sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

No Castelo do Barba Azul - de George Steiner



«“Algumas notas para a redefinição da cultura”. O meu subtítulo alude evidentemente às Notas de 1948 de Eliot. 

O que fora um erro de cálculo, e acidente incontrolável, durante a Primeira Guerra Mundial, transformou-se em método durante a Segunda. 

A incapacidade das “Notes towards a definition of culture” de Eliot, para enfrentar o problema, ou sequer o referir, a não ser numa nota de rodapé insolitamente condescendente, é deveras inquietante. Como foi possível escrever-se um livro sobre a cultura, não dizendo uma palavra acerca de tudo isso. Como foi possível definir e defender uma ordem cristã, quando o Holocausto pusera em questão a própria natureza do cristianismo, e do seu papel na história da Europa? As ambiguidades de longa data presentes a propósito do tema do Judeu, na poesia e no pensamento de Elliot, talvez sejam a chave, mas nem por isso o nosso mal-estar diminui. 

Deveremos continuar? Será razoável aceitarmos que toda a civilização elevada se desenvolve em tensões implosivas e movimentos de autodestruição? Tenderá necessariamente um agregado de equilíbrio tão dedicado, ao mesmo tempo tão dinâmico e tão frágil, como o de uma cultura tão complexa, passe a um estado de instabilidade, e por fim, de explosão? O seu modelo seria então o de uma estrela depois de ter atingido uma massa crítica, uma equação crítica das trocas de energia entre a organização interna e a superfície irradiante, que desaba para dentro, projetando no preciso instante da destruição, esse grande fulgor visível que costumamos associar às grandes culturas na fase terminal? Será a fenomenologia do tédio, e do anseio pela dissolução violenta, uma constante na história das formas sociais e intelectuais, a partir do momento em que ultrapassam um certo limiar de complexidade? 

Mas houve também o mecanismo muito mais profundo da convicção entretecida intimamente nas fibras do Ocidente, pelo menos desde Atenas. Aqui a investigação intelectual deve prosseguir, quando se trata de um movimento natural e meritório em si mesmo, em que a relação do homem com a verdade é uma relação de persistência. Na busca do brado com que Sócrates assola os cães ao encurralar a presa, toda a nossa história abre as portas sucessivas do Castelo do Barba Azul. Cada uma delas leva à seguinte, mediante uma lógica de intensificação, em que o espírito toma consciência do seu próprio ser. 

De maneira ingénua, mais difícil de parafrasear, o andamento destas conferências tenta repetir por outros meios uma figura musical, um esboço de ar puro com ascendente, e de mergulho na orquestra, e acordarmos a respirar como se nos encontrássemos no Castelo do Barba Azul de Béla Bartók. À medida que o final se faz mais próximo, dir-se-ia que estamos no que se refere a uma teoria da cultura. Como a Judite de Bela Bartóck, quando pede para abrir a última porta para a noite, na ópera: “O Castelo do Barba Azul”, 1911. »
Um livro conciso e brilhante. Quatro ensaios que analisam a decadência da cultura clássica dominante. Um tour de force intelectual, que suscita uma grande inquietação. A sétima porta no Castelo do Barba Azul oferece-nos, na falência da esperança, a dignidade do que é audacioso. Em 1948, três anos após o final da guerra, Eliot publicava o seu "Notas para a definição da cultura", um apelo à ordem numa Europa ferida e despedaçada. Pouco mais de vinte anos depois, George Steiner escrevia as quatro conferências reunidas neste livro, cujo subtítulo indicava que, nesse meio tempo, algo havia mudado. Algo se perdera - a cultura clássica dominante, os seus ideais de transcendência, as suas utopias messiânicas - e, todavia, transformada em barbárie inumana. Vivemos uma "pós-cultura", afirma Steiner, uma era de realismo estoico e pessimismo cultural: "precisando do Inferno, aprendemos a construí-lo e administrá-lo na Terra". 

Francis George Steiner, [1929-2020] - Honoris Causa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2009, é considerado uma das grandes mentes do mundo literário do século XX. Steiner foi Professor de Literatura Inglesa e  Comparada na Universidade de Genebra (1974-1994); Professor de Literatura Comparada e Fellow na Universidade de Oxford (1994-1995); Professor de Poesia na Universidade de Harvard (2001-02). A carreira literária de Steiner durou meio século. Publicou ensaios e livros originais que abordam as anomalias da cultura ocidental contemporânea, questões da linguagem e sua "degradação" na era pós-Holocausto. O seu trabalho como crítico tendia a explorar questões culturais e filosóficas, particularmente lidando com a tradução e a natureza da linguagem e da literatura.
É considerado um herdeiro de Sócrates no século XX. Tendo nascido em Paris, em 1929, partindo com a família para Nova Iorque no início dos anos 40 para escapar ao nazismo. Estudou ciências em Chicago, tendo regressado à Europa para se doutorar em literatura aplicada, na Universidade de Oxford. Defensor de uma posição clássica face à pós-modernidade, Steiner tornou-se, com "As Antígonas" e, sobretudo, com "No Castelo de Barba Azul", uma referência na cultura ocidental, principalmente na Europa..

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