sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Um exorcista português






Duarte Sousa Lara, [15/7/75] é um exorcista oficial da diocese de Lamego desde 2008, um dos poucos três ou quatro exorcistas acreditados em Portugal. Filho mais velho de Sousa Lara (subsecretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva. Em 1992, este subsecretário ficou famoso ao impedir a candidatura do livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago ao Prémio Literário Europeu) até aos 20 e poucos, nunca tinha pensado em ser padre. Muito menos imaginava tornar-se exorcista. Era um menino da Linha de Cascais e o mais velho de cinco irmãos de uma família rica. Cresceu no Estoril, ao pé da praia, e quando acabou o curso de Gestão na Universidade Católica, o pai arranjou-lhe um lugar na administração de um grande banco. Por essa altura, pensava casar, queria ter dez filhos e comprar uma quinta com uma pista de motocrosse. Nas férias entretinha-se com o bodyboard no Guincho, as namoradas e as motas. E enquanto os irmãos iam para acampamentos católicos, ele fazia-se à estrada rumo ao Alentejo, onde uns tios tinham um monte.

Numas férias de verão, clique deu-se em Fátima. A mensagem mariana mexeu com ele: o céu existe, o inferno também, é preciso rezar, muita gente vai para o inferno porque ninguém faz nada e a coisa não está famosa. A partir desse Verão, começou a rezar o terço e a ir à missa todos os dias e passou por vários movimentos católicos. Meteu na cabeça que havia de ser santo, mas um santo moderno: havia de casar, ter os dez filhos e comprar a quinta com a pista de motocrosse. Sempre que ganhasse uma prova nas motas – o sonho era aparecer na revista favorita, a “Motojornal” –, falaria ao mundo sobre as coisas de Deus. Seria, portanto, um santo de mota que bebia Coca-Cola, comia gelados Santini e ia à praia do Guincho. 
«As pessoas têm uma imagem da santidade um bocado deformada. Pensa-se que ser santo é fazer penitência e rezar muitas horas, mas ser-se santo é amar em tudo o que se faz, a única coisa incompatível com o amor é o pecado. Quem ama não mata, não rouba, não mente. Tudo aquilo que é honesto é matéria-prima para me santificar e eu percebi que Deus precisava e precisa de santos normais no meio do mundo.
Fiquei muito triste quando senti a necessidade desse caminho porque, se eu fosse para padre, não poderia fazer nada do que tinha planeado para a minha vida. Quem é que iria ser santo a ganhar provas de mota? Quem iria ser santo a comer pastéis de Belém e a ir para o Guincho? Eu tinha construído um plano que achava perfeito. Nessa altura, estava a meio do curso de Gestão na Católica e comecei a perder horas de sono. Quando abria a Bíblia ao acaso, calhava-me sempre a passagem do jovem rico – a história, repetida em três evangelhos, do rapaz rico que pergunta o que é preciso para ir para o céu. 
Num dia de anos, véspera de terminar a licenciatura, juntei a família. Na festa, antes de apagar as velas, fiz o anúncio: “Amanhã acabo o curso e a seguir vou para o seminário.” O meu pai respondeu logo que não era nada que não se estivesse já a adivinhar, mas não gostou da ideia. Tinha outros projetos para mim, e até já me havia arranjado um lugar na administração de um grande banco.»
Duarte Sousa Lara havia decidido que, quando acabasse o curso, experimentaria o seminário durante um ano. Com a esperança e a certeza de que não daria certo. Mas, assim, ficava de consciência tranquila. “Ninguém o podia culpar por não ter tentado: ia para o seminário, eles percebiam que ele não tinha jeito para aquilo, e mandavam-no embora. Ficaria tudo bem. À medida que o curso de Gestão ia chegando ao fim, a vontade de ser padre aumentou e, antes de embarcar para São Paulo, no Brasil, para estagiar num grande banco, já sabia que a carreira não passava por ali. Não demorou muito tempo até que Duarte Sousa Lara embarcasse num avião com destino a Roma: não queria estudar teologia em Portugal, porque achava que muitos professores não ensinavam o catecismo católico como ele realmente é. Como bom gestor, foi a Itália fazer um “estudo de mercado” sobre as universidades que havia. Enviado pela diocese de Lamego, acabou na Santa Croce, a universidade da Opus Dei. E um semestre depois de acabar o curso, já estava a dar aulas, ao mesmo tempo que acabava o doutoramento.

Quando conseguiu encontrar-se com o exorcista oficial de Roma, encheu-se de coragem. “Não me pode ensinar?”, perguntou-lhe. O padre Gabriele Amorth, que foi apresentado acima, neste artigo, é de poucas conversas, olhou-o com estranheza. “Ó rapaz, tu és seminarista. Para te ensinar terias de ser, no mínimo, diácono.” Duarte Sousa Lara, acabado de chegar para estudar Teologia na Universidade de Santa Croce, da Opus Dei, insistiu. “Posso então ir consigo ver um exorcismo?” Amorth, consentiu. E foi assim que o seminarista se juntou ao grupo de leigos que o acompanhavam e apoiavam nas sessões de expulsão do demónio. Duarte Sousa Lara passou a segui-lo para toda a parte. Sete anos depois, tornou-se padre e teve de pedir autorização ao bispo da diocese de Lamego – que o tinha mandado para Roma para se formar – para continuar a acompanhar o exorcista. O bispo concordou e, enquanto dava aulas na universidade e preparava a tese de doutoramento, ajudava Amorth nos exorcismos. Passaram dez anos juntos. “Ele simpatizou comigo, senão não me deixava ficar tanto tempo, mas a verdade é que não me dava muita conversa. Eu era um miúdo que estava ali. De vez em quando, lá explicava uma coisa ou outra, do género ‘agora vamos ter um caso em que toda a família está mal’, e pouco mais”.

Em 2008, a diocese pediu-lhe que regressasse a Portugal para trabalhar em três paróquias, mas Sousa Lara queria mesmo era continuar a fazer exorcismos. O bispo aceitou nomeá-lo exorcista oficial da diocese, ainda que com uma condição: teria de assegurar, ao mesmo tempo, o trabalho nas três igrejas que lhe destinara inicialmente. Quase todas as pessoas que lhe escrevem, desesperadas e com sintomas estranhos, são católicas não praticantes. E a maioria andou em bruxos, adivinhos e videntes. Outras foram vítimas de bruxarias. Para perceber a origem dos distúrbios, o exorcista começa por conversar com os exorcizados. Há quanto tempo começaram os sintomas? Alguma coisa mudou, nessa altura? As respostas não costumam variar: “As pessoas recuam no tempo e percebem que ou se zangaram com alguém ou mudaram de emprego, e isso suscitou inveja, ou se casaram contra a vontade de um sogro ou de uma sogra e, pelo meio, apareceu um sapo com a boca cozida à porta de casa. Ouço destas histórias às dezenas.”

A 20 de Março de 2008, e pouco tempo depois de regressar definitivamente a Portugal, foi nomeado exorcista oficial da diocese de Lamego. Desde então, tem autonomia para fazer os rituais. Sempre que encontrava um caso de perturbação diabólica, tentava resolver o problema, mas o bispo tinha de autorizar os exorcismos um a um, porque Sousa Lara só tinha permissão para exorcizar em Roma. 

Pároco de três pequenas freguesias – Folgosa, Desejosa e Valença do Douro, e professor no Instituto Superior de Teologia Beiras e Douro, membro da Associação Internacional dos Exorcistas – tem de preservar o seu recato. Até as missas serem celebradas em vernáculo, todos os batizados eram exorcizados. A fórmula atual do batismo seria chocante tratar as crianças como estando possessas, com toda a gente a perceber, uma vez que se passou a usar a língua comum. As "vítimas", através de "malefícios", são as que pedem ajuda ao demónio para fazer dano, para fazer mal a alguém, produzem os tais casos que o procuram: os mais típicos são invejas no trabalho, problemas com vizinhos, familiares, às vezes partilhas, heranças. Foram vítimas de um malefício, por inveja, por maldade. E que de repente começam a ter problemas físicos, espirituais, a ouvir coisas, ver coisas, desmaiar, entrar em transe. Começam a ir ao hospital, fazem exames e a perceber que o problema deles não é fisiológico, não é clínico.

Os sintomas da possessão, Duarte Sousa Lara trabalha de perto com um psiquiatra e um psicólogo, com quem discute os casos. E que lhe enviam pacientes que não conseguem tratar. “Pessoas que, mesmo debaixo de medicação fortíssima, continuam a desmaiar ou a ter distúrbios muito graves”. Com o avançar das sessões, os sintomas começam a desaparecer porque o demónio vai enfraquecendo, até decidir ir-se embora. Os sintomas da influência e da possessão diabólica são, por vezes, difíceis de identificar: distúrbios fisiológicos e psicológicos que a medicina não consegue explicar. Muitas vezes, os possessos começam a adivinhar coisas, falam em línguas estranhas, desmaiam sem ter doenças diagnosticadas, têm alucinações. "O demónio age muito sobre os sentidos”. São comuns os casos de pessoas que ouvem estalos e barulhos de noite, veem vultos, sentem cheiros anormais e têm dores de cabeça persistentes e incapacitantes que não passam com nenhum tipo de medicação. Depois, há os distúrbios ligados à casa: ouvir o som de torneiras abertas sem que haja água a correr, eletrodomésticos que se ligam e desligam sozinhos. Nos casos mais graves, os exorcizados entram em transe e não se recordam de nada do que aconteceu ou do que disseram nas sessões. Há quem precise de ser amarrado. Duarte Sousa Lara tem uma cama de hospital para as situações mais delicadas. E mesmo assim, são precisas várias pessoas a segurar. “Ganham uma força inexplicável”. No exorcismo, é o diabo quem fala pela pessoa. Grita, ameaça, cospe, morde, goza. “Alguns até cantam.”

Quando começou a fazer os exorcismos, as freiras que vivem na parte de cima do edifício queixaram-se. Aquilo não podia continuar: todos os dias, um aparelho elétrico diferente rebentava: ora era o micro-ondas, ora a máquina de lavar. Até que o quadro elétrico da casa pura e simplesmente ardeu. “Fui lá, rezei com elas e nunca mais voltou a haver problemas”, conta o exorcista Sousa Lara. Garante, aliás, que nunca teve questões de maior com o diabo. “O demónio é como aqueles cães muito pequeninos que ladram muito, mas depois fogem a correr”, garante. Uma vez, num exorcismo, foi ameaçado de morte: “Vou-te fazer cair da mota”, disse-lhe o demónio. Ignorou-o completamente e continuou a andar à vontade pelos montes em redor de Lamego: “Continuei a cair, como já tinha caído antes.” Nenhum católico praticante deve, aliás, ter medo. “O demónio tem muito receio das pessoas que andam com Deus”, garante o exorcista. Talvez por isso, Sousa Lara nunca passou por nenhum episódio digno de filme de terror fora dos exorcismos. “É muito cansativo. Isto suga, consome muitíssimo, como se fosse um desporto violento".

Os pedidos de socorro foram aumentando ao longo dos anos e Lamego passou a receber cada vez mais pessoas desesperadas e vindas de todas as partes do país. Sousa Lara ainda tentou tratar do assunto como mandam as regras: “Com a autorização do meu bispo, escrevia cartas aos bispos das dioceses das pessoas." Explicava que estavam mal, que precisavam de ajuda e perguntava se seria possível que um padre as acompanhasse, de maneira a não terem de fazer tantos quilómetros até Lamego.” Alguns bispos lidaram mal com o pedido. Houve quem lhe escrevesse de volta a dizer que estava enganado e que as pessoas não precisavam de acompanhamento nenhum. Outros foram-se mesmo queixar ao bispo de Lamego. “Um dia, o meu bispo chamou-me e disse-me: ‘Não escrevas mais diretamente aos bispos. Manda as cartas para mim, que eu depois entrego-as.’”

 Em 2016, Duarte, apresentava um currículo de "200 possessões graves", 60 das quais ainda não "resolvidas" à época. Contabilizava uma média de 25 "possessões graves" por ano e uns impressionantes 20.800 pedidos de ajuda. Os casos graves precisam, sobretudo, de paciência. “Há situações que demoram anos a resolver, mesmo com várias sessões e missas diárias.” Entre cada exorcismo, é preciso fazer trabalho de casa: “Confissão uma vez por mês, comunhão e missa diárias, terço e oração de libertação também todos os dias. Isto é o mínimo que se tem de fazer entre cada sessão e, se as pessoas não cumprirem isto, não continuo os exorcismos”. Dando-se a conhecer num site na internet. Diz:
«Não faltam práticas supersticiosas que temos à nossa volta: o espiritismo, o reiki, os curandeiros, os bruxos, os adivinhos, o rock satânico . . . Com a secularização surgiram muitas formas de superstição. As pessoas recorrem a bruxos, tarots, magos, etc., e isso do ponto de vista espiritual abre-as a distúrbios de origem diabólica que vão para além das simples tentações - já não são as tentações de sempre, são coisas estranhas. Portanto, foi um ministério que deixou de ser preciso e que agora volta a ser preciso de uma maneira mais urgente. Encontramos mais pessoas que precisam de exorcismo, de aconselhamento nesta área.»
«O nosso equilíbrio espiritual está muito ligado à oração, que é fundamental para a união com Deus. É como num namoro: se dois namorados não se encontram e não falam, a relação não pode ter grande futuro. As pessoas não sabem, mas é obrigatório os padres andarem sempre identificados. O sacerdócio é um ministério público e temos de estar prontos e disponíveis para receber qualquer pessoa que precise de um padre, a qualquer hora e em qualquer lugar.»

«Tento ter uma vida equilibrada. À segunda é o meu dia de retiro, à terça estudo para poder pregar, à quarta é o dia do correio e de ler os novos pedidos de ajuda, à quinta faço direção espiritual e confissões e às sextas são os exorcismos.»

Tem fama de austero e acorda todos os dias às seis da manhã. Meia hora depois, já está a rezar. A oração dura até às oito da manhã. Antes do almoço, já está outra vez a rezar o terço – todos os dias reza um rosário (quatro terços). Ao final do dia celebra uma missa e reza as vésperas e, a seguir ao jantar, volta a rezar. Pelo meio, trabalha. A rotina é muito diferente da de alguns padres católicos, que não rezam tanto quanto deveriam. Também ao contrário de muitos padres, faz questão de andar sempre de batina preta – só a despe para dormir e andar de mota. Por causa da batina, já confessou pessoas em todo o tipo de sítios. Até no aeroporto, enquanto esperava pelas malas. Até podia andar só com o cabeção, como a esmagadora maioria dos colegas, mas gosta de citar um amigo que uma vez lhe disse, em Roma: “Gosto que se veja à distância que sou padre.”

Na luta contra o demónio, os três exorcistas da Igreja portuguesa não têm mãos para tantos casos. E, em Lamego, o excesso de trabalho obriga a uma agenda disciplinada e planeada ao minuto. Apesar de a Igreja Católica continuar a defender, no catecismo, que o inferno e o demónio existem e que a oração do exorcismo é eficaz, muitos padres, especialmente os mais jovens, não acreditam. Por isso, há quem olhe para ele como se fosse um lunático – apesar de o Papa Francisco ter chamado a atenção, nos últimos dois anos, para a importância do combate ao demónio. Apesar de tudo, também houve reações positivas por parte do clero português. Um bispo, depois de receber uma das cartas, decidiu nomear um exorcista oficial para a sua diocese.

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