quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Quem Salvar?


Neste momento já está a decorrer a aplicação da vacina contra a covid-19 na população, um pouco pelo mundo onde nas últimas 24 horas ficaram infetadas mais cerca de 752.000 pessoas, e morreram devido à covid-19 quase 15.000. Como ainda não há vacinas para todos, e mesmo se houvesse seria impraticável ser vacinada toda a gente num único dia, há que estabelecer critérios de prioridade. E como em tudo na vida humana, nestas questões nunca há unanimidade. Neste caso específico da pandemia, em que os mais vulneráveis são os mais idosos, parece sensato dar prioridade aos mais idosos. Mas há quem introduza um raciocínio diferente, semelhante ao raciocínio utilizado nos cenários de guerra: nesta situação estaria implícito que os profissionais de saúde, equivalentes aos jovens soldados numa guerra, tanto uns como outros são os que asseguram a sobrevivência da população. 

As mães sabem que precisam de ir à frente dos filhos, que ainda têm uma vida pela frente para ser vivida. É o que se ouve dizer em circunstâncias tais. Ter toda a vida à frente é uma máxima que se aplica às crianças e aos jovens. Não tem sentido aplicá-la aos velhos. Aquele que viveu mais anos já realizou mais possibilidades do que aquele que viveu  menos. Isso não diminui em nada a aflição sem medida que acompanha as decisões em causa. 

Por outro lado, quando é a população inteira que está ameaçada, os mais novos devem ter prioridade porque são os que têm mais chances de sobreviver e de ter mais tempo futuro para fazer alguma coisa a fim de salvar o mundo. Portugal optou por começar pelos profissionais de saúde. Outros países optaram por começar pelos mais velhos. 

Assim, é conforme determinadas circunstâncias que ora prevalece uma decisão, ora prevalece a outra. Neste caso somos inclinados a pensar que não existem verdades absolutas em questões morais. O princípio das decisões intuitivas em coletivo, como por exemplo no cenário de um Serviço de Urgência Hospitalar, os profissionais de saúde não têm tempo para decidir em obediência a leis cristãs, ou a moralismos estoicos, kantianos ou utilitaristas. Não se decide em nome de um bem absoluto, de uma lei moral ideal ou de um resultado útil. Mas têm em conta uma orientação científica que aconselha o cálculo das probabilidades de salvação. Não é racional apostar salvar os casos que a ciência sabe que à partida são casos perdidos, com pouca chance de salvamento. Mas atenção, não são critérios ou considerações estatísticas ou probabilísticas, que subordinam a ação, mas sim a avaliação caso a caso consoante critérios já estabelecidos pela ciência e o estado da arte da profissão médica. Nestas situações-limite, o poder está na ação, que é o máximo de poder de vida possível.



Quem salvar? Esta é uma pergunta retórica, mas quando se está em pleno teatro de ação não nos é permitido perguntar. Só na prática real se toma a decisão e aí não se faz a pergunta. Não há teoria. Passei muitas vezes por situações dessas, sobretudo no Serviço de Urgência, quando nos entrava em simultâneo pelo serviço dentro, por exemplo, um grande acidente de viação com vários feridos, uns muito graves, outros graves, e para complicar, um outro caso com uma intoxicação por organofosforados, na gíria rural ingestão de “remédio do escaravelho” voluntária com propósitos suicidas. Há nesses cenários um princípio intuitivo que é coletivo. Não é por acaso que todos assumem o chamado espírito de equipa, médicas e enfermeiras em ação no Serviço de Urgência. Esse princípio intuitivo tem a ver com a expectativa e o preenchimento das possibilidades. 

Não se pode aceitar de ânimo leve questões dilemáticas. Os filósofos da ética são peritos em fazer experiências de pensamento, de que o dilema do "motorista do trólei" desgovernado é um dos mais conhecidos. Neste caso o motorista não tem tempo para pensar, nem está em equipa, e isso faz toda a diferença. A minha versão é diferente da versão canónica dos filósofos:
Um motorista vai a descer uma ladeira; e quando começa a travar ao aproximar-se da passadeira para peões num cruzamento, de repente, perde os travões. Para não atropelar um peão que vai a passar guina para a esquerda e galga o passeio, quando iam cinco pessoas a passar. Infelizmente nenhuma das cinco pessoas se salvou. Uma tragédia que vai para além das vítimas. Mais duas pessoas ficam irremediavelmente também vitimadas pelo chamado síndrome pós-traumático: o motorista e a vítima potencial que não chegou a ser atropelada na passadeira.
Começando por esta, ao tomar consciência do sucedido foi apoderada pelo sintoma de culpa, porque era ela que devia ter morrido e não as cinco pessoas. Este sentimento é um pouco semelhante ao do único sobrevivente de um acidente de aviação em que morreram todos os passageiros menos um, essa pessoa que ficou com um sentimento de remorso, porque é um privilegiado, beneficiando de uma injustiça divina. Quanto ao motorista, passou a ser invadido, agora sim, pela problematização de um dilema. Só que se trata de um dilema a posteriori, que se pode resumir no “Se”, assim: “Se não tivesse desviado o trólei só teria matado uma pessoa em vez de cinco”.
Mas este dilema do motorista, com o contrafactual - qualidade versus quantidade - tornar-se-ia interminável não se tivesse dado um golpe de teatro ao ter-se vindo a saber mais tarde  que os cinco indivíduos que morreram atropelados faziam parte de uma seita, veio a saber-se a posteriori, que estavam a preparar um atentado a uma escala semelhante ao do 11 de setembro de 2001. E ainda por cima a pessoa que se salvou era um médico voluntário dos Médicos sem Fronteiras. 
Estamos a navegar na lógica dos sistemas e dos dilemas. Haverá um sistema que possa ser aplicado, a não ser na base de uma pressuposição? Para Platão, num navio a naufragar, a prioridade no salvamento deveria ser dada às boas pessoas em detrimento das más. Platão deveria ser daqueles contra a pena de morte, exceto para os “hitlers”.

Em ética filosófica há dois tipos de raciocínio padrão: o utilitarista à moda de John Stuart Mill; e o deontologista à moda de Immanuel Kant. O raciocínio utilitarista não garante a justiça. Mas o outro sistema também não o faz. O mais justo nem sempre é praticável. O que seria mais justo não é praticável porque envolve juízos sobre o valor moral das pessoas. E quem é que tem a autoridade máxima para o fazer? O campo da verdade moral não é semelhante ao campo da verdade científica

Quem salvar? Será que Platão é consistente e robusto? Se só pudermos salvar uma pessoa em duas, será mais justo salvar a pessoa A, que é generosa, altruísta e deu importantes contributos para outras pessoas, do que a pessoa B, que é egoísta, mesquinha, frívola e de tal modo autocentrada que nunca contribuiu para um mundo melhor?

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