Para estes migrantes, há o perigo do mar Mediterrâneo. Mas há quem diga que o perigo do “mar do Sara” não é menor.



          Muitos dos passadores do Níger, antes de se dedicarem a traficar migrantes subsarianos, eram guias turísticos em excursões pelo Sara. Mas essa indústria desapareceu na esteira de uma insurreição regional. Cada um com a sua carrinha Toyota de caixa aberta faz o trajeto dessa rota invisível que conduz à Líbia com 30 passageiros empilhados como sardinhas. É preciso ser-se um grande perito do deserto, pois em segundos as habituais tempestades de areia mudam a topografia das dunas, e em menos de uma hora uma carrinha pode ficar toda soterrada debaixo da areia. E se se perdem, acaba-se o combustível. Depois acaba-se a água. E sem água não se dura vivo mais do que três dias.
          Além do risco do deserto, há o risco dos bandidos e dos jihadistas. Muitos morrem numa dessas emboscadas quando não têm a sorte de um resgate. Ninguém sabe quantos morrem destas diferentes maneiras. E, contudo, o número dos que arriscam continua a bater recordes. Qualquer pessoa com meios pode tomar um autocarro nas costas da Nigéria e seguir até ao fim em Agadez, ao fim de vinte horas de viagem, onde os condutores dos autocarros param e os passadores entram. Os pátios são os lugares ideias para esconder uma centena de migrantes até partirem para norte. Em média, os passadores cobram o equivalente a 500 euros por cada migrante. A polícia faz de conta que é proibido, mas a corrupção é muita, e o exército não manda parar ninguém. Num ano cada passador pode fazer 350 mil euros. No total dos passadores deve rondar os 22 milhões de euros. E estima-se que milhão e meio fique para os subornos da polícia.


          Esta é mais uma das realidades nuas e cruas da migração para a Europa. É fútil qualquer tentativa para fazer parar as migrações. Até porque não há ninguém interessado em tentar detê-las. As agências de viagens agora estão fechadas e entaipadas, desde que uma rebelião de berberes e a ascensão duma representante regional da al-Qaeda, em 2007, interromperam o comércio turístico. Os hotéis estão na sua maioria fechados e saqueados. As autoridades do Níger explicam que o boom do tráfico de pessoas deve ser visto pelo prisma do colapso da economia. Muitos artesãos viram-se obrigados a mudar de trabalho. E alguns agora são contrabandistas.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Despreocupação descontraída com os factos


Dois tópicos: o da violência simbólica infligida por quem tem mais poder sobre o corpo do sujeito; e o do afeto dos chamados “eleitores” do mundo ocidental por candidatos cujas ideias se apresentam perfumadas por um perfume barato fedendo a fascismo, num tempo descendente de um outro tempo em que na Europa as ciências sociais foram marcadas pela chamada “teoria crítica”. Era uma teoria que tinha como objetivo principal o desejo de fazer avançar a norma no combate à opressão patrocinada pela ciência de cunho positivista.

Este livro em epígrafe “The Seduction of Unreason”, de Richard Wolin, um filósofo oriundo do movimento da “New Left” dos anos 60, e que se define como um pensador liberal no sentido norte-americano da palavra (ou seja, não conservador), é uma provocação aos pensadores pós-estruturalistas. Um dos atingidos foi Jacques Derrida (1930-2004), que só não ficou à beira de um ataque de nervos porque faleceu no ano da publicação. Ele critica um pós-estruturalismo ou pós-modernismo, enquanto corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo. Um pós-estruturalismo que por sua vez é crítico de uma ciência considerada como uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista. É um pós-estruturalismo que desvaloriza a racionalidade, sustentando o relativismo cultural da verdade em prol da defesa da identidade minoritária.

Alguns anos antes, anos 70/80, Habermas já havia escrito um ensaio crítico sobre Foucault acusando-o de “normativista críptico”. A acusação era que, embora o trabalho de Foucault fosse claramente alimentado por um conjunto de preocupações morais, ele se recusava a dizer claramente quais eram os seus comprometimentos morais, utilizando em vez disso um vocabulário normativamente carregado, como “poder” ou “regime”, como dispositivos retóricos para induzir o leitor a partilhar as suas avaliações normativas, enquanto negava oficialmente que estava a fazer algo desse tipo, fingindo que não tinha valor algum.

Richard Wolin também procura atingir os pensadores como Georges Bataille, Maurice Blanchot e Paul de Man, seguidores de Martin Heidegger, que tiveram um papel central na “transmutação” de ideias próximas de ideologias totalitárias de direita (fascismo e nazismo) em ideias que passaram a ser apresentadas como “progressistas”, “democráticas” e de esquerda. Tal veio a desembocar no desconstrucionismo de Jacques Derrida, cujo relativismo extremo acabou por contaminar a própria ideia de verdade e de justiça. É claro que todos estes pensadores remetem para Nietzsche, onde os nazis também foram beber inspiração. Os textos dos pós-estruturalistas franceses, como Michel Foucault e Jaques Derrida, efetivamente surgem com uma imagem “desnazificada”, com sublimes preocupações estéticas e de crítica cultural e social.

A maioria das pessoas que recentemente se pronunciou sobre o caso “da violência sobre o corpo”, nas redes sociais, foi no sentido de haver algo de errado nesse tipo de argumentação. É claro que todos os pronunciamentos que se fazem neste tipo de redes é de um modo geral pouco refletido e carregado de exageros retóricos, o que acaba por descambar no assassinato de caráter e na intimidação, cujo fito consiste em limitar a opinião dos outros. Muitas pessoas simplesmente não estão para entrar numa discussão com alguém cuja estratégia básica de argumentação é acusar todos os que discordam de si de serem racistas ou agentes de lavagens cerebrais.

Encontrar respostas precisas para questões complexas pode ser um trabalho árduo, e, por conseguinte, “a despreocupação descontraída com os factos” é tida como a “atitude”. A postura de um cidadão perante um candidato político ou é de uma atitude a favor ou contra. E de um modo geral esta atitude é uma atitude afetiva. Pode-se dizer que um cidadão se sente indiferente em relação ao candidato, mas o característico da indiferença é a ausência de certos sentimentos ou emoções e não a sua presença. Contudo, nem mesmo a indiferença é uma ausência pura; há algo que se sente quando não nos importamos com uma coisa ou quando somos indiferentes a isso. Como a insensibilidade, a indiferença é ao mesmo tempo um sentimento e uma ausência de sentimento. As posturas afetivas são tipicamente involuntárias. O sentido em que isto é assim é que não são questões de escolha ou decisão. Isto não é surpreendente visto que a maneira como alguém se sente não é habitualmente uma questão de escolha ou decisão. Quando se sente desprezo ou respeito por outra pessoa, não se escolheu habitualmente desprezá-la ou respeitá-la. Podemos, é claro, escolher mostrar respeito, mas não se pode escolher ter respeito por alguém se nada conseguimos ver nela que mereça respeito.

Há uma outra atitude diferente desta: a “malevolência epistémica”. A malevolência epistémica é a que atualmente está ligada aos “factos alternativos”. A malevolência epistémica é uma atitude, mas não uma atitude afetiva como “a despreocupação descontraída com os factos”. É o caso de quem nega a importância da atividade humana no aquecimento global, ou de quem faz campanha contra as vacinas. Em todos os casos, a estratégia básica é usar cientistas para denegrir o trabalho dos seus colegas convencionais e sugerir que os factos são menos claros do que na realidade são. São uma espécie de “cientistas alternativos” que lutaram contra as provas científicas e espalham a confusão em muitas das mais importantes questões do nosso tempo. Uma questão óbvia é: por que razão haveria um cientista de respeito querer fazer o que os “cientistas alternativos” fazem? Sem dúvida que os incentivos financeiros devem ser consideráveis. Não nos deve, portanto, surpreender, a difusão e manutenção de conhecimentos e atitudes que têm o efeito oposto ao conhecimento científico sério e honesto.

É por isso que não deixa de ser desconcertante ver como a esquerda tradicionalmente universalista, herdeira do Iluminismo e da Revolução Francesa, acabou por capturar os seus ideais e as reivindicações sociais e políticas pela noção de “desrazão” (‘unreason’ no texto em inglês). Verdade, direitos humanos, justiça e democracia, que estavam na linha da frente da luta contra o obscurantismo, acabou por se perder na nebulosa do pós-estruturalismo/pós-modernismo. Parte do pensamento de esquerda, a chamada esquerda pós-marxista, foi capturado pelo perspetivismo nietzschiano ao assimilar as suas ideias de não haver factos, mas apenas interpretações. E assim relativizou as normas sociais e/ou jurídicas da sociedade liberal-burguesa, denunciando-as como expressão de interesses particulares ou relações de poder que arbitrariamente favorecem alguns povos, culturas ou grupos sociais em detrimento de outros. Com este fundamento filosófico e epistemológico os “progressistas pós-modernistas” consideram-se em posição de “desconstruir” as normas dos grupos dominantes, ou privilegiados socialmente, e denunciar a hipocrisia social que lhe está subjacente, proclamando, em alternativa, que todas as “culturas são boas”.

sábado, 20 de outubro de 2018

Os cérebros de iogues tibetanos estudados por Richard Davidson


          Richard Davidson é um neurocientista à frente do laboratório de imagiologia cerebral do Centro Waisman, no Wisconsin-Madison, onde na última década intensificou o estudo do cérebro de iogues com larga experiência em meditação.
          A princípio foi impossível ter a cooperação dos iogues de alto nível. Mas quando Matthieu Ricard – um cientista francês que havia abandonado François Jacob nos anos 70 para se retirar nos mosteiros budistas do Nepal, e atualmente um iogue de alto nível, e o primeiro meditador a colaborar com Richard Davidson – assegurou aos seus pares iogues que a sua participação na investigação científica podia ser benéfica para as pessoas, Richard Davidson acabou por conseguir que 21 iogues de alto nível concordassem em colaborar.
          Entretanto com a aquisição da última versão da Ressonância Magnética de alta resolução, e a Eletroencefalografia de 256 canais, os investigadores do Wisconsin atingiram um grau de mapeamento cerebral centenas de vezes superior aos equipamentos convencionais utilizados noutros centros de investigação, já para não falar em relação aos vulgares equipamentos utilizados em Medicina.
          Assim, Richard Davidson havia descoberto agora que podia usar marcos anatómicos do cérebro que comparavam o cérebro dos iogues com o cérebro de outras pessoas guardados numa grande base de dados. Um aspeto que ele pode constatar, para além de muitos outros mais polémicos, foi que estes 21 iogues de alto nível apresentavam uma espessura de matéria cinzenta, comparada com pessoas com a mesma idade, muito superior. Isto significava que o grau de envelhecimento do cérebro dos iogues era inferir ao das outras pessoas. Em relação a este aspeto sabe-se que o cérebro não envelhece de igual modo em todas as pessoas, numas envelhece mais depressa, noutras mais devagar.
          Este facto, bastante notável, veio confirmar aquilo que Richard Davidson já suspeitava, na base do que se já conhecia da neuroplasticidade do cérebro: a meditação de longo curso permitia aos iogues a capacidade de voluntariamente poderem modelar a estrutura do cérebro sobretudo ao nível das áreas pré-frontais do cérebro.
          Todos se submeteram ao mesmo protocolo científico. Entravam nos estados modificados especificados quando queriam, com uma surpreendente facilidade. Cada um marcava uma assinatura neuronal distinta na geração de sentimentos de compaixão. Entravam e saiam numa questão de segundos desses níveis de consciência difíceis de atingir. Essas mudanças de consciência eram acompanhadas por mudanças igualmente pronunciadas n a atividade cerebral mensurável.
Tal coisa, nunca antes havia sido vista pela ciência. Uma assinatura neuronal que mostrava uma transformação duradoura. Em média, os iogues tinham uma amplitude nas oscilações gama vinte e cinco vezes maior – na linha de base – do que o grupo de controlo.
          Tudo começou em 1992, quando Richard Davidson, acompanhado da sua equipa de cientistas, encetou uma viagem de três dias a McLeod Ganj, a estância montanhosa nos sopés dos Himalaias perto da residência oficial do Dalai-Lama no exílio. Isto porque o Dalai-Lama prometeu ajudar ao identificar alguns mestres iogues a viver em pequenas cabanas, ou até em grutas, nas íngremes colinas dos Himalaias perto dali. O Dalai-Lama escrevera uma carta incitando os iogues a cooperar e enviou mesmo um emissário pessoal, um monge do seu gabinete privado, para reforçar tal pedido de colaboração. Mas quando os cientistas chegaram ao contacto dos iogues, todos eles responderam: não! Corriam pela montanha rumores que um iogue que havia abandonado o seu retiro para ir colaborar numa universidade na distante América, morrera pouco depois de regressar devido a essa viagem.
          Alguns dos iogues apresentaram o astuto argumento de que não faziam ideia do que, exatamente, eles queriam medir com aquelas máquinas. Além de que, se defraudassem as expectativas científicas, podiam ser levados a pensar que os seus métodos não serviam para nada. Eles tinham um grande orgulho pessoal nas suas realizações interiores e não acreditavam que aquelas máquinas as pudessem medir.
          Apesar de as perspetivas para os estudos científicos serem sombrias, Richard Davidson não baixou os braços. Graças à sua grande amizade com Matthieu Ricard e com Francisco Varela, foi inestimável a sua ajuda no prosseguimento das experiências com o cérebro. Assim, Matthieu ofereceu-se como a primeira cobaia de estudo. A sua formação em biologia molecular deu-lhe facilidade em lidar com os rigores e regras dos métodos científicos.
          Os iogues tinham, de facto, razão, porque o que eles queriam estudar era exclusivamente privado, ou seja, eram experiências na primeira pessoa e as medições objetivas da ciência biológica, quando muito, mostravam uma realidade apenas na terceira pessoa, isto é, vista de fora. Ora, o que Matthieu se propôs fazer, por orientação de Francisco Varela, foi precisamente encurtar essa distância entre a primeira e a terceira pessoa, ao ser ele ao mesmo tempo o cientista e o iogue a analisar. A sua mente bem treinada acabou por fornecer melhores dados do que se fossem pessoas menos treinadas.
          A equipa laboratorial percebeu naquele momento quão preciosa havia sido aquela experiência com Matthieu Ricard, pois constituiu a base daquilo que viria a acontecer nos anos que se seguiram com a participação de outros monges que eles apelidaram de olímpicos. Ninguém conseguiria prever onde tal conduziria, mas todos sentiam que era um ponto de inflexão crítico na história da neurociência, que não ficou indiferente ao estudo que eles publicaram em 2004 no “Proceedings of the National Academy of Sciences” – Long-Term Meditators Self-Induce High-Amplitude Gamma Synchrony During Mental Practice – artigo que no início de 2018 já havia sido citado na literatura científica mundial mais de mil vezes.


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A Europa no tempo de uma segunda jangada de pedra


          A Grã-Bretanha, depois da Segunda Guerra, com uma tremenda carência de pessoal para o mercado de trabalho, gizou em 1948 uma lei da nacionalidade britânica que veio a dar frutos na década seguinte com a maciça imigração vinda da chamada Commonwelth. Assim, chegaram ao Reino Unido milhares de imigrantes da Índia, Paquistão, Bangladesh e Antilhas.
          É claro que tudo isto teve grandes repercussões no estado social britânico. Mas tirando alguns episódios graves, como os tumultos de Notting Hill em 1958, foram mais a exceção do que a regra. Ao longo de anos os principais partidos saudaram os resultados dos censos num espírito de celebração. Em 2007, o então mayor de londres, Ken Livingston, falou com orgulho acerca do facto de 35% das pessoas que trabalham em Londres serem estrangeiras. E a reação geral dos comentaristas ao censo de 2011 e publicado no final de 2012, em relação à situação de em 23 dos 33 bairros de Londres os britânicos estarem em minoria, foi de júbilo pela salutar diversidade.  Efetivamente, no censo de 2011, o número de estrangeiros desde o censo anterior, portanto numa década, aumentou quase três milhões. Nessa altura, dos residentes em Londres, alegadamente 44,9% se identificavam como “britânicos nativos”. Em Inglaterra e Gales, três milhões de pessoas viviam em casas onde nem um único adulto falava inglês como primeira língua; e nesta década o número de muçulmanos passou de 1,5 para 2,7 milhões. Estes eram os números oficiais, mas há uma aceitação generalizada de que a imigração ilegal, pela improbabilidade de estes terem preenchido os formulários do censo de 2011, faz disparar estes números para mais um milhão.
          O mundo assiste atualmente à maior vaga migratória em massa desde a Segunda Guerra Mundial. E o exemplo mais impressionante é o do Mediterrâneo. Desde 2014 mais de quatro milhões de pessoas atravessaram o Mediterrâneo de sul para norte em barcos que metiam água. As guerras civis na Síria, Afeganistão e Iraque empurraram para a Europa um número sem precedentes de pessoas. É claro que os migrantes africanos tentam desde há muito chegar a Espanha a partir de Marrocos, ou às ilhas Canárias a partir do Senegal. E da Líbia para a Itália e Grécia. Mas nunca antes vieram migrantes em número assim tão extraordinariamente elevado, que por último passaram a partir em massa da Turquia para as ilhas gregas. A Hungria, que de repente viu a sua fronteira sul ser franqueada com cem vezes mais migrantes, acabou por erigir uma barreira de arame farpado. E quando as pessoas simplesmente se desviaram e rumaram à Croácia, os húngaros construíram também uma segunda barreira ao longo da fronteira com a Croácia.
          E assim a crise migratória criou divisões no sei da União Europeia. Ao fim de meses de infindáveis e estéreis conferências e cimeiras, a maior parte dos outros países da EU recusou-se a aliviar os gregos e os italianos para além de um punhado simbólico de migrantes. Um dos princípios fundadores da EU – a solidariedade entre os estados-membros – parecia ter desaparecido. E a seguir o Acordo de Schengen.
          As pessoas vão continuar a vir, quer nos agrade ou não agrade. Podia ser diferente? Podia. Por exemplo um programa que incentivasse os migrantes a permanecerem no Médio Oriente. Tal teria permitido à Europa gerir as chegadas de maneira mais metódica. Mas foi uma tempestade perfeita porque os refugiados não viram nenhum motivo para ficar quietos onde estavam; nem os países do Médio Oriente tinham nenhum motivo para os impedir de sair; nem a Europa para lhes bloquear o caminho.
          Mas a tensão subiu ainda mais de tom com os ataques de paris em 2015. Foi revelado que dois dos nove terroristas tinham teria provavelmente chegado à Grécia um mês antes, num barco carregado de refugiados. Não tardou quem pedisse que se fechassem completamente as portas aos refugiados. Esta reação era a que os terroristas queriam. No meio de toda esta angústia, os refugiados continuaram a atravessar o mar em número recorde e a morrer em número recorde.
          Nos anos que decorreram desde o censo de 2011, o número de imigrantes chegados à Grã-Bretanha continuou a subir. Excedendo em muito os 300.000/ano desde o censo de 2011, a quantidade dos novos números do Seguro Nacional emitidos anualmente (porque são necessários para trabalhar) tem sido mais do dobro. A população crescente do Reino Unido é agora quase inteiramente devia à imigração e a uma taxa de natalidade mais elevada entre imigrantes.
          Em suma, não são precisos muitos anos para que a Grã-Bretanha se torne irreconhecível aos olhos dos seus atuais habitantes.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Falar barato


          Tal como mentir, falar barato é uma coisa muito feia. No entanto, não deve haver ninguém que não tenha mentido algumas vezes. Umas vezes por necessidade de salvar a pele, outras vezes para atingir certos objetivos, que de uma forma honesta não o conseguiria. Mas ao contrário do fala-barato, normalmente as pessoas não mentem por gostarem de mentor. Ao passo que o fala-barato fá-lo por gosto.
          O que o falar barato deturpa, essencialmente, não é o estado de coisas ao qual se refere – que a mentira deturpa por ser falso. O que tem é falsas crenças em relação a esse estado de coisas. Falar barato não envolve falsidade no sentido intencional de enganar, pelo que difere de mentir.
          O fala-barato pode não nos enganar, ou nem ao menos querer fazê-lo, sobre os factos ou a sua interpretação deles. O que ele deturpa é a realidade sem ter isso como objetivo. Esse é o ponto crucial da distinção entre ele e o mentiroso. Ele fala como se tentasse comunicar a verdade. De qualquer forma, o sucesso tanto de um como de outro reside no facto de fazer os outros acreditar no que diz como se fosse verdade. De resto, para o fala-barato, pouco importa que o que diz seja verdade ou não. A verdade não é a sua preocupação. Portanto, a sua intenção não é contar a verdade, mas também não é ocultá-la, como acontece com o mentiroso. É impossível para alguém mentir a menos que julgue conhecer a verdade. Isso não significa que seu discurso seja anarquicamente impulsivo. Seu enfoque não é sobre os factos, como o da pessoa honesta e do mentiroso. Ele não se importa se as coisas que fala descrevem a realidade corretamente. Apenas as escolhe ou inventa para satisfazer seu propósito.
         É inevitável falar barato todas as vezes que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está a dizer. Assim, a produção de imbecilidades é estimulada sempre que as obrigações ou oportunidades que uma pessoa tem de se manifestar sobre algum tópico excederem o seu conhecimento dos factos pertinentes. Essa discrepância é comum nas redes sociais, em que os indivíduos são com frequência impelidos, seja pelas próprias inclinações ou por exigência de outrem, a falar sobre questões em que são até certo ponto ignorantes. Exemplos intimamente relacionados se originam de uma convicção generalizada de que é dever do cidadão, numa democracia, ter opiniões sobre tudo ou, pelo menos, tudo aquilo que diga respeito à política o a questões ditas fraturantes.
          A falta de um nexo significativo entre o fala-barato e a sua apreensão da realidade vai tornar-se ainda mais grave quando ele acredite ser seu dever, como agente moral, avaliar o comportamento dos outros. A atual proliferação do ato de falar imbecilidades tem também raízes muito profundas em várias formas de ceticismo, que negam o facto de que possamos ter acesso confiável a uma realidade objetiva, rejeitando, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade são.
          Vivemos numa época em que muitas pessoas acham que a verdade não merece nenhum respeito especial, baseando-se no facto de que o que há é pontos de vista, e há convicções que são levadas a serem consideradas verdadeiras por várias pressões sociais complexas e inelutáveis. Ora, não parece que uma civilização se aguenta muito tempo se se generalizar o desprezo pela verdade e a honestidade. Ninguém em sã consciência confia no construtor de uma ponte, ou se entrega aos cuidados de um médico, se eles não se importarem com a verdade.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Do mundo da técnica ao mundo da arte


          De volta à espiritualidade, à transcendência, mas liberto de religião e metafísica, eis de novo o humanismo a ler com agrado Homero, ou a ouvir Bach, ou fascinado com o templo de Angkor para ver se consegue libertar-se das garras do materialismo.
          É a crença na universalidade da pluralidade do Outro, que impulsiona este novo humanismo para o “amor do próximo”. Já não é com o pensamento frouxo da “tolerância” democrática, mas sim com um pensamento aberto e alargado que possa abarcar o significado da “transcendência na imanência”. Assim se resume em pensamento a experiência fundamental da humanidade que passa pela compreensão do estoicismo, do budismo, do espinosismo e de todas as filosofias que nos convidam a esperar um pouco menos e a amar um pouco mais.
          A transcendência na imanência de 2018 é uma transcendência enraizada no humano, e já não em Deus nem na Pátria, fundamentada na sacralidade do Outro. O slogan do “mais vale vermelho que morto” desapareceu em 1989 com o totalitarismo soviético. Mas até aí, mais valia ceder à opressão do que arriscar a vida resistindo-lhe. Os motivos tradicionais do sacrifício, em que a vida não era o único valor importante e por isso se prescindia dela em nome de Deus ou da Pátria, já não fazem sentido. Agora é pelo Outro.
          É por isso que é deplorável ainda vermos humanos a massacrarem outros humanos inocentes. Enquanto seres humanos eles poderiam ter agido de outra maneira. Eles têm liberdade de escolha. Não são ursos, animais selvagens.
          Há na técnica uma transcendência em relação aos códigos morais. Na técnica não há juízos de valor em relação à vida, ou mesmo à própria existência do Universo. Neste ponto a técnica falha o essencial. Num pequeno ensaio intitulado “A Superação da metafísica”, Heidegger descreve como o domínio da técnica resulta de um processo que tem origem na ciência do século XVII para se estender pouco a pouco a todos os domínios da vida democrática. Lamentavelmente foi a sua descrença na democracia que o fez lançar-se nos braços do pior regime autoritário que a humanidade conheceu: “a maldade absoluta”. Já em apontamento anterior eu havia recordado o debate entre os filósofos sobre a “maldade” a seguir ao famoso terramoto de Lisboa em 1755. Decididamente, a Natureza, tal como propalavam os estoicos antigos, nada tinha de cosmos harmonioso e bom. E todos, ou quase todos, pensavam na época que a ciência iria salvar-nos das tiranias da Natureza. Havia entrado em cena a ideia moderna de uma felicidade conquistada pela ciência, de um bem-estar tornado possível pelo domínio do mundo.
          A técnica é um processo sem finalidade, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido. Diz respeito aos meios e não aos fins. Numa lógica de competição globalizada, uma empresa que não progrida todos os dias é uma empresa votada à morte. Mas este progresso não tem outro objetivo senão ele mesmo. Tudo isto ultrapassa, em muito, as vontades individuais conscientes.
          Hoje já ninguém arrisca dizer que a sobrevivência da espécie está garantida. Pela primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os meios de destruir o planeta inteiro. Os seus poderes de transformação são suficientemente gigantescos para provocar a destruição do mundo na Terra. Líderes europeus, ou melhor, burocratas, apesar de empregarem discursos moralizadores e piedosos, assistem praticamente impotentes a tudo isto.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Eudaimonia


Eudaimonia – o maior dos bens humanos, de Aristóteles – é um termo grego que literalmente significa 'o estado de ser habitado por um bom daemon (espírito, génio) é traduzido como felicidade ou bem-estar. Contudo, outras traduções têm sido propostas para melhor expressar o que seria um estado de plenitude do ser.

Num estudo de 2010 publicado em Applied Psychology: Health and Well-Being, menos de metade dos americanos, relata ter um forte sentimento de propósito na vida, para lá das obrigações para com o emprego e a família. Este aspeto particular do bem-estar poderá ter implicações significativas.

Conhecemos, dos relatos de alguns sobreviventes dos campos de concentração nazis, como o sentimento de sentido e propósito lhes permitiu sobreviver enquanto milhares morriam em seu redor. Cada um tinha um propósito, não necessariamente igual em todos eles.

A psicologia de hoje usa o termo bem-estar para uma versão da ideia aristotélica de florescimento com a autoaceitação, crescimento pessoal, autonomia, domínio e objetivo de vida.

Quando Alexandre Magno chegou com os seus exércitos à região onde é hoje Caxemira, ficou impressionado com um grupo de iogues ascéticos em Taxila, pela serenidade e indiferença com que o encararam dizendo que tanto como eles só poderiam na verdade possuir o solo que pisavam. De resto, tanto uns como outros morreriam um dia.

É interessante conhecer a forma como Alexandre olhou para estes “homens nus” se nos lembrarmos que ele fora educado precisamente por Aristóteles. Alexandre teria reconhecido os iogues como exemplares de outra fonte de conhecimento.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O valor e o sentido da vida


          À pergunta: “Pode a vida ter objetivamente sentido?”, há pessoas que respondem que não; e há pessoas que respondem que sim. As pessoas que respondem que não são classificadas como pessimistas; e as pessoas que respondem que sim são classificadas como otimistas. É claro que há sempre subtilezas em questões como esta, independentemente de serem filosóficas ou não, isto é, trabalhadas por filósofos profissionais, podia dizer-se que objetivamente a vida tem valor. Mas quanto ao sentido apenas o terá do ponto de vista subjetivo. O sentido é o que cada um lhe dá.
          A questão é saber se tudo aquilo que tem sentido porque nos faz feliz, ainda assim se pode considerar que tem sentido para além disso. E foi precisamente o que Liev Tolstói questionou em “Confissão” no auge da sua carreira de escritor, quando tinha todas as razões para se sentir feliz. Angustiadamente, perguntou que sentido faria tudo aquilo, o facto de ser o melhor escritor do mundo, ter uma mulher encantadora, e assim por diante. Sim, era nessa altura o mais famoso dos escritores que havia no mundo – e depois? Tolstói não encontrava resposta para aquela pergunta. É natural, quando a vida corre mal, ou quando se está deprimido, que não se encontre nenhum sentido para a vida. Mas o que é relevante no caso de Tolstói, e penso que é o que acontece a muitas outras pessoas, é quando, apesar da sua felicidade, não encontrarem nenhum sentido para essa felicidade: Sou feliz, mas que sentido tem isso?
          A noção de valor desempenha um papel crucial na teorização sobre o sentido da vida, quando temos todas as condições para sermos felizes e ainda assim nos sentimos inquietos. É nestas circunstâncias que pomos em causa o valor objetivo da nossa própria felicidade e da nossa vida. A nossa vida estaria ao serviço de um qualquer propósito que ultrapassa a nossa própria vida. Assim, a nossa vida não teria como finalidade última a nossa própria felicidade, mas antes qualquer outro desígnio.
          Sem dúvida que a felicidade individual de uma pessoa pode ser muitíssimo menos importante do que acabar com a fome do mundo. Mas se acabar com a fome no mundo é contribuir para a felicidade de milhões de pessoas que agora morrem à fome, acabamos por entrar no mesmo círculo que considera a felicidade como uma finalidade última. Assim, a ideia de propósito não consegue evitar o problema central do sentido da vida. Foi assim que existencialistas ateus franceses, como Sartre e Camus, chegaram à conclusão que a vida era absurda e que não tinha valor.
          Por agora fico-me pela retenção da seguinte ideia: O sentido da vida é subjetivo. E uma vida tem sentido se, e só se, for uma entrega ativa a projetos de valor. Então o que precisamos de saber – para não termos uma vida como a de Sísifo, e ainda por cima eterna – é que tipos de valores são bons para serem considerados como valores objetivos.
          Todos reconhecemos alguns tipos fundamentais de valores: éticos, estéticos e cognitivos. O amor, a amizade, a verdade e a solidariedade.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Os Transumanistas e o conceito de “natureza humana”


Enquanto que os Transumanistas, apostando na superação dos limites da condição humana, falam numa “pós-humanidade” como ampliação das possibilidades do “ser” no mundo; os Bioconservadores avocam o papel de defensores da “natureza humana”, pelo que são intransigentes quanto ao respeito pelos limites da condição humana. Ou seja, enquanto para os primeiros o processo de alteração da condição humana será algo de positivo, pois beneficiará o ser humano, para os segundos ocorrerá precisamente o contrário.

Interfaces cérebro-computador, ou membros biónicos, já hoje existem como exemplo do que a biotecnologia nos pode oferecer como algo benéfico e extraordinário. Qual é o problema de a biotecnologia permitir ao humano transcender as suas limitações biológicas? Doenças incuráveis, deficiências com limitação funcional, por vezes incapacitantes, podem ser erradicadas, e assim se promove a saúde e o bem-estar. Por outro lado, também se podem melhorar capacidades mentais, modelar emoções, elevando-se assim o nível de bem-estar individual e coletivo.

O Transumanismo é definido como uma mundividência filosófica no sentido da pós-humanidade. O Transumanismo compartilha muitos elementos do Humanismo, incluindo o respeito pela razão e pela ciência, um compromisso com o progresso e uma valorização da existência humana (ou transumana) na Terra, que nada tem a ver com o arquétipo de uma pós-vida sobrenatural. O Transumanismo difere do Humanismo ao reconhecer e antecipar as radicais alterações na natureza e as possibilidades que as várias ciências e tecnologias têm de modificar as nossas vidas para melhor.

Os Bioconservadores acusam os Transumanistas de anti-humanistas perigosos, pragmáticos sem valores e tecnoprofetas inconsequentes e ingénuos. Os Bioconservadores batem-se pela preservação do natural em detrimento do artificial. A natureza humana consiste em um conjunto de disposições que todos (ou pelo menos a maioria) os seres humanos têm, assim como uma vasta gama de atividades humanas que dão forma ao comportamento, independentemente do contexto cultural ao longo da história humana.

Para Habermas, a natureza humana é constituída por certas características que conferem ao humano vulnerabilidade e precariedade. Elas servem como firme fundamento para as nossas intuições morais, os nossos vínculos sociais e a nossa autocompreensão ética enquanto espécie, bem como para a autonomia, dignidade e autenticidade humanas. Habermas está especialmente preocupado com os limites daquilo que denomina de eugenia positiva da natureza humana pelos genes, supondo que esta seja como uma “massa de modelar” suscetível de manipulação e design.

O pós-humanismo filosófico é a antevisão da evolução da espécie humana para uma nova espécie inteligente. Os ideais do transhumanismo contrastam com o "pós-humanismo cultural" nas humanidades e nas artes. Um "pós-humanismo cultural" repensa apenas as relações entre humanos e máquinas. Concebem o transhumanismo como um descendente do movimento do livre-pensamento humanista e argumentam que os transumanistas diferem da corrente principal humanista por ter um foco específico em abordagens tecnológicas para resolver preocupações humanas.

Alguns teóricos, como Raymond Kurzweil, são otimistas quanto ao ritmo da inovação tecnológica para os próximos 50 anos poderem produzir não apenas avanços tecnológicos radicais, mas, possivelmente, uma singularidade tecnológica, o que pode mudar fundamentalmente a natureza dos seres humanos. Mas outros, como por exemplo Bostrom, têm escrito extensivamente sobre os riscos existenciais para o futuro bem-estar da humanidade, incluindo aqueles que poderiam ser criados pelas tecnologias emergentes.

Há uma variedade de opiniões dentro do pensamento transhumanista, defendendo pontos de vista que estão sob revisão e desenvolvimento constante. Embora muitos transhumanistas sejam ateus, agnósticos, ou humanistas seculares, alguns têm pontos de vista religiosos. Budistas transhumanistas têm procurado explorar áreas derivadas da meditação “mindfulness” como uma ferramenta para transcender a Humanidade. Desde 2009, a Academia Americana de Religião detém uma consulta sobre "Transhumanismo e Religião", onde estudiosos no campo de estudos religiosos procuram identificar e avaliar criticamente quaisquer crenças religiosas implícitas que podem estar nas reivindicações transhumanistas.

Enquanto alguns transhumanistas apenas fazem uma abordagem abstrata e teórica para os benefícios percebidos de tecnologias emergentes, outros têm oferecido propostas específicas de modificações no corpo humano, incluindo as hereditárias. Outros estão preocupados com métodos de melhoria do sistema nervoso humano. Embora alguns proponham a modificação do sistema nervoso periférico, o cérebro é considerado o denominador comum da pessoalidade e é, portanto, o foco principal das ambições transhumanistas.

Alguns relatórios sobre as tecnologias convergentes continuam a falar apenas num delírio de ficção científica. Mas ao mesmo tempo o Departamento de Defesa dos EUA está interessado ​​nas vantagens no campo de batalha dos Super Soldados, olhando para a possibilidade de aumentar a capacidade humana para o combate a um máximo de 168 horas sem dormir. O neurocientista Anders Sandberg tem praticado o método de digitalização de secções ultrafinas do cérebro. Este método está a ser usado para ajudar a compreender melhor a arquitetura do cérebro. Este é o primeiro passo para o upload do conteúdo do cérebro humano, incluindo memórias e emoções, para um computador.

Diante de tais evoluções, é prudente analisar os argumentos de um lado e do outro a fim de evitar uma polarização do tipo “bem contra o mal”. Cumpre analisar se a biotecnociência merece tanto crédito.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A ideia de “uma Europa de velhos”


          Um dos argumentos a favor da necessidade de imigração em massa de povos de outros continentes para a Europa, para além do da sustentabilidade económica da segurança social, e o da vantagem da diversidade genética, prende-se com o facto de a Europa ter uma população muito envelhecida. A Europa é uma sociedade envelhecida e com uma taxa de natalidade muito baixa. Então, numa tal situação, precisamos de fazer entrar mais pessoas, senão a nossa sociedade não terá jovens suficientes para garantir aos mais velhos um estilo de vida a que sempre estiveram acostumados.
          Há um leque imenso de respostas possíveis a este problema, mas nenhum deles é simples. Por isso, não os vou enunciar aqui. O que podemos ficar inquietos é quando ouvimos o que se diz por aí: que como há trabalhos que os jovens europeus em particular não fazem, preferindo estar desempregados e a receber do estado um qualquer suprimento social, do que aceitar um trabalho com um salário baixo.
          Um qualquer deputado europeu, de um qualquer país da Europa – pondo de parte agora a insinuação racial de um qualquer europeu, quanto a certos papeis, estar acima dos imigrantes que os podem fazer por estarem inteiramente adequados a eles – disse:
          “São necessário muitos imigrantes para o meu país. Não quero que a minha filha venha a ter que apanhar batatas.”
          Estaremos satisfeitos com este tipo de argumentos? Por que razão os jovens europeus têm de estar (se estiverem) “acima” de outros quando toca a terem que se desenvencilhar no cumprimento de tarefas que têm a ver com a sua própria subsistência?