quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Ulisses e a racionalidade do autodomínio


A Odisseia conta a história de Ulisses, rei da ilha de Ítaca, no regresso a casa depois da Guerra de Troia. Ao contrário dos heróis gregos, Ulisses não é um deus, ou um semideus e nem uma figura mitológica, ele é apenas um ser humano que luta contra diversas forças pra conseguir voltar pra casa. Homero usa a mitologia grega para narrar as peripécias por que Ulisses tem de passar numa longa viagem que leva vinte anos a percorrer no meio do Mediterrâneo.



As Sereias de Ulisses - William Etty, 1837


O episódio do canto XII da Odisseia trata dos perigos que Ulisses passa durante a viagem. 
Um desses perigos é a passagem por onde cantam as sereias, cuja beleza seduzia todos os marinheiros que por lá passavam. Na busca desse encantador canto feminino, os homens atiravam-se ao mar e aí pereciam. Ulisses, advertido do perigo pela maga Circe, utiliza dois estratagemas para que ele e seus marinheiros escapem do perigo. Os marinheiros têm os ouvidos tapados com cera, para que não ouçam o canto. Ulisses é amarrado ao mastro do navio para que possa ouvi-lo sem, no entanto, atirar-se ao mar. Os marinheiros desconhecem o perigo, mas também a beleza do canto. Quanto a Ulisses, pode desfrutar do canto porque transformou o seu desejo em espetáculo, devendo renunciar ao seu sonho. Sob esse ponto de vista, a constituição de uma razão astuciosa, calculadora, é contemporânea da renúncia de si. A viagem metafórica realizada por Ulisses seria também aquela que a humanidade precisou realizar partindo do mito até ao desenvolvimento vitorioso da razão, que exigiu o “ascetismo do mundo interior”.

Essa razão é a do autodomínio: “por mais que vos peça, por mais que vos suplique de me soltar, com nós mais apertados amarrai-me”, diz Ulisses aos seus marinheiros, sabendo que todos os navegantes que por ali passavam não chegavam ao destino procurado e lá pereciam. Só Ulisses é sujeito, porque se sacrificou. Quanto a seus marinheiros, foram duplamente sacrificados: não renunciaram por vontade própria a ouvir o canto. Esse episódio fuga em direção ao canto se comunica na forma da privação e da ausência.

Ulisses e seus marinheiros passam pela ilha onde habitam os ciclopes, homens gigantes com um único olho, no meio da testa. Ulisses foi advertido para não pernoitar na ilha, mas ele deseja conhecer tudo o que ali ocorre. Para isso vale-se da sua astúcia.
 Quando um ciclope chamado Polifemo pergunta o seu nome, Ulisses diz que é Odisseu, que em grego (U-deis) significa “Ninguém”. Para que possa conhecer a ilha à noite sem correr nenhum risco, Ulisses embriaga Polifemo e, enquanto ele está adormecido, fura-lhe o único olho com uma lança. Polifemo grita de dor, despertando os demais ciclopes, que vêm em seu socorro. O que ouvem, entretanto, são gritos de: “Ninguém me feriu, Ninguém me feriu”. Tranquilizados, os ciclopes retornam às suas grutas, como Ulisses havia previsto. O facto de Polifemo ter um único olho significa o seu desconhecimento da tridimensionalidade do espaço, ou, em outras palavras, encontra-se em estado de natureza. Só Ulisses está do lado da História, porque depois desse episódio passa a ter um nome: ele é Ulisses e não mais “Ninguém”.

Ilha de Capri, uma ilha rochosa cheia de sereias. 
Ulisses sabe que as sereias têm um poder de encanto sobre os homens. Enquanto passavam próximo da ilha, Ulisses ouviu as Sereias e gritava desesperadamente para ser desamarrado, mas os seus homens não o ouviam, assim como também não ouviam as sereias que encantavam Ulisses.

A lenda das sereias surgiu por causa do som que os ventos faziam quando batiam nas pedras escarpadas de algumas ilhas do Mediterrâneo. Os ventos uivantes batiam nas rochas, e reverberavam por causa das águas. Isso gerava um som suave e agudo que era confundido com o canto de mulheres. Carentes de afagos de mulher, os marinheiros passavam por alucinações sensoriais. M
iragens de mulheres, algo semelhante ao que acontece com quem caminha pelo deserto e deseja tanto encontrar água, que vê água aonde só existe areia. Acredita-se que muitos navegantes realmente tenham morrido ao se atirar nas águas contra as pedras, acreditando que encontrariam lindas mulheres na praia.

A partir dai a imaginação humana se encarregou de formatar o mito das sereias, dizendo que elas tinham cauda de peixe e corpo de mulher, poderes mágicos, a descendência dos deuses. O canto da sereia acabou por se tornar sinónimo de toda a sedução que o ser humano sofre (e muitas vezes cai), aonde a pessoa deixa de usar a razão por causa das suas necessidades mais urgentes e acaba sendo iludido e pagando um elevado preço por isso. Mas existe um outro aspeto muito importante na compreensão do mito das sereias que tem a ver com a nossa fragilidade mediante as nossas carências.
Quando entendemos que as sereias são uma miragem, percebemos que existe um perigo mortal em ver as coisas como queremos que elas sejam e não como elas realmente são. Muitas vezes olhamos as pessoas, coisas e situações não como realmente são, mas como gostaríamos que elas fossem. Acabamos como os marinheiros que viam lindas mulheres aonde só havia ventos, pedras e água fria. É terrivelmente destrutivo pra as nossas vidas quando só vemos o que queremos ver. Wishful thinking é a expressão que os de língua inglesa costumam usar para designar a mesma coisa.

Mas Ulisses é o oposto do que hoje são os gurus da autoajuda que se auto designam por um coach com os seus processos de coaching. O que Homero descreve como Ulisses faz para sobreviver ao canto da sereia é de uma genialidade tremenda, porque ele exalta várias características imprescindíveis para que nós não sejamos vítimas das nossas próprias carências. São os heróis modernos, um retrato atual da nossa sociedade, pessoas que passam o tempo inteiro com o negócio da treta.

Ulisses reconhece que é homem e está ciente das fraquezas que são humanas. Consciente de sua fragilidade, ele age para superar a sua condição limitada que seria cair na inocência dos palermas. Camões terá ido buscar a mesma imagem quando diz que "para passar além do Bojador é preciso passar além da dor". Ao ser amarrado no mastro, ele está simbolizando que estar preso, ligado, comprometido, com os seus objetivos de vida, não o deixa cair no canto da sereia. Seu objetivo era mais forte que a sua carência. Por isso ele não se deixou levar pelo canto da sereia. Ele conseguiu evitar lançar-se ao mar estando preso ao seu propósito de vida. E quando finalmente chegou em casa, Ulisses resolveu toda a sua carência nos braços de Penélope, a sua mulher amada.

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