domingo, 13 de dezembro de 2020

Migrações - Milos Tsernianski (Crnjanski)



«Ele estava cansado de migrar, cansado da inquietação que atormentava as pessoas que ele liderava tanto quanto o atormentava. Se ele deixasse o exército, teria de se juntar ao irmão e viajar como comerciante de cidade em cidade, com a filha atrás. Se permanecesse no exército, ainda seria forçado a viajar. O seu dever é pacificar as populações migratórias.»
Migrations, 1929, romance de Milos Crnjanski (1893-1977), escritor sérvio, do modernismo sérvio, nascido a norte da Sérvia, onde hoje faz fronteira com a Hungria. O romance passa-se na década de 1740. A leitura ou releitura deste romance é apropriada numa altura em que a mesma área é palco de uma dramática saga de migrantes depois de sobreviverem ao naufrágio no Mediterrâneo, ou no Mar Egeu, para chegarem à rota que os levará ao acolhimento putativo dos países mais ricos da Europa.  

Em meados do século XVIII, a Sérvia era alvo da ganância dos impérios otomano e austro-húngaro. E dois irmãos lutam por um sentido de identidade pessoal, num cenário devastado pela guerra. Vuk Isakovic, um oficial romântico a braços com as forças austro-húngaras, e o seu cínico e oportunista irmão, Arandjel, um comerciante que lucra com o caos da guerra. Obcecado pela relação amorosa entre Vuk e Dafina, Arandjel seduz a sua misteriosa cunhada enquanto Vuk está fora em campanha militar. Dafina morre após manobras de abortamento, ao tentar interromper a gravidez resultante desse envolvimento. Temos assim, o remorso de Arandjel, que amou Dafina; e um Vuk muito desiludido com o rumo que a guerra estava a levar: soldados eslavos prontamente executados por violarem o código de honra do seu exército. Embora o romance nunca integre totalmente o drama dos dois irmãos, a prosa apaixonada, muitas vezes mágica, compensa um enredo não tão bem resolvido. 

Um romance histórico, impulsionado pela guerra, um divisor de águas para a população da fronteira militar do império Austro-Húngaro (Habsburgo). A um outro nível, o romance é uma história do povo sérvio, uma história ainda hoje não resolvida. A vários níveis questiona o significado da guerra, do amor, do dinheiro.  

Mercenários sérvios que servem no exército austro-húngaro, numa altura em que a ameaça otomana recuava, saem de casa para lutar contra os franceses numa série de batalhas brutais. As tensões inerentes ao sistema das fronteiras militares foram expostas, espalhando-se em agitação periódica, cujos esforços de reforma nunca foram bem contidos. É o sofrimento do duro e opressivo regime nas zonas de fronteira. E é a sujeição à implantação estrangeira com as suas tentativas de conversão religiosa forçada. Tudo isso a testar a lealdade dos Grenzers à dinastia dos Habsburgo, em oposição à sua lealdade familiar e comunitária. Tais conflitos de lealdade levavam muitas vezes à deserção, e consequente emigração. 

Os habitantes das fronteiras militares sentem que as suas vidas são um ciclo interminável de migração e morte, onde o significado dos seus sacrifícios, o significado de família e amizades são postos em causa. Qualquer esperança de se construir um futuro seguro e pacífico para os filhos é desintegrada na lama que envolve as migrações forçadas. Assentar no Império Austro-Húngaro significava abandonar a identidade nacional. A assimilação significava tornarem-se servos ou trabalhadores. Apenas alguns afortunados podiam desfrutar a cidadania plena através das promoções no serviço militar imperial. 

A experiência das migrações leva as pessoas a sentirem-se sombras de si mesmas. E sombras umas das outras. Sem um sentido seguro do seu lugar e futuro no mundo, elas são incapazes de uma narrativa coerente do Eu e do Outro nas suas vidas. Daí o apego a símbolos e mitos, na tentativa de um rumo para as suas vidas inseguras. É o mito de um reino perdido que só pode ser recuperado através de uma série de andanças e julgamentos. 

Os anos passarão. Quem deve contar os pássaros que migram ou os raios que o Sol carrega de Leste a Oeste, de Norte a Sul? Quem deve prever que povos migrarão, e para onde, nos próximos cem anos?
 Que sementes brotarão no próximo século na Europa, Ásia, América e África?




Milos Crnjanski, a partir de 1913,  vai estudar História da Arte na Universidade de Viena. Em 1914, no início da Primeira Grande Guerra, é recrutado. Um dos poucos sobreviventes, ele já estava tuberculoso mesmo antes de o seu regimento ter sido dizimado. Ithaca, os seus primeiros poemas, narra as experiências de guerra, poemas autobiográficos.  

Após a guerra, vai para Belgrado, onde se matricula na Universidade em Literatura Comparada, História e História da Arte. Mas depois, acaba por vender a casa que era do pai, e muda-se para Paris. Depois viaja por Roma e Florença, onde permanece algum tempo, até que a partir de 1928 passa a ser adido cultural do Reino da Jugoslávia em várias cidades: Berlim, Roma e Lisboa. 
Em 1941 junta-se ao governo exilado em Londres. Depois da guerra, é o regime de Tito, fica por lá no exílio, em grande pobreza, até 1965, embora as suas obras tenham sido publicadas na Jugoslávia, a partir de meados da década de 1950. Mas quando regressa à Jugoslávia é celebrado e premiado com o maior prémio literário jugoslavo NIN. Milos Crnjanski morre na Sérvia a 30 de novembro de 1977, na cidade de Belgrado. 

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