quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Lembranças do tempo em que gostava de futebol


Estava a reler algumas passagens do Diário de José Saramago [Cadernos de Lanzarote I] - escrito nos primeiros tempos em que se exilou na ilha de Lanzarote depois das grandes polémicas à volta do livro "
Evangelho Segundo Jesus Cristo", tendo com Pilar comprado nessa ilha uma casa - quando me demoro no registo do dia 21 de maio de 1993: 
«A Madrid, para a "Semana de Autor". No avião leio o Expresso chegado esta manhã e encontro recolhida uma curiosíssima declaração de Carlos Queirós, o selecionador nacional de futebol, que novamente me fez pensar em como andam desconcertadas as opiniões neste mundo e no difícil que será chegar a acordo sobre as questões fundamentais quando logo nas outras, mínimas, nos vemos desencontrados: "As pessoas que não são capazes de perceber a beleza do futebol ou do jogo são exatamente as mesmas que não são capazes de ler o Asterix nem percebem a beleza que existe nuns Beatles. Esses são os intelectuais. São capazes de estar em casa a ver um filme de cow-boys e a ouvir os Bee Gees. Se tocarem à campainha, mudam para Tchaikovsky e pegam num livro de Saramago". Não duvido que o estimável Carlos Queirós saiba muitíssimo de futebol, mas de intelectuais parece saber  bem pouco, e sendo certo que eu próprio não me posso gabar de os conhecer de raiz (vivi a maior parte da minha vida entre gente mecânica ou assimilada), creio dispor hoje de algumas luzes sobre os usos e costumes dessa nata em que, emprestadamente, também eu nado ou sobrenado. Intelectuais conheço eu que se regalam com os filmes de cow-boys, que adoram os Beatles e aborrecem os Bee Gees, e, no que se refere ao autor do Evangelho Segundo Jesus Cristo, soube eu de fonte seguríssima que sempre foi fanático do Asterix e que jugou ténis em tempos que já lá vão. E também soube que não ficou nada satisfeito ao ver-se acasalado com o Tchaikovsky, que não é músico das suas predileções nem de nenhum dos intelectuais que conhece . . .»
Ora, de repente, do nada, vi-me regressar à memória dos meus tempos no Liceu Sá de Miranda, na altura em que muito se falava do treinador de futebol do Varzim - Joaquim Meirim - e do seu guarda-redes de ouro: Pedro Benje. 

Pedro Benje Neto, oriundo de Angola, era um guarda-redes que lutou e se fez no Benfica. Mas depois foi para o Varzim, no tempo em que o treinador era Joaquim Meirim
Meirim acabara de chegar à Póvoa de Varzim para revolucionar uma equipa de segunda linha. Os seus métodos de treino “assustavam”, mas foi isso que agigantou Benje. E as histórias, muitas delas não passavam de lendas, começaram a brotar no meio das tertúlias futebolísticas da rapaziada do Liceu Sá de Miranda. Constava que Meirim, para estimular e exercitar os reflexos dos jogadores, soltava galinhas no campo… Num desses simulacros de treino, o guarda-redes ficou estático. Meirim inquiriu Benje porque não se tinha lançado. Benje respondeu com serenidade: "porque desta vez a bola passou ao lado da baliza…"
«Eu estava lesionado e não podia jogar. Mas o Meirim tinha prometido, uma semana antes, num jogo que perdemos com o Marítimo, que se eu jogasse nas Antas o Varzim ganharia. Eu dizia-lhe que não podia alinhar, mas ele conseguiu convencer-me. Mas não disse nada a ninguém, nem aos outros jogadores. E para a ficha de jogo só deu os nomes de dez jogadores. Quando lhe vieram perguntar quem era o guarda-redes, ele disse que era o... Neto. É o meu último nome, mas ninguém sabia. O Pedroto quis saber quem era e disseram-lhe que era um júnior. Quando entrei em campo, todos ficaram surpreendidos, até os meus colegas, que ficaram mais animados.
Mas o pior veio depois, levei uma assobiadela monumental, fui vaiado, até pelos jogadores do FC Porto, prometendo que iria levar a maior goleada da minha vida. Comecei a ficar com raiva por aquela receção e disse para mim próprio que tinha de jogar melhor que nunca. E foi isso que aconteceu: fiz o melhor jogo da minha carreira. Joguei todo ligado, da perna até à barriga, e às tantas fui agredido por um jogador do Porto, e fiquei com a clavícula deslocada. Foi o fim. Disse ao Meirim que não aguentava e ele disse-me que tinha de aguentar-me. Ligaram-me o ombro e continuei em campo e pouco depois fiz uma defesa, daquelas impensáveis, só com a mão esquerda. Só quando faltavam cinco minutos para terminar o jogo, já o Varzim ganhava por 1-0, é que o Meirim fez a substituição. Chamou o Zé Luís e disse a toda a gente: 'Agora vamos jogar com um guarda-redes ainda melhor.' E o Zé Luís, em cinco minutos, fez uma exibição incrível, talvez também a melhor de toda a sua vida, defendendo uma mão-cheia de remates que poderiam ter dado golo.»
O meu clube era o FC Porto, mas naquela altura eu andava encantado com as histórias que se contavam do Meirim a treinar o Varzim, e a sua magia que deu fama a Benje como 'o maior guarda-redes do mundo'. Estávamos em 1969, e Meirim, um senhor de Monção era, para efeitos do país, um ilustre desconhecido. Mas havia sido aluno de José Maria Pedroto, um Senhor Treinador. "A derrota é a mãe de todas as vitórias" - uma das suas frases mais conhecidas, mas abundavam frases bombásticas como: "os meus jogadores têm de se babar em sangue dentro do campo".  

Meirim era olhado de lado, e com muita estupefação, pelos outros trinadores e jogadores. O caso, também, não era para menos, quando aparece na Póvoa de Varzim com ideias absolutamente novas e que se tornaram revolucionárias no mundo do futebol. Levava os jogadores para a praia, treinava-os de forma a incutir-lhes um espírito de união que fazia lembrar os métodos militares dos comandos. Nada daquilo fazia sentido ao comum dos mortais. Por isso, Meirim era um malabarista, olhado com muita desconfiança, ao ponto de no campo do adversário, não deixarem entrar a equipa antes do tempo regulamentar, porque temiam que ele fizesse bruxedo no relvado. 

Sim, Meirim era um excêntrico. Mas vale a pena ir mais atrás, à história de seu pai, e a um poema que Zeca Afonso escreveu e o dedicou a ele, quando José Afonso esteve preso em Caxias pela PIDE, num período entre 1967 e 1969. Zeca Afonso entretanto chegou a participar no I Encontro da Chanson Portugaise de Combat em Paris, em 1969. O pai de Meirim era professor primário, e foi um entre muitos casos de pessoas irradiadas da função pública por ordem de Salazar. A família Meirim mudou-se para Lisboa, tendo o pai agarrado o ofício de sapateiro em Alcântara. O futebol era por aqueles dias apenas um romance de fim de semana para Joaquim Meirim, que ganhava a vida como empregado de escritório. Mas a vida tem destas coisas, após pendurar as chuteiras noutro mítico emblema bairrista da capital, o Oriental, onde Joaquim Meirim jogava, obtém com 27 anos o curso de treinadores, ministrado pelos mestres José Maria Pedroto e Fernando Vaz

Na época 1967/68 tem a primeira experiência no exercício do ofício que sempre havia sonhado, treinar a equipa da CUF. Um clube na cauda da tabela, mas com a importância de ter sido uma equipa na 1ª Divisão, coloca-a num honroso sétimo lugar. 1968 foi o ano da queda da cadeira de Salazar. O ditador já não manda, mas pensa que sim, porque quem manda a partir de setembro é Marcelo Caetano. Começam as “Conversas em Família” e há quem fale em “Primavera Marcelista”. Puro engano como se viu depois. A Guerra Colonial está no seu ponto mais crítico e o som da metralha não abafa os gritos de dor daqueles que tombam em combate, e as prisões continuam cheias de presos políticos, e Zeca Afonso foi um deles, quando escreveu o tal poema:

A Meirim
À sombra do que está
Há quem incline a cabeça
Há quem na vertical
Diga que sim não está mal
Minha tia era
Dessa razão
Dizia humilde contrita
Não subas
Ao parapeito de Judas
E o vendilhão era recto
Não pretendia ser mais
Que um funcionário correcto
Pois na Instrução
O César tinha razão
Só não tinha a tia dele
Verdade diga-se
E sede
Da pura apocalíptica
Depois quem lhe fez a cama
Foi um menino de mama
[José Afonso]

Aos censores nada escapa. E os jornais desportivos – A Bola, Mundo Desportivo, Norte Desportivo e Record – também não se livram de mandar as provas à Censura.  E é neste ar irrespirável que o presidente do Varzim vai buscar Meirim, lançando-o para as capas dos jornais juntamente com o angolano Pedro Benje. Benje mais parecia um gato no ar a agarrar todas as bolas que lhe apareciam pela frente. E a história continuaria, embora já sem o sensacionalismo daquela temporada no Varzim. 

Meirim era, sobretudo, um autodidata. Homem sem grandes estudos académicos, tinha a escola da vida. Antes de ser treinador, ganhou uma enorme experiência e conhecimento do mundo. Com espírito aventureiro, foi embarcadiço, correu mundo, voltou a Portugal, trabalhou em hotéis e restaurantes.  Em meados da década de 1960 já se encontra a treinar o Oriental. E é a partir daqui que se começam a ouvir as suas gabarolices. Num jogo contra a CUF, num campeonato de reservas, gabou-se
 de ter ganho sem qualquer guarda-redes. A veracidade da história está por confirmar, mas já nessa altura tinha tudo a ver com ele. A confiança que tinha nos seus jogadores era tão grande que pegou no guarda-redes para ter mais um avançado: "Sem ninguém na baliza, eles até vão ter medo de rematar". Como tinha que inscrever na ficha do jogo alguém na baliza, meteu mesmo um avançado... 

Já no Varzim, um dia, reuniu o plantel antes do treino, e em vez de mandar os jogadores correr ou rematar, mandou-os meditar. Durante cinco, dez minutos, todos os jogadores fecharam os olhos, puseram o futebol de lado, e meditaram sobre a sua vida, a sua família, os seus sonhos. Meirim observava, silencioso. Decretou o fim da reflexão com uma forte salva de palmas, e mandou começar o treino, exceto a três jogadores que os chamou de parte. Sem conhecer nenhum pormenor previamente, perguntou-lhes um a um: "O que se passa? Por que é que estás preocupado?" Tinha acabado de acertar precisamente nos jogadores que estavam com problemas pessoais. Perante a estupefação dos dirigentes do Varzim que assistiram à cena, Meirim explicou, com toda a naturalidade: "Depois de dez minutos a meditar, quem abre os olhos e reage com um semblante alegre e motivado, está bem. Quem acorda triste e cabisbaixo, precisa de ajuda."

Meirim faz declarações surpreendentes e polémicas. E os jornais aproveitam para atirar uma-pedra-no-charco das banalidades: "Não há livres indiretos! Todos os livres são diretos, porque a tendência do guarda-redes é sempre para ir buscar a bola. Qual é o guarda-redes que permite que a bola entre na baliza?" Mesmo nos livres indiretos havia que tentar o golo, na esperança que o guarda-redes se enganasse e ainda fosse tocar na bola antes de ela entrar. Faz as primeiras páginas dos jornais e motiva a curiosidade e a reflexão de alguns dos melhores escritores e jornalistas do ramo: Carlos Pinhão e Mário Ventura-Henriques, são alguns deles. Pinhão, após a melhor classificação de sempre do Varzim, onde o guardião Benje assume o papel de estrela maior, escreve um dos mais belos títulos da Imprensa portuguesa: “Varzim rima com Meirim”; e o escritor Mário Ventura-Henriques assina uma crónica em A Bola que titula assim: “Meirim entrou na vida de todos nós.” José António Saraiva, escreveu em O Comércio do Funchal, 5 de Abril de 1970: "Meirim é o homem que de maneira mais fina entendeu a estrutura caótica, anacrónica, incoerente, do futebol."

O presidente do Leixões despediu-o na hora em que foi conhecida a sua candidatura à presidência da Câmara Municipal de Matosinhos, em nome da então Frente Eleitoral Povo Unido. Como ativista sindical ganhou e perdeu batalhas. Joaquim Meirim não tem o seu retrato em qualquer galeria de honra. E o seu nome é silenciado por muitos dos seus pares. Meirim está na história por outras singulares razões: por ser um cidadão e um treinador que soube empunhar a Esperança e a Audácia. Por ser o único homem do futebol a quem Zeca Afonso, um dos melhores de nós, dedicou um poema escrito durante a sua prisão em Caxias. 

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