terça-feira, 9 de novembro de 2021

Pessimismo antropológico


Partilho na íntegra este texto de Raquel Moleiro. São estas coisas, e outras como tal, que nos fazem ser pessimistas antropológicos.



««Bom dia.

“Ambição, cobiça ou desejo intenso, imoderado por bens e riquezas, busca incessante pelo lucro, agiotagem, usura, vontade intensa e permanente de possuir ou de ganhar mais do que os demais.” É isto a ganância. É preciso recorrer à definição de um pecado capital para tentar perceber o que levou militares portugueses a traficar diamantes, droga e ouro quando representavam o seu país numa missão das Nações Unidas na República Centro-Africana (RCA). Só a cegueira pelo dinheiro fácil explica como conseguiram ignorar uma nação devastada pela guerrilha e pela violência, onde milhões de menores perdem a infância, e a vida, a trabalhar enfiados em lama, em buracos de cinco metros de fundo, para alimentar o luxo de um outro mundo cintilante.

Não foi ninguém que lhes contou. Não conheceram a crise humanitária da RCA através de uma notícia de jornal ou da televisão, em que o papel ou o ecrã servem de escudo às emoções. Eles estiveram lá, de botas da tropa na terra vermelha, a usar o capacete azul da Paz, a ver olhos nos olhos a subnutrição de 80 mil crianças com menos de 5 anos, a carência extrema de 57% da população, o medo e a morte à mão dos rebeldes que controlam dois terços do país, que é o terceiro mais pobre do mundo. E ainda assim, escolheram o lado dos exploradores.

Ontem, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária pôs em marcha a Operação Miríade, com 320 inspetores distribuídos de norte a sul do país, e Madeira, para dar cumprimento a cem buscas e dez mandados de captura emitidos pelo DIAP de Lisboa. Foi a primeira ação visível da investigação que arrancou no início de 2020, com vista a desmantelar “a rede criminosa, com ligações internacionais, que se dedica a obter proveitos ilícitos através do contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafação e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas, tendo por objetivo o branqueamento de capitais”, revelaram em comunicado.

Os pormenores foram-se conhecendo durante o dia. Os militares suspeitos integraram as forças nacionais destacadas na RCA, no âmbito da missão das Nações Unidas no país (MINUSCA). Quando regressavam a Portugal traziam escondidos diamantes de sangue (de venda proibida, por terem origem num país em conflito), ouro e também droga, aproveitando a ausência de controlo alfandegário das aeronaves militares, que foi entretanto reforçado. Os produtos traficados eram depois vendidos em Antuérpia e Bruxelas, dois conhecidos mercados de diamantes. O esquema envolve também o branqueamento de capitais através da compra de bitcoins. Entre os dez detidos, há militares e ex-militares, mas também civis, por cujas contas passava o dinheiro ou que agilizavam o transporte a nível europeu.

A primeira denúncia de que algo se passava foi feita ao Estado-Maior General das Forças Armadas pelo Tenente-Coronel Vítor Gomes, em dezembro de 2019, quando comandava a 6ª Força Nacional Destacada na RCA. O ministro da Defesa, Gomes Cravinho, foi informado, assim como a Polícia Judiciária Militar que transmitiu os indícios ao Ministério Público, que, por sua vez, entregou a investigação à PJ. No início de 2020, a ONU foi também alertada para o processo em curso, mostrando disponibilidade para cooperar na investigação.

Os suspeitos são militares jovens, praças que ainda cumpriam contrato quando foram em missão internacional. Vários já nem estão nas Forças Armadas, como o “guarda-provisório” da GNR, em formação, detido em Portalegre, ou o elemento da PSP que estava atualmente ao serviço do Comando Metropolitano de Lisboa. Não há altas patentes, sabe o Expresso.

Muitos são comandos, membros da tropa de elite do Exército Português. No dia em que completaram o curso, duro, que só uma minoria termina, deram-lhes a boina vermelha e ‘O Código’ que lhes regeria, daí em diante, a vida. Entre outros princípios, ali se lê que o comando não aceita a indignidade, nem a desobediência, nem o desrespeito pelas regras da disciplina e da honra; que está sempre disposto a auxiliar quem precisa, quer na paz, quer na guerra.

Os comandos agora detidos terão quebrado mais do que a Lei do país. Quebraram ‘O Código’, que tem em si mesmo a pena pela desonra. “O carácter, a lealdade, a fidelidade, a obediência e a determinação são virtudes inalienáveis. O comando que as não possua ou as despreze deve ser inexoravelmente privado do seu título”. Para sempre, como os diamantes.»»

Para Espinosa, as leis contêm os homens como se contém um cavalo com a ajuda de um freio. E para Maquiavel todos os homens são maus, são naturalmente animais egoístas. Dele deriva a célebre frase, segundo a qual, a longo prazo estamos todos mortos. Ninguém sacrifica um ganho imediato a pensar num lucro futuro (a lógica de valer mais um pássaro na mão do que muitos a voar). Assim, considera que a vida é um jogo de soma zero, onde o enriquecimento de uns é feito à custa do empobrecimento de outros e onde o poder de uns é conseguido à custa da falta de poder de outros. O Príncipe é assim visto como aquele que serve para dar aos súbditos uma perspetiva de longo prazo.


Sem comentários:

Enviar um comentário