terça-feira, 19 de outubro de 2021

Ter cuidado




Enquanto ouço Mark Knopfler na canção “On Silvertown Way the cranes stand high”, leio as notícias dos desmandos. Bem, uma coisa é ser tolerante em relação ao antípoda; outra coisa é a complacência para com a bandalheira. Ter estilos de vida pré-modernos num tempo pós-moderno é a astúcia da pós-modernidade. A exacerbação recente de superstições, teorias da conspiração e quejandos, em coexistência com a enorme maquinaria tecnológica suportada pela ciência mais desenvolvida a nível global, está a deixar as pessoas, ainda com algum bom senso, atónitas. 
Nunca pensei estar em casa a assistir a um conteúdo sul-coreano “Squid Game”: Um grupo de pessoas passando por dificuldades financeiras aceita um estranho convite para um jogo de sobrevivência. Um prémio bilionário os aguarda, mas as apostas são altas e mortais.

O Governo de Macau apelou há dias a crianças e adolescentes para não verem a série televisiva sul-coreana "Squid Game", que contém muita violência, sangue, elementos assustadores e valores distorcidos que envolve uma violência horrenda. As autoridades de educação do antigo território administrado por Portugal avisaram ainda que o fenómeno de imitação de algumas cenas tornou-se uma tendência global e, por essa razão, instou os jovens a não imitarem a conduta violenta.




Quando Marx caracterizou o capitalismo, a grande questão era: “Quem produz as riquezas?”. Daí a preponderância da figura do Explorador, esse sanguessuga que parasita a força viva do trabalho humano. Essa questão não perdeu evidentemente atualidade. Hoje é Mark Zuckerbeg a sugar a identidade das próprias pessoas, essa figura do Empresário, aquele para quem tudo é oportunidade – a liberdade de poder transformar tudo em oportunidade – para um novo lucro, inclusive o que põe em xeque o futuro comum. É perigoso, algo que um patrão individual poderia entender, mas não a lógica operatória do capitalismo, que eventualmente condenará aquele que recua diante de uma possibilidade de empreender. 
Salvo alguma surpresa, o Facebook chegou ao fundo do buraco reputacional. Os casos narrados no livro An Ugly Truth: Inside Facebook’s Battle for Domination ​(2021), de duas jornalistas do New York Times, e as denúncias da ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, aumentaram a pressão para que o poder político atue. Mark Zuckerberg não deverá sair desta situação apenas com mais um pedido de desculpas.

Com a figura do Empresário outras duas aparecem: o Estado e a Ciência. Talvez seja possível associar o momento, em que se pode realmente falar de capitalismo, com aquele em que o Empresário pode contar com um Estado que reconhece a legitimidade da sua exigência. 
Quando um industrial diz, com a voz hipocritamente chorosa, “O mercado julgará”, ele está a celebrar a conquista desse poder. Ele não tem que responder pelas consequências (eventualmente muito pouco desejáveis) do que é colocado no mercado, a não ser que elas violem uma proibição explícita formulada pelo Estado, uma proibição cientificamente explicada e que responde ao imperativo da proporcionalidade. Quanto à Ciência, que em todas as áreas recebeu uma autoridade geral sobre a definição dos “riscos” a serem levados em conta, os cientistas afirmam que nada têm a ver com isso. Os especialistas que jogam esse jogo dizem que são a priori o mais ponderados possível a medir a proporcionalidade das suas ações em relação ao risco sem prejudicar o princípio da inovação.

Esta a perene questão ética da Ciência em contraponto  com a questão do progresso. Abordando a questão do progresso – para além do Bem e do Mal – Para que a humanidade se possa subtrair a esse massacre chamado ‘progresso’, é necessário o rompimento com tudo o que é “histórico”, isto é, tudo o que está para cá do Bem e para além do Mal. É necessário romper com a noção de história como um continuum linear. Romper com a linearidade do progresso científico-tecnológico tal como foi estabelecida pela a racionalidade da dominação. A maldição do progresso irrefreável que se transforma em regressão.

Não existe nenhuma linha reta que conduza a humanidade da barbárie à civilização. Mas existe uma linha reta que conduz da funda de David às bombas atómicas de Hiroxima e Nagasaki. Essa racionalidade científica, que se faz passar pela única forma de racionalidade, recalca aspetos importantes da razão: a sensualidade, a sensibilidade, a sensação. Tomadas como antagónicas da razão, pela civilização repressiva, "a emoção, o sentimento, o espírito", foram preteridas na hipertrofia da racionalidade analítica da matemática, pragmática e calculista. Malgrado os desenvolvimentos técnicos e científicos, há uma regressão da sociedade, o que se atesta pelas periódicas recaídas no auge da civilização – barbárie, fascismo, nazismo, totalitarismo. A razão é responsável pela produção do irracional, pois manipula a mente humana e o corpo, para a vã glória de um Eu dominador.

A Ciência acaba sempre por voltar à Mitologia, com a gabarolice dos seus métodos, e a adoração fetichista de si mesma. A Ciência converte-se em Mitologia porque na verdade, ao contrário do que se pensa, não fez desaparecer o Mito da Origem e da Criação. Pelo contrário, tornou-se o conteúdo da sua própria estrutura. É o irracional no interior da própria razão que se converte em violência histórica, ao mesmo tempo produtivista e destrutiva. Hoje a barbárie exerce-se por outros meios, naturalmente, mas o instinto humano é o mesmo: sempre devastador.

Que Ciência é essa que intervém como árbitro no que diz respeito ao seu direito de inovar contra o direito do Estado proibir? Com a articulação Empresário-Estado-Ciência estamos bem próximos da lenda dourada que prevalece quando se trata da “irresistível escalada do poder do dinheiro”. Essa lenda põe efetivamente em cena a aliança decisiva entre a racionalidade científica, mãe do progresso de todos os saberes, o Estado que se livrou enfim das fontes de legitimidade arcaicas que impediam essa racionalidade de se desenvolver, e o crescimento industrial que a traduz em princípio de ação enfim eficaz, o que os marxistas chamaram de desenvolvimento das forças produtivas. É dessa lenda, por certo, que devemos escapar. Mas, se a arte de ter cuidado deve ser reconquistada, é importante começar por ter cuidado com a maneira pela qual somos capazes de escapar dela.

É das simplificações que convém desconfiar, simplificações que ratificariam ainda a história de um progresso atribuído ao Capitalismo. É preciso recordar aqui que, o Antropoceno, a chamada última era que começou com a Revolução Industrial há 200 anos, está colada ao que agora se sabe das alterações climáticas e o aquecimento global de causa antropogénica. 
Em qualquer caso, falta saber o que se pode fazer no sentido da arte de ter cuidado. É insustentável por muito mais tempo este capitalismo totalitário. Devemos voltar a estudar Marx, sabendo que não há só marxistas obstinadamente deterministas. Também há marxistas que temperam o determinismo das profundezas da História com o papel do indivíduo na História. Indivíduos podem fazer a diferença na deriva da História. Portanto, se há algo de necessário nas profundezas da História, também há mais contingência à superfície, que deriva da característica simplista dos agentes.

Há, de facto, uma grande diferença entre um ministro e um príncipe da Renascença. Ou entre um guru de seita, e um doutor de turbas. O governo em vez de ressarcir o sangue derramado, embriaga-nos com vinho feito a martelo para melhor nos anestesiar o bom senso e fazer-nos acreditar em falsas divindades. 

Estão a decorrer as negociações para o Orçamento do ano que vem. É este o orçamento porvir falsamente libertador, que deve ser desarmadilhado no parlamento de forma controlada, para que depois não expluda apanhando toda a gente de surpresa, tarde de mais. Uma coisa é certa, os salvadores de pátrias põem os seus adeptos a andar por caminhos tortos às arrecuas, e de pernas para o ar.

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