domingo, 6 de dezembro de 2020

Do progresso científico


A vacina contra a covid-19, produzida pela Pfizer em parceria com a BioNTech, é uma vacina que usa uma nova tecnologia: a do RNA mensageiro. É uma parte do código genético do vírus que apenas codifica a produção da proteína que faz parte da espícula do vírus que funciona como uma chave para entrar nas células de órgãos do nosso corpo, como é o caso dos pulmões. O progresso está no facto de esta sequência de três bases azotadas de RNA mensageiro que codificam a proteína da espícula do vírus ser sintética, ou seja, ser sintetizada em laboratório e não extraída do vírus natural.




Qualquer conceito/noção que tenhamos da natureza, compatível com o crescimento da ciência, é compatível com a noção evolutiva de ciência. Para isso precisamos de aprender a reconhecer como causas o que em geral temos considerado como efeito. Se pudermos fazer isso, então expressões de progresso científico, e mesmo de objetividade científica, poderão parecer redundantes.

Parte das nossas dificuldades, para perceber as diferenças profundas que separaram a ciência da tecnologia, devem estar relacionadas com o facto de “progresso” ser um atributo óbvio dos dois campos. Contudo, reconhecer que tendemos a considerar como científica, qualquer área de estudo que apresente um progresso marcante, ajuda-nos apenas a esclarecer, mas não a resolver a nossa dificuldade. Permanece ainda o problema de compreender porque terá de ser o “progresso” a característica mais notável de um empreendimento conduzido através do último grito da tecnologia.

Assim, ao ser injetado no nosso organismo esse RNA mensageiro viral, sintetizado artificialmente, e não extraído do próprio vírus, como era até aqui o padrão, ele vai dar instruções às nossas células para serem elas a produzir a tal proteína da espícula do vírus que funciona como uma chave. Ora, ao entrar na circulação sanguínea essa proteína vai desencadear imediatamente a produção de anticorpos por parte do sistema imunitário do organismo, que supostamente ainda não devia ter sido um hospedeiro do vírus natural. Anticorpos esses que vão estar prontos para atacar o vírus caso ele infete esse organismo. O nosso corpo está assim preparado, por antecipação, para não permitir que o vírus chegue sequer a entrar dentro das células do nosso corpo. Caso não tivéssemos esses anticorpos, o vírus teria o caminho livre para entrar dentro das células e aí multiplicar-se aos milhares. Depois, e sucessivamente, vai passando de célula para célula multiplicando-se aos milhões em pouco tempo. Milhares de novos vírus partem para entrar noutras células deixando para trás um rol de destruição celular. 

É verdade que o nosso organismo possui mecanismos genéricos, que quer dizer que não são específicos em relação ao agente invasor, e que fazem parte da linha da frente do nosso sistema imunitário, constituído por macrófagos e outras células linfoides. Os macrófagos atacam os invasores e disparam sinais de alarme para outras células de defesa. Mas a partir de uma determinada carga viral, esta barreira não é suficiente para conter a invasão do vírus. O organismo para continuar a ser capaz de se defender precisa da segunda linha constituída por anticorpos específicos, que sem contacto prévio numa ocasião anterior com o vírus, ou sem a vacina, não os vai ter. E é assim que o vírus ataca as células, e provoca a doença. Doença essa que pode ser fatal. 

O organismo precisa de algum tempo após a infeção para se defender naturalmente, e também de algum tempo após ser vacinado, para produzir os anticorpos em quantidade suficiente para ser eficaz. No caso de infeção natural pelo vírus, primeiro são as células dendríticas que começam o trabalho de fragmentação do vírus, para que os seus pedaços cheguem ao contacto com os linfócitos T, que por sua vez vão ativar os linfócitos B, a fim de produzirem os anticorpos. E só nesta altura, muitas vezes, infelizmente tarde demais, para o organismo ser capaz de derrotar o invasor. No caso da vacina a resposta é não apenas mais rápida, mas também mais eficaz do que o processo da imunidade por via da infeção natural pelo vírus.
Tomados como um grupo, os praticantes das ciências desenvolvidas são fundamentalmente indivíduos capazes de resolver quebra-cabeças. O desenvolvimento científico, também ao nível biológico, é um processo unidirecional irreversível. As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças em contextos que geralmente são sempre novos e diferentes de contextos anteriores. E assim surgem também novas teorias científicas consideradas superiores às suas predecessoras. Não são apenas os novos instrumentos que obviamente se demonstram mais adequados às novas tarefas. São também os novos artifícios conceptuais que conseguem desfazer os tais quebra-cabeças. E assim também de algum modo se vai tendo uma visão mais exata do que é realmente a Natureza. 

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