quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Pela porta do cavalo . . . ou do gato


Aproxima-se a consoada de Natal, e este ano o Natal não se vai parecer com outros Natais no que respeita a beijos e abraços, casas cheias de gente, dez, vinte e até trinta pessoas em salas com pouco mais, ou menos, de quarenta metros quadrados. Recordo-me de um ano termos ido consoar a casa duns tios. Um pouco antes de irmos para a mesa, vejo, sem querer, o tio a passar pela janela um peru acabado de assar numa padaria. Era uma surpresa que os tios nos queriam fazer, porque em princípio seria apenas o tradicional bacalhau com todos. Acontece que eu, tendo a mania de andar de um lado para o outro para aquecer os pés, vi. Foi o caso, o peru entrou em casa pela porta do cavalo.

A porta do cavalo tanto serve para entrar como para sair. Serve para entrar num emprego por cunha ou por meios pouco canónicos. Serve para um político sair de forma despercebida quando quer fugir às perguntas dos jornalistas, ou a alguém que queira evitar uma espera desagradável. Diz-se que José Sócrates, no tempo em que esteve no governo, e mesmo depois, recebia dinheiro pela porta do cavalo: 
“Eu entregava-lhe aquilo de uma forma discreta. Eu não fazia recolha de dinheiro. Fazia recolha de envelopes. E o juiz pergunta: “E não tinha a noção de o que lá estava era o dinheiro. E Ele responde: Não! E o inspetor tributário exclama: “Ó Sr. João, pelo amor de Deus!” e Ele responde: “Pelo amor de Deus digo eu”. Inspetor tributário: “Aquilo é pago pela porta do cavalo”. O Sr. João: “Se é dinheiro vem de um esconderijo, não é de um banco”. 
Houve tempos em que médicos, que queriam tirar uma especialidade, mas não queriam submeter-se à prova nacional de acesso às especialidades, porque era uma prova muito difícil, arranjavam um padrinho que os aceitassem no seu Serviço para “tirar a especialidade à Ordem”. Faziam o internato “entrando pela porta do cavalo”, e no fim não se submetiam ao exame final da especialidade, que era o exame oficial instituído pelo Ministério da Saúde. Mas podiam submeter-se ao exame à Ordem dos Médicos. Aprovados no exame à Ordem, eram especialistas. Legal para o exercício da especialidade, não na parte Pública, mas na Privada. Mas podiam concorrer a uma vaga posta a concurso no Serviço onde haviam feito o estágio. E assim entravam no quadro hospitalar em competição com os outros colegas que não tinham usado a porta do cavalo.

Nos palácios e palacetes toda a gente sabe que não faltam portas por onde sair, como, por exemplo, a porta da cavalariça. É claro que para entrarmos, é sempre pela porta principal. O mesmo acontece nas praças das corridas de touros, onde há portas destinadas ao público, aos toureiros, aos touros e aos cavalos. Para os toureiros, a maior honra é sair da arena em ombros pela porta grande, enquanto o público aficionado ovaciona. O toureiro "sair pela porta do cavalo" significa, por contraste, sair de forma despercebida sem honra nem glória.  

Como uma coisa puxa a outra, a minha imaginação voou para os Natais passados na casa da minha avó materna quando era criança. E estou a recordar-me que a minha avó tinha um gato, e de uma das portas da loja que tinha uma gateira. A minha avó havia pedido a um inquilino, que era carpinteiro, para recortar na parte de baixo da porta uma portinhola gótica, para o gato poder entrar e sair à vontade, quando lhe apetecesse, que nesse aspeto os gatos são muito independentes de vontade. Era para o gato cumprir o seu papel de guardião das ratazanas que se faravam de lhe roer as batatas. Excelentes batatas que ela cultivava, e que comíamos no Natal cozidas com o bacalhau, trazidas para a mesa numa púcara de barro com água quente por baixo para manter o cozido aquecido por mais algum tempo ao longo da refeição para quem quisesse bisar.




Noutro Natal mais recente, o gato, que ainda tínhamos, desapareceu da noite de 24 para 25.  Depois de tomar uma água das pedras na cozinha, fui ao terraço procurá-lo. Nada, podia ser que tivesse pulado o muro para o terraço do vizinho de um dos lados, porque do outro lado, apesar de também haver um gato da mesma raça, era impossível dado ter uma rede bem alta. Portanto, era do outro lado que podia estar, onde também aprecia um gato preto de uma vizinha do primeiro andar. Mas de gatos nenhum sinal deles. Que grande porra, vou ter de andar à procura dele noutros lados, disse eu cá para mim, logo no dia de Natal. Os gatos levam vida de gato, são animais inteligentes, é sabido etc. e tal. Os gatos quando desaparecem, é porque não querem que ninguém os chateie. Mas voltarão quando tiverem fome, é claro, ideava eu com os meus pensamentos.

Naquele terraço também já há uns dias que não via ninguém por lá. Era uma passagem para gatos, e para o "homem aranha" que assaltou um primeiro andar entrando pela janela. Como o sol já me escaldava a cabeça, apesar de ser inverno, não estava vento ali, fui buscar um boné ao armário do escritório. E eis o meu espanto, quando o gato muito sorrateiro dá um salto lá de dentro, e impávido e sereno, como se nada tivesse acontecido, dirigiu-se em direção ao sítio da casota de areia e das tigelas da água e comida seca, num andar de arlequim. Alguém tinha fechado as portas de correr do armário onde no dia anterior tinham estado escondidas as pendas de Natal. Deixei-o ir. Coloquei o boné na cabeça e fui para o terraço. 

As placas de cimento, marcadas no chão, a receber o calor e eu os raios de sol. Algumas nuvenzinhas flutuavam no céu, nítidas e precisas em contraste com um azul de Viana. No meu terraço apenas pontuavam dois vasos: um com uma oliveira e outro com um Abeto-falso também nomeado por Espruce-da-Noruega. E o terraço da direita a abarrotar de todo o tipo de plantas, um alpendre de lona, portátil, e uma piscina de plástico para criança, e brinquedos de churrasco. Aparentemente, as cadeiras brancas não eram usadas há meses (ou anos) e estavam cobertas de terra em pó. Em cima de uma mesa pétalas colocadas pelo vento e pela chuva de outros dias. Pela janela, um sofá de couro, uma TV enorme, uma prateleira com um aquário de peixes tropicais, e dois troféus de algum campeonato. Num terraço mais distante avistei uma enorme casota de cão, sem ver o cão. E um avançado com telhado de chapa zincada um pouco amolgada pelo salto do "homem aranha", depois de ter assaltado o primeiro andar por volta das quatro da madrugada, era verão e dormia-se de janela aberta, e ouvia-se o clamor de pessoas à janela do prédio do outro lado da rua a vê-lo fugir com um portátil debaixo do braço, a correr aos pulos pelos terraços.

Quando me virei, vi alguém à janela no prédio do outro lado da rua. Acendeu um cigarro com um fósforo que atirou para a rua com um movimento que deu para perceber que já estava bem familiarizado com o gesto. Não deu para ver bem quem era porque eu estava de óculos de sol, e com o boné enterrado até às orelhas. A vinte metros de distância deu para ouvir uma voz, para perceber que era uma voz de homem. “Nem me fale!”, ouvi, ele a fumar sem mudar de posição, fazendo-me lembrar outra pessoa, e eu a retirar-me para dentro de mansinho.

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