terça-feira, 23 de novembro de 2021

As facetas do Demo



Mia Couto, no conto "Um gentil Ladrão" - uma alegoria a estes tempos de Covid-19 - em que um velho solitário é visitado por um agente sanitário, e pensa que é um ladrão: confunde o termómetro com uma pistola. "Abro a Porta. É um homem mascarado. Ao notar a minha presença, ele grita: 'Três metros, fique a três metros'. Se é um assaltante, está com medo. Esse temor inquieta-me. Ladrões medrosos são os mais perigosos. [...] Então me vem à cabeça o nome da doença de que fala o visitante. Conheço bem essa doença. Chama-se indiferença. Era preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia".

O Papa Francisco terá dito: "Se um padre se aperceber de genuínos distúrbios espirituais ... não deve hesitar em encaminhar a questão àqueles que, na diocese, são encarregues deste ministério delicado e necessário, a saber, os exorcistas". Os psiquiatras ficaram preocupados, mas depois acrescentou: "Naturalmente, deve-se ter o discernimento para se saber separar patologias psiquiátricas de possessões diabólicas, mas o fenómeno é real e em crescimento. Médicos, psicólogos e psiquiatras devem ser consultados se for apropriado, e a libertação deve ser acompanhada de cuidados pastorais contínuos e realizada com um mínimo de publicidade."

As diretrizes, atualizadas em 2012, referem que "o ministério de exorcismo e libertação só pode ser exercido por um padre autorizado pelo bispo diocesano". O documento acrescenta que os sacerdotes devem ser treinados em libertação de almas e que não devem praticar o ato de exorcismo sozinhos. Devem ainda estar cobertos por um seguro.

Em maio de 2013 o Correio da Manhã escrevia que "o gesto do Papa Francisco no domingo, na Praça de São Pedro, que muitos classificaram como exorcismo, mas que o Vaticano desmente, reabriu um debate tão antigo como o Cristianismo, mas que a Igreja tenta, a todo o custo, fugir. Afinal, há ou não exorcismos e estes são ou não atos sacramentais reconhecidos pela Igreja Católica? Perante a dúvida, o porta-voz da Santa Sé, o padre Federico Lombardi, veio negar este facto, dizendo apenas que o Papa tinha rezado sobre um homem possesso. Mas o padre Gabriele Amorth, que durante muitos anos foi o exorcista da diocese de Roma, disse o contrário, acusando Lombardi de não saber do que falava. A dúvida ficou instalada, mas o que o Papa parece ter feito foi apenas uma oração de libertação, algo que também integra o rito do exorcismo.

O exorcismo, ou esconjuração do Diabo, é reconhecido pela Igreja, existe mesmo um ritual para a sua celebração e, por norma, as dioceses têm mesmo um padre, devidamente autorizado pelo bispo, a quem cabe a missão de expulsar o maligno das pessoas possuídas. No entanto, em Portugal, não é explícito o número de exorcistas a título oficial, embora conste que haja em Braga, Lisboa, Porto, Lamego, Viseu, Guarda, Évora e Açores. Quase nenhuma o admite, referindo os responsáveis que "essas coisas são resolvidas de forma pontual e caso a caso".

Em 2018 o Diário de Notícias dava conta que o Vaticano abria curso de exorcismo, para padres, por considerar que casos de possessão demoníaca estavam a aumentar em todo o mundo: «A Associação Internacional de Exorcistas, que é apoiada pelo Vaticano, e representa mais de 200 padres católicos, anglicanos e ortodoxos, disse que esta procura por exorcismos representa uma emergência pastoral.» O curso de exorcismo foi aberto com a lectio magistralis do cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, dedicada a Maria, que luta contra o Reino de Satanás.

Entre os conferencistas estava o padre Cesare Truqui - aluno do grande exorcista padre Gabriele Amorth. Truqui, considera que existem demónios especializados, mas que a possessão demoníaca é algo muito raro e que a esmagadora maioria das pessoas que o procuram têm problemas psiquiátricos. Das características mais distintivas dos possessos refere-se a fala de línguas estrangeiras sem que tenham sido aprendidas; uma força descomunal; conhecimento de coisas impossíveis de se conhecerem sem ser por contacto direto, como dizer o que alguém a grande distância tem vestido naquele momento. Outro "sinal" mencionado é o de reagir com grande violência a "coisas sagradas" - e ao próprio exorcismo. Para ele, "a luta contra o maligno, iniciada na origem do mundo, é destinada a durar até ao fim dos tempos”. 

Hoje estamos numa fase crucial da História, em que, depois de a ciência se ter imposto sobre a maioria das superstições e crendices sortidas, está a voltar de uma forma surpreendente toda uma série de ideias e crenças completamente insensatas, ao ponto de este Papa Francisco, que não costuma ter "papas" na língua, também não tem para estes assuntos de gente endemoniada das periferias existenciais dos países civilizados. Claro que o Papa Francisco, argumenta que são pessoas que sofrem muito e, infelizmente, não estão inseridas nos registos da Igreja. Em favor deles, no entanto, é preciso rezar e intervir.

Aquilo a que se dá na religião católica o nome de exorcismo, porém, é o chamado "grande exorcismo", um rito solene levado a cabo por um sacerdote nomeado pela autoridade religiosa para o efeito e de acordo com regras estipuladas em cada diocese. O Catecismo da Igreja Católica, nº 1673 diz: «Quando a Igreja pede publicamente e com autoridade, em nome de Jesus Cristo, que uma pessoa ou objeto seja protegido contra a ação do Maligno e subtraído ao seu domínio, fala-se de exorcismo. (...) Tem por fim expulsar os demónios ou libertar do poder diabólico. (...) Antes de se proceder ao exorcismo, é importante ter a certeza de que se trata duma presença diabólica e não duma doença.»
«O rito demora mais ou menos 20 minutos no meu caso. Os casos mais leves sento-os num sofá muito cómodo e as pessoas arrotam, vomitam, torcem-se, às vezes não é preciso segurar muito. Há casos médios em que já é preciso duas pessoas a segurá-los no sofá. E há os muito graves em que tenho uma marquesa, como os médicos, em que se deitam e cinco ou seis, os familiares, o marido, o que seja, seguram a pessoa. Às vezes é preciso tapar a boca porque os demónios cospem muito, mordem e é preciso cuidado. É preciso segurar os pés, os joelhos, a cabeça, para eu conseguir rezar. Se não se consegue segurar a pessoa eu não consigo rezar porque se gera uma grande confusão. E no fim de tudo gosto de invocar o sangue de Jesus. (...) Os demónios são orientados a determinado aspeto da vida da pessoa. Quando rezamos por isso explicitamente, ui, o demónio salta-lhe a tampa. E isso acelera a libertação porque estamos a pedir a Deus, ao sangue de Jesus, que venha exatamente sobre a raiz do problema. A pessoa nos casos mais leves está consciente, nos mais graves está em transe. Quando termina o exorcismo marca-se novo exorcismo. E os ataques diabólicos vão sendo menos frequentes e mais leves. O tempo que leva depende da sinceridade da conversão.»
«A convicção de que este poder maligno está no meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender porque, às vezes, o mal tem uma força destruidora tão grande. É verdade que os autores bíblicos tinham uma bagagem conceptual limitada para expressar algumas realidades e que, nos tempos de Jesus, podia-se confundir, por exemplo, uma epilepsia com a possessão do demónio. Mas isto não deve levar-nos a simplificar demasiado a realidade afirmando que todos os casos narrados nos Evangelhos eram doenças psíquicas e que, em última análise, o demónio não existe ou não intervém. (...) Então, não pensemos que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia. Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demónio não precisa de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, "como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar.»
A Conferência Episcopal Portuguesa, órgão máximo da Igreja Católica, remete para o respetivo site, onde especifica as regras a seguir e caso de solicitação de exorcismo. O exorcismo pode ser pronunciado em latim ou na língua do país; Sousa Lara prefere fazê-lo em português, para que as pessoas entendam o que está a dizer. Mas o que têm dificuldade em perceber, admite, é porque é que estão a sofrer assim, ou seja, porque é que o deus que ele representa permitiu que o demónio as tomasse. "Digo a essas pessoas que Deus permite o Mal porque Deus do Mal consegue tirar coisas boas. Porque se não fosse aquela história se calhar se morressem iam para o inferno. Porque viviam longe de Deus, viviam em pecado, e também por causa disso o Demónio conseguiu chateá-las."

Mencionando oito vezes o "Maligno", duas vezes "Satanás" e 12 vezes "o Demónio", o Papa Francisco afirma:
«A vida cristã é uma luta permanente, e não apenas contra o mundo e a mentalidade mundana. Ou a própria fragilidade e as próprias inclinações. É uma luta constante contra o demónio, que é o príncipe do mal. Este não é um mito, um símbolo ou ideia.»

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