domingo, 24 de outubro de 2021

Frenkel no Campo Prisão Solovki





Naftaly Aronovich Frenkel, prisioneiro na Prisão Solovki, situada na ilha Solovetsky e que foi tratada no artigo precedente deste blogue, tornou-se num dos mais influentes comandantes de Solovki, promoção após promoção. Arquivos recém-abertos, em especial os arquivos regionais da Carélia (a república soviética à qual Solovetsky pertencia então), realmente deixam clara a importância de Frenkel no contexto do tema mais vasto dos gulags. Mesmo que não tenha inventado cada aspeto do sistema, ele encontrou maneira de transformar um campo prisional numa entidade económica aparentemente rentável. E fê-lo numa época e num lugar de uma maneira tal que não passou despercebido a Stalin.

"Judeu turco nascido em Constantinopla", na descrição de Soljenitsin, o nome de Frenkel aparece em muitas das memórias escritas sobre os primeiros tempos do 'sistema de campos', e por elas fica claro que, mesmo em vida, a identidade daquele homem já estava envolta em mito. Fotos oficiais mostram um indivíduo de aparência calculadamente sinistra, usando boné de couro e bigode muito bem aparado; um memorialista recorda que Frenkel "se trajava como um dândi". Um de seus colegas da OGPU, o qual o admirava muitíssimo, surpreendia-se com a sua memória infalível e a sua aptidão para fazer contas de cabeça: "Ele nunca punha nada no papel". Depois, a propaganda soviética também teceria eloquentes elogios à sua "incrível memória e excelentes conhecimentos do trabalho madeireiro e florestal em geral". A sua perícia em matéria de agricultura e engenharia era excecional. 

A história fica um tanto mais clara quando se lê o seu registo de preso, que informa que ele nasceu em Haifa em 1883, época em que a Palestina era parte do Império Otomano. De lá, ele provavelmente seguiu, talvez por Odessa, talvez pela Áustria-Hungria, para a URSS. Aqui aparece como "comerciante". Em 1923 é preso por "ter atravessado fronteiras ilegalmente", o que podia significar que era um comerciante que se permitia fazer algum contrabando, ou que era apenas um comerciante que se tornara demasiado bem-sucedido para o gosto soviético. Foi condenado a dez anos de trabalhos forçados em Solovetsky.

Soljenitsin, em Arquipélago Gulag refere que o próprio Frenkel concebeu o sistema de alimentar os presos segundo o trabalho produzido. Esse sistema tornou-se fatal, em questão de semanas os presos mais fracos morriam. Por outro lado, uma ampla gama de historiadores russos e ocidentais contesta a importância de Frenkel e descarta como mera lenda as muitas façanhas dele. É provável que Soljenitsin exagere ao falar de Frenkel. Todavia, permanece um mistério o modo exato pelo qual Frenkel se metamorfoseou de preso em comandante de campo. A lenda diz que, ao chegar lá, ele ficou tão horrorizado com a má organização, com o desperdício puro e simples de dinheiro e mão-de-obra, que resolveu escrever uma carta 
descrevendo de maneira precisa o que estava errado com cada uma das atividades económicas locais, entre elas a silvicultura, a agropecuária e a olaria. 

Colocou a carta na "caixa de reclamações" dos presos que depois um administrador enviou como curiosidade para Genrikh Yagoda, um chefe da polícia secreta. Consta que Yagoda quis conhecer de imediato o autor da carta. De acordo com um contemporâneo (e com Soljenitsin, que não explicita nenhuma fonte), o próprio Frenkel afirmou que, em certa altura, foi levado a Moscovo para ser presente a Estaline. É aí que a lenda fica mais nebulosa: embora os registos realmente mostrem que Frenkel se encontrou com Estaline nos anos 1930, e embora tenha sido protegido durante as purgas no Partido, ainda não se achou nenhuma comprovação de uma visita na década anterior. Isso não quer dizer que ela não tenha acontecido - pode ter acontecido os registos terem desaparecido. 

Surpreendentemente Naftaly Frenkel foi promovido de preso a guarda passado pouco tempo. Em novembro de 1924, quando estava no campo havia menos de um ano, era solto. Todas as informações eram elogiosas a seu respeito: "no campo, ele se portou como um trabalhador excecionalmente talentoso, tendo adquirido estima e confiança da administração. Tal êxito logo se tornou o principal argumento para que se reestruturasse todo o sistema prisional soviético. Se isso se fizesse a custo de piores rações e condições de vida para os presos, ninguém se importaria muito. Na realidade, o sistema de Frenkel era bem simples. Ele dividia os presos em três grupos, consoante a aptidão física: os considerados capazes de trabalho pesado; os capazes de serviços leves; e os inválidos. Cada grupo recebia uma série diferente de tarefas e metas. Eram então alimentados de acordo - e as diferenças entre as rações se mostravam bem nítidas. Uma tabela, elaborada entre 1928 e 1932, destinava oitocentos gramas de pão e oitenta gramas de carne aos integrantes do primeiro grupo; quinhentos de pão e quarenta de carne aos do segundo; e quatrocentos de pão e quarenta de carne aos do terceiro. A categoria de trabalhador mais baixa recebia o equivalente a apenas metade do que comia a mais alta.

Na prática, o sistema dividia bem depressa os presos entre os que iriam e os que não iriam sobreviver. Os fortes, sendo relativamente bem alimentados, ficavam mais fortes. Os mais fracos, estando privados de comida, se enfraqueciam e acabavam adoecendo ou morrendo. O processo se tornava mais rápido e mais radical porque as metas de trabalho eram com frequência muito elevadas - absurdamente elevadas para alguns presos, em especial a gente da cidade que nunca trabalhara escavando turfa ou cortando árvores. Em 1928, as autoridades centrais puniram um grupo de guardas de campo porque eles, a fim de cumprir a meta, haviam forçado 128 pessoas a trabalhar a noite inteira na floresta em pleno inverno. Um mês depois, 75% desses presos ainda estavam com graves queimaduras de frio.

Frenkel "racionalizou" outros aspetos da vida no campo, descartando aos poucos tudo o que não contribuísse para a produtividade económica. Bem depressa renunciou toda pretensão de reabilitar. Como se queixavam os detratores de Frenkel, ele fechara os jornais e outros periódicos do campo e suspendera as reuniões da Associação de Estudos Locais de Solovetsky. O museu e o teatro continuaram a existir, mas só para impressionar os maiorais que chegavam de visita. Por fim, sob a liderança de Frenkel, o conceito de "preso político" mudou em definitivo. No outono de 1925, abandonaram-se as distinções artificiais que se haviam traçado entre quem fora condenado por atividades criminais e quem fora condenado por atividades antirrevolucionárias, uma vez que ambos os grupos eram mandados juntos ao continente para trabalhar nos enormes projetos de abate de árvores e processamento de madeira na Carélia

Em outubro de 1924, seguiu-se uma série de artigos no Izvestiya. "Quem acredita que Solovetsky seja uma prisão deprimente e sombria, onde as pessoas ficam inativas, perdendo o tempo em celas superlotadas, está muito enganado", escreveu N. Krasikov. "O campo inteiro consiste numa enorme organização económica de 3 mil trabalhadores braçais, atuando nos mais diversos tipos de produção." A vida que levam pode ser caracterizada como intelectual anarquista, com todos os aspetos negativos dessa forma de existência. A contínua ociosidade, a insistência nas mesmas dissensões políticas, as brigas de família, as disputas sectárias e, sobretudo, uma atitude agressiva e hostil para com o governo, em geral, e a administração local e os guardas do Exército Vermelho, em particular [...], tudo isso combinado faz que aquelas trezentas pessoas (mais ou menos) se mostrem refratárias a toda medida e toda tentativa das autoridades locais para introduzir regularidade e organização em suas vidas.

Era o começo do fim. Após uma série de discussões, durante as quais o Comitê Central ponderou e rejeitou a ideia de mandar esses presos para o exílio no exterior (preocupava-se com o impacto disso sobre os socialistas ocidentais - especialmente, por alguma razão, sobre o Partido Trabalhista britânico), tomou-se uma decisão. Ao amanhecer de 17 de junho de 1925, soldados cercaram o Mosteiro. Deram duas horas para que os presos fizessem as malas. Em seguida, conduziram-nos marchando para o porto, obrigaram-nos a embarcar e os despacharam para longínquas prisões na Rússia central, de regime realmente fechado - Tobolsk, na Sibéria ocidental, e Verkhneuralsk, nos Urais -, onde os presos encontraram condições muito piores que as de Solovetsky. Embora continuassem lutando por seus direitos, enviando cartas para o exterior, telegrafando mensagens uns para os outros pelas paredes das prisões e organizando greves de fome, a propaganda bolchevique seguia sufocando os protestos dos socialistas. Em Berlim, Paris e Nova York, as antigas associações de auxílio aos presos começaram a encontrar maior dificuldade para recolher fundos.

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