quinta-feira, 3 de junho de 2021

Vidas de Emigrantes portugueses em França nos tempos da Guerra



Cinco pessoas aguardam que o "passador" as venham recolher para atravessarem a fronteira de noite. Estão num pardieiro escuro. Depois de as pupilas se terem ajustado à escuridão descobrem que nesse espaço de um antigo lagar de azeite há quatro cadeiras. O que vão fazer com as cadeiras? Podem competir entre si para excluir uma pessoa e ver quem tem direito a se sentar. Mas também podem alinhar as cadeiras e transformá-las num banco onde todos cabem. E foi isso que fizeram.

Manuel Alves – Deportado para Buchenwald. Sobreviveu depois de ter sido libertado por guerrilheiros checos.




Manuel Alves, nascido a 29-11-1910, Vila Verde – emigrou para França em 1927. Um “trabalhador”, que vivendo algures no sul de França, em julho de 1939 vai viver para a cidade de Nantes. Entretanto dá-se a invasão alemã, e as coisas complicaram-se a partir daí.

A 10 de março de 1941, o senhorio queixa-se do “sujeito português” ao Presidente da Câmara. Diz que há meses que não recebe o pagamento da renda, em que Manuel Alves se defendia com a falta de trabalho. Pouco sensível a este argumento, o homem escreve no requerimento ao Presidente da Câmara: “Parece-me que este estrangeiro, beneficiário da hospitalidade francesa, abusa verdadeiramente da situação. Peço-lhe que examine o caso e, se possível, que ordene a sua expulsão, pois sou obrigado a considerá-lo como indesejável.” As intenções do senhorio saem furadas, o inquérito da polícia refere que o português “trabalhou regularmente” até à chegada dos alemães à cidade, em junho de 1940, “mas depois dessa data não trabalhou senão intermitentemente e esteve mesmo desempregado por mais de dois meses.” Entretanto Manuel Alves tinha acabado de arranjar um trabalho fixo, “por isso, será capaz de manter os seus compromissos com o proprietário, o que não pôde fazer nos últimos tempos”, lê-se no documento preservado pelos arquivos regionais de Loire-Atlantique. A razão, escreve a polícia, foi a falta de um salário regular e “obrigações” relacionadas com problemas graves de saúde da sua companheira. “Além disso, na vizinhança diz-se que é por necessidade e não por má vontade que Manuel Alves não pode cumprir os prazos do aluguer”, concluía-se no relatório, com a referência: “As informações recolhidas não lhe são desfavoráveis e a sua atitude do ponto de vista nacional não deu lugar a qualquer crítica.” Conclusão: um problema do foro pessoal, entre inquilino e proprietário. Foi essa a resposta transmitida ao dono do número 54 da Quai Fosse, onde Manuel Alves morava. Assim, Manuel Alves continua a viver em Nantes e, a partir de 1942, na sua ficha individual de cidadão estrangeiro começa a aparecer como profissão “ferro-velho” e já não “operário”, como na sua carteira de trabalho entre 1936 e 1939.




A 26 de março de 1943, a Gestapo entra-lhe em casa e é preso. É condenado por “roubo e mercado negro”. Em janeiro de 1944 é deportado para Buchenwald. Nas informações compiladas pela Associação de Deportados e Familiares de Desaparecidos do Campo de Concentração de Flossenbürg (onde também esteve) diz-se que Manuel Alves “parece ter sido vítima de uma injustiça e de um erro”.

Sai de Compiègne num comboio a 17 de janeiro de 1944. Depois é transferido para Flossenbürg. A 23 de fevereiro, está afeto ao comando de Hradistko, a sul de Praga. E aqui ficou até à sua evacuação do campo, a 26 de abril de 1945, colocado num comboio com prisioneiros de outros espaços que iam entrando ao longo da viagem através da então Checoslováquia, com várias paragens pelo meio. A 8 de maio de 1945 é um homem livre, depois de ter sido libertado por guerrilheiros checos.

Manuel Alves regressou a Nantes e o seu cartão individual de estrangeiro, válido entre 1947 e 1950, continua a identificar a sua profissão como “ferro-velho”.

As dores a pequenos passos, que se receia que voltem, é como a metáfora da rã cozida em lume brando. Uma família judia aristocrática italiana, com riqueza, com palácios e palacetes em duas ou três cidades. Os nazis estão a avançar, mas eles pensam que não os vão molestar. Lentamente, lentamente, só um passo, outro passo. Primeiro são os judeus pobres, depois são os judeus desempregados, depois são os judeus que não são bem judeus, depois são os ciganos, depois são os africanos. Os Finzi-Contini são uma família com um grau cultural elevado e vão acompanhando: “Não, por enquanto não vai chegar até cá”. E quando se dão conta já é tarde: são metidos no comboio, e são deportados, rumo ao extermínio. Os pequenos passos não provocam reações imediatas. A experiência já foi feita.

Domingos Fernandes da Cunha – foi localizado pela última vez num campo de concentração nos arredores de Hamburgo. A partir daqui perde-se-lhe o rasto, não se sabe mais nada dele.

Domingos Fernandes da Cunha, nascido a 27-12-1904, Cabanelas, Vila Verde – Não se sabe o ano exato em que chegou a França, mas sabe-se que em setembro de 1924 ainda estava em Portugal. Foi nesse mês, no dia 7, que casou com Violante dos Santos, na freguesia do Olival, em Vila Nova de Gaia. Em meados da década de 1930, já estava em território francês, um pedreiro com várias condenações associadas. Nos registos administrativos aparece a indicação de que tinha quatro filhos. Portanto, os seus problemas tinham começado muito antes de a Segunda Guerra Mundial se anunciar. O pedreiro, já tinha sido condenado várias vezes e sempre pela mesma razão: agressões. A esse facto juntou-se, mais tarde, o incumprimento da ordem de expulsão que lhe fora dirigida já a 15 de abril de 1938.




Em 1936, o Tribunal de Tours já o havia condenado a dois meses de prisão. Em 1938 é condenado por três vezes: a oito meses pelo tribunal de Orleães, em janeiro; a seis meses pelo tribunal de Tours, em setembro; e a quatro meses em outubro pelo mesmo tribunal, desta vez por incumprimento da ordem de expulsão que sob ele pendia. A 6 de abril de 1939, os mesmos motivos levam o português a ser sentenciado a mais um ano de prisão e a pena mais pesada chega a 6 de junho de 1941, quando o Tribunal de Orleães o condena a dois anos de cadeia. O caso que levou a esta última sentença foi descrito pelo procurador-geral ao autarca de Aube, num ofício que termina com a recomendação: “Acredito que se trata de um estrangeiro indesejável e por isso impõe-se o seu internamento desde a sua libertação e até que seja possível a sua expulsão.”

Segundo a descrição feita pelo procurador, Domingos da Cunha e a sua “concubina” foram convidados a jantar e pernoitar na habitação de outro português, “o senhor Louro”, numa noite em que se viram impossibilitados de regressar a casa. Após uma discussão “por motivos fúteis”, Domingos feriu o conterrâneo, esfaqueando-o repetidamente nas costas. “Da Cunha apresenta-se como um indivíduo particularmente violento”, refere o procurador-geral antes de elencar alguma das condenações prévias do português. Por isso, quando a última pena a que fora condenado é cumprida, na prisão de Clairvaux, Domingos Fernandes da Cunha não é posto em liberdade. Seguindo as recomendações do procurador-geral e as orientações legais da altura, o autarca de Aube determina o seu internamento administrativo. No documento em que ordena esse internamento, lê-se: “em razão das circunstâncias atuais, a sua expulsão é difícil”, pelo que o português ficará internado até que ela “seja possível”. É enviado para o campo de Rouillé e posteriormente, a 23 de novembro de 1943, é transferido para o de Voves.

As autoridades do campo não demoram a tentar que Domingos Fernandes da Cunha seja, efetivamente, expulso de França. Logo em dezembro é emitida uma ordem para a sua libertação, mas o prefeito avisa o chefe da polícia que “o homem não pode ser libertado senão com garantia expressa que irá regressar ao seu país de origem”. Quando esta comunicação é enviada, já os procedimentos para esse regresso tinham sido postos em prática. Em fevereiro de 1944, Domingos Fernandes da Cunha é acompanhado ao consulado-geral de Portugal em Paris, para que lhe seja passada uma guia de repatriamento. O documento, com fotografia, tem a data de 17 de fevereiro de 1944, e a indicação de que “servirá de passaporte até à fronteira portuguesa”. Quanto a outros eventuais procedimentos para que o homem pudesse regressar ao seu país de origem, o cônsul-geral António Alves declina qualquer responsabilidade. “A intervenção deste consulado-geral face a assuntos deste género limita-se à entrega do passaporte de que possa precisar. As autoridades francesas responsabilizam-se, normalmente, por obter diretamente o visto das autoridades alemãs e estabelecem elas mesmas as modalidades de transferência; o que parece justo, dado que a ordem de expulsão é dessas mesmas autoridades”, escreveu ao prefeito da região de Eure et Loire.

O processo de repatriamento de Domingos Fernandes da Cunha arrasta-se e acaba por nunca se concretizar. Local de várias fugas por parte dos internados, o Campo de Voves assiste à mais ousada de todas na noite de 5 para 6 de maio, quando 42 prisioneiros deixaram o campo através de um túnel com cerca de 160 metros de comprimento, que começava na zona dos chuveiros. Como consequência, as SS encerraram o campo no dia 9 e os prisioneiros que ainda lá estavam, como Domingos da Cunha, foram enviados para Compiègne, com o objetivo de serem deportados para os campos alemães.

Domingos da Cunha está na lista dos passageiros de um comboio que deixa Compiègne a 21 de maio de 1944, em direção a Neuengamme. E isso é tudo o que se sabe. Não há qualquer registo do seu número de prisioneiro no campo de concentração nos arredores de Hamburgo, pelo que não se sabe se Domingos Fernandes da Cunha chegou a entrar no campo ou se terá morrido ou fugido durante a viagem.

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