terça-feira, 30 de novembro de 2021

O mundo simbólico



O símbolo não é apenas um reflexo dos ritmos da vida e de fenómenos naturais, porque um símbolo revela sempre qualquer coisa mais do que os aspetos da vida e natureza. Símbolos e mitos não revelam os fenómenos naturais em si, mas a sua transcendência. O Sol é mais do que o sol. A Lua é mais do que a lua. Assim como a noite não é apenas o lado oposto do dia. Desde o início da humanidade que o símbolo aparece como uma criação da mente humana. Isto torna-se ainda mais evidente quando se recorda que a função de um símbolo é justamente a de revelar uma realidade inacessível aos outros meios de conhecimento. É o caso da coincidentia oppositorum, ou a unidade dos opostos. A coincidência dos opostos é tão abundantemente e tão simplesmente expressa pelos símbolos, à revelia da lógica do terceiro excluído que diz que uma coisa só pode ser: verdadeira ou falsa. Ora, a coincidência dos opostos está presente em todas as culturas do passado. E na atualidade, o 'binário' tem os dias contados. O Co
smos não é acessível à experiência imediata do Homem. Nem ao pensamento discursivo.

O pensamento simbólico precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela os aspetos mais profundos que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. Imagenssímbolos e mitos - não são criações irresponsáveis da mente humana; respondem a uma necessidade, e preenchem uma função. Põem a nu as mais secretas modalidades do ser do homem primordial. Este homem primordial afirma-se sobretudo como um arquétipo impossível de realizar em qualquer existência humana. Esta é a parte não histórica do Ser que Platão nos apresentou em devido tempo. O diferendo que se estabeleceu entre Platão e Aristóteles com a sua lógica do terceiro excluído perdurou até aos dias de hoje, com uma radicalidade muito mais frequente do que se possa imaginar.

Curandeiros, xamãs, padres, heróis - ou os soberanos de mandato divino - são os mandatários do Sagrado para restabelecer as comunicações com o Céu. E isso por causa de uma enorme falta, queda (pecado) de um paraíso primordial perdido. Uma falta é extremamente importante. Os tais Padres da Igreja do século IV, os sucessores da Igreja primitiva, avaliaram o interesse da correspondência entre as imagens arquetípicas primordiais e as imagens propostas pelo Cristianismo. Um dos seus cuidados mais constantes foi precisamente o de manifestar aos gentios, aos pagãos, a correspondência entre: os grandes símbolos cristãos, imediatamente expressivos e persuasivos; e os arquétipos primordiais da mente humana. Eram os dogmas da nova religião, da Boa Nova. Aos que negavam a ressurreição dos mortos, Teófilo de Antioquia chamava-lhes a atenção para os sinais que Deus colocava à frente dos seus olhos através dos grandes fenómenos da natureza. Tanto servia o ciclo dos dias e das noites, como o ciclo das estações verão e inverno. Dizia ele: "Não há uma ressurreição para as sementes e para os frutos?" Para Clemente de Roma, o dia e a noite mostram-nos a ressurreição. A noite morre, o dia nasce; o dia acaba e chega a noite.

O espírito da sabedoria utiliza as imagens para apreender a realidade última das coisas. É justamente porque esta realidade se manifesta de uma maneira contraditória que não poderia ser expressa por conceitos. A imaginação é importante para a própria saúde do indivíduo, para o equilíbrio e riqueza da sua vida interior. O homem, na sua qualidade de ser histórico, concreto, autêntico, está 'em situação' (Dasein) como diria Heidegger em Ser e Tempo. A sua existência autêntica realiza-se na história, no tempo, no seu próprio tempo. Não é o tempo dos seus pais ou dos seus conterrâneos ou de outro continente.

Não é necessariamente para regredir ao estádio animal da humanidade, para tornar a descer às fontes mais profundas da vida orgânica. O inconsciente não é apenas povoado por monstros. Fugindo à sua historicidade, o homem não abdica da sua qualidade de ser humano para se perder na animalidade; ele reencontra a linguagem e por vezes a experiência de um paraíso perdido. Os sonhos, as imagens das suas nostalgias, dos seus desejos, dos seus entusiasmos, etc., são outras tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais rico do que o mundo fechado do seu momento histórico. Além do mais, os monstros do inconsciente são também mitológicos, uma vez que continuam a desempenhar as mesmas funções que lhes pertenceram em todas as mitologias: em última análise, ajudar o homem a libertar-se e completar a sua iniciação.

As sociedades arcaicas e tradicionais conceberam o mundo nos limites do seu mundo fechado dominado pelo desconhecido, pelo informe ou não formado. De um lado existe o espaço habitado e organizado. E no exterior deste espaço familiar, existe a região desconhecida e terrível dos demónios, das larvas, dos mortos, dos estrangeiros; numa palavra: o caos e a morte. Esta imagem sobreviveu mesmo nas civilizações muito evoluídas. Pelo facto de atacarem e porem em perigo o equilíbrio e a própria vida da cidade, os inimigos são assimilados às forças demoníacas, pois eles esforçam-se por reintegrar o estado caótico. A conceção do adversário sob a forma de um ser demoníaco, verdadeira encarnação das forças do mal, sobreviveu igualmente até aos nossos dias. Notemos que as mesmas imagens são ainda utilizadas nos nossos dias quando se trata de formular os perigos que ameaçam um certo tipo de civilização. Fala-se nomeadamente de caos, de desordem, das trevas em que mergulhará o nosso mundo. Todas estas expressões, como bem se vê, significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura. 

Para o mundo arcaico em geral, os inimigos que ameaçavam o microcosmo eram perigosos não tanto como seres humanos (em si) mas porque encarnavam as forças hostis e destruidoras. É muito provável que as defesas dos lugares habitados e das cidades tenham começado por ser defesas mágicas; pois estas defesas eram dispostas mais para impedir a invasão dos espíritos maus do que o ataque dos humanos. Mesmo muito mais tarde na história, na Idade Média, por exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra o demónio, a doença e a morte. Além do mais, o simbolismo arcaico não encontra qualquer dificuldade em assimilar o inimigo humano ao demónio, ou à morte. Afinal, o resultado dos seus ataques, quer sejam demoníacos, quer militares, é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte.

Para a Apologética Cristã, as Imagens estavam carregadas de signos e de mensagens; elas mostravam o sagrado por intermédio dos ritmos cósmicos. A revelação trazida pela fé não destruía as significações primárias das Imagens. Juntava-lhes simplesmente um novo valor. Sem dúvida que para o crente este novo significado sobrepunha-se aos outros, transformada em revelação. Era a Ressurreição de Cristo que importava, e não os indícios que a natureza dava. Na maior parte dos casos, não se compreendiam os sinais sem primeiro se professar a fé em Cristo. Como se sabe, Cristo é símbolo e não homem. O homem de carne e osso era o Jesus de Nazaré. Cristo era outra coisa, segundo todas as tradições religiosas do Crescente Fértil, numa extensão entre o Egito e a Pérsia. Mas até podemos ir mais longe, à Índia, onde o símbolo da Árvore Cósmica tinha o mesmo significado que a Cruz pata os Cristãos. A Imagem da Cruz não fazia outa coisa senão prolongar no Cristianismo um velho mito universal.

Sabe-se que o xamã desce aos infernos para procurar e trazer a alma do enfermo, quando não estafermo, que foi arrebatada pelo demónio. Orfeu desce também aos infernos para trazer a sua mulher, Eurídice, que morrera. Existem mitos análogos em sítios de todos os continentes, da Europa à Polinésia, passando pela Ásia, África e América. Foi na Ásia central que os europeus fixaram o mito do xamã e a conceção do xamanismo. Aqui o mito é parte constitutiva de uma literatura oral de estrutura xamânica. Conta-se que um herói desce aos infernos para recuperar a alma da esposa morta. E o mesmo acontece nos mitos polinésios. Orfeu é o músico domador de feras, o médico, o poeta e o civilizador. Reúne exatamente as funções que cabem ao xamã das sociedades primitivas. Este é mais do que curandeiro e especialista das técnicas extáticas. Ele é também o amigo e senhor das feras, imita as suas vozes, transforma-se em animal. Jesus, agora é Jesus que desce aos Infernos, para salvar Adão, para restaurar a integridade do homem caído pelo pecado através da mulher, de Eva. 

O transe xamânico restabelece a situação de homem primordial: durante o seu transe, o xamã recupera a existência paradisíaca dos primeiros humanos, que não estavam separados de Deus. De facto, as tradições falam-nos de um tempo mítico em que o homem comunicava diretamente com os deuses celestes; escalando uma montanha, uma árvore, uma liana, os primeiros homens podiam subir realmente e sem esforço, ao Céu. Os deuses, por seu turno, desciam regularmente à Terra para se misturarem com os Humanos. Em consequência de um acontecimento mítico qualquer (geralmente uma falta ritual), as comunicações entre o Céu e a Terra foram cortadas (a Árvore, a liana, foram cortadas), e o Deus retirou-se para o fundo do Céu. Mas o xamã, por meio de uma técnica de cujo segredo é detentor, consegue restabelecer (provisoriamente e só para seu uso particular) as comunicações com o Céu e retomar o diálogo com Deus. Por outras palavras, consegue abolir a história (todo o tempo que decorreu após a queda, após a rotura das comunicações diretas entre Céu e Terra); volta para trás, reintegra a condição paradisíaca primordial. Esta reintegração de um illud tempus mítico opera-se no êxtase. O êxtase xamânico pode ser considerado quer como condição, quer como consequência da recuperação da condição paradisíaca. Em qualquer dos casos, é evidente que a experiência mística dos primitivos está dependente também da reintegração extática do Paraíso.

É justamente esta perenidade e esta universalidade dos arquétipos que salvam em última instância as culturas, tornando ao mesmo tempo possível uma filosofia da cultura que seja mais do que uma morfologia ou uma história dos estilos. Toda a cultura é uma queda na história; e é, simultaneamente, limitada. É nas Imagens que o africano ou o indonésio redescobrem os arquétipos do homem primordial. E o mesmo se passa nas restantes culturas. O que, para um Ocidental, é belo e verdadeiro nas manifestações históricas da cultura antiga, para um habitante da Oceania o valor é outro, porque, manifestando-se em estruturas e estilos condicionados pela história, as culturas auto limitaram-se. Mas as Imagens que as precedem e as informam permanecem eternamente vivas e universalmente acessíveis. Um europeu dificilmente admitirá que o valor espiritual geralmente humano e a mensagem profunda de uma obra-prima grega, 

A imagem da Vénus de Milo, por exemplo, para um europeu culto e atual, é uma obra-prima da arte grega clássica. Mas para um guinéu da Papua é a mulher que a imagem revela. E, portanto, não conseguirmos sequer ter em conta esta simples verdade de facto. Portanto, as Imagens constituem aberturas para um mundo trans histórico. Falou-se muito da unificação da Europa medieval pelo Cristianismo. Isto é sobretudo verdadeiro se se pensar na homologação das tradições religiosas populares. Foi através da hagiografia cristã que os cultos locais foram reduzidos a um denominador comum. Devido à sua cristianização, os deuses e os lugares de culto da Europa inteira receberam não só nomes comuns como encontraram de certo modo os seus próprios arquétipos e, por conseguinte, as suas valências universais.

Os filósofos, desde o Positivismo Lógico, pelo menos, que consideram a vida mágica e religiosa da humanidade arcaica como um amontoado de superstições pueris fruto dos medos ancestrais, ou da estupidez primitiva. Mas este julgamento de valor contradiz os factos. O comportamento mágico ou religioso da humanidade arcaica revela uma tomada de consciência existencial do homem em relação a si próprio, e ao Universo. Na dita superstição, estava já implícita uma metafísica, mesmo que ela se exprimisse através de símbolos ou signos em vez de conceitos. Uma metafísica, aqui, significa uma conceção global e coerente do mundo ou da realidade. Não tem nada a ver com os ritos e rituais da série de gestos instintivos regidos pela mesma e fundamental reação do animal humano perante a Natureza. 
O símbolo, em si próprio, exprime a tomada de consciência de uma situação limite.

Para o pensamento arcaico a separação entre o espiritual e o material não tem sentido. Os dois planos são complementares. Pelo facto de se supor que uma casa está colocada no Centro do Mundo, nem por isso deixa de ser um comodidade que responde a necessidades concretas, quer condicionada pelo clima, quer para defesa da intromissão de outros homens e animais. O simbolismo, portanto, acrescenta um novo valor a um objeto, ou a uma ação, sem danificar os seus valores próprios e imediatos. Aplicando-se a um objeto ou a uma ação, o simbolismo abre-nos as portas para outros mundos possíveis. O mundo simbólico emerge da realidade imediata, mas sem a diminuir nem a desvalorizar. O Universo não é fechado. Nenhum objeto está isolado na sua própria existência. Tudo está unido e se mantém coeso por um sistema cerrado de correspondências e assimilações. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si próprio num mundo aberto e rico. É esse o significado do Sagrado.


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