quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Estados de Transe e Possessão


Os estados de transe e possessão, não necessariamente considerados delírios, muito embora possam estar divorciados da realidade lógica, no entanto
 pessoas possuídas, não estão livres de preencherem os critérios do delírio. O delírio pode ser secundário a distúrbios cerebrais muito sérios, em que as psicoses e a demência são exemplos paradigmáticos, mas é claro que não podemos atribuir o diagnóstico de delírio a todas as pessoas que se deixam possuir em cultos religiosos. As epilepsias temporais, as mais estudadas, aparecem no DSM-5: “Os delírios religiosos têm estado especificamente associados, em alguns casos, à epilepsia do lobo temporal.”

 
Para a maioria das pessoas em transe e possuídas pelo demónio temos de pensar em fenómenos de influência espiritual dos cultos religiosos. Alterações do pensamento, e não da percepção como as alucinações, podem ser variados, mas os sintomas persecutórios são os mais constantes. Uma outra consideração do DSM, diz respeito à constante presença de aspetos atípicos em psicoses secundárias a alterações orgânicas. É atípica nesses casos, por exemplo, a idade do início das alucinações. A ocorrência de alucinações olfativas e gustativas sugere Epilepsia do Lobo Temporal. Na mesma linha das disritmias cerebrais (epilepsias) estão os casos de enxaqueca, episódios de visão de luzes brilhantes definidos como aura. 

Os casos de Síndrome de Tourette são os mais fascinantes do ponto de vista do diagnóstico. É sobre este síndrome que recai a maioria dos casos com o rótulo de possessão pelo demónio. Mais raramente também pode acontecer com a Esquizofrenia, e quadros depressivos bipolares ou acompanhados de sintomas psicóticos. Isso tudo sem falar dos maiores clientes de espíritas e demónios: os histriónicos – em suas mais variadas apresentações. Os portadores da Síndrome de Tourette são aqueles que falam línguas estranhas, a chamada glossolalia. Algumas crises neurológicas, neuropsiquiátricas ou psiquiátricas propriamente ditas, podem manifestar-se por uma sensação de horror e medo, por violentas convulsões e quedas aparatosas, a falar “línguas estranhas”, enfim, sintomas culturalmente atribuídos ao diabo ou outras entidades igualmente poderosas. O delírio, por exemplo, assim como as alucinações, ocorrem universalmente em pacientes psiquiátricos de todo o mundo, assim como também é universal a teatralidade dos histriónicos ou as palavras estranhas que falam, e assim por diante. O avanço dos conhecimentos da neurociência vem permitindo que esses pacientes possam ser tratados adequadamente, ao invés de serem considerados como iluminados, paranormais, mediúnicos ou tocados por algum espírito, superior ou inferior, dependendo das conveniências. Acontece que nem sempre há interesse cultural para que todos esses casos sejam tratados, mas essa é uma outra questão.

Não obstante os sintomas básicos das doenças mentais serem uniformes e universais, apresentam nuances conforme o contexto cultural. Delirar e alucinar com isto ou aquilo, ou seja, determinar o tema do delírio, dependerá do conteúdo cultural de cada um. E, mesmo assim, muitos casos continuam objeto de controvérsia, especialmente quando a envolvência cultural da pessoa favorece a interpretação demoníaca. Há um problema de saúde mental coletiva em meios fechados do mundo rural. Os padres e as chamadas figuras de virtude, pejorativamente chamadas de bruxas ou feiticeiras, têm um valor assistencial e psicossocial inquestionável dentro das chamadas camadas populares. Em zonas desassistidas a todos os níveis sociais, e que a saúde não é exceção, são estas entidades organizadas no seio do povo que desempenham o papel que as instituições oficiais do Estado não conseguem cumprir satisfatoriamente.

O saber psiquiátrico, como todo o saber médico em geral, é hoje essencialmente um saber de ciências académicas, com paradigmas espelhados em suas realidades e teorias socioculturais e económicas que nada têm a ver com o estádio de desenvolvimento cultural de certas populações mais isoladas. Tudo isso resulta numa progressiva aculturação que se reflete igualmente no modelo assistencial psiquiátrico. O resultado é a confusão e o distanciamento cada vez maior da realidade autóctone: uma oposição de paradigmas - de um lado o saber científico que é dominante; e do outro a tradição e o saber popular temperado pela religião.

Estando a pessoa em estado de êxtase - falamos em Transe de Inspiração. É o caso, por exemplo, do dom de “falar línguas estranhas”. Falar línguas estranhas, também chamado glossolalia, constituiu um elemento marcante da doutrina pentecostal, portanto, fortemente cultural. Trata-se de uma evidência do batismo do Espírito Santo. Segundo os pentecostais, e alguns antropólogos, tal fenómeno classificado em experiência extática, é devido ao estado de êxtase, ou de enlevação. Todos esses casos são classificados como Distúrbios Dissociativos de Identidade, caracterizados pela presença de dois ou mais estados distintos de personalidade ou uma experiência de possessão e também com episódios recorrentes de amnésia. Diga-se que a manifestação é histriónica quando essa fragmentação da identidade, que pode variar entre as diversas culturas, se faz acompanhar de transe dissociativo. A Psiquiatra Transcultural incide particularmente o seu interesse pelos fenómenos deste género a um nível mais coletivo, quando estão inseridas em práticas de cariz religioso. Enquanto o transe dissociativo envolve o estreitamento da consciência quanto ao ambiente imediato, com comportamentos ou movimentos estereotipados vivenciados como estando além do controlo do indivíduo, o transe de possessão envolve a substituição do sentimento costumeiro de identidade pessoal por uma nova identidade, atribuída à influência de um espírito, ou divindade, ou outra pessoa, e associada com movimentos estereotipados.

Embora o problema da religiosidade tenha sido sempre uma preocupação universal, a religião é um reflexo de uma necessidade psicológica, individual e coletiva. O sentimento religioso é uma necessidade de caráter íntimo e pessoal. De facto, a psicopatologia procura limitar a religião à sua natureza fisiológica, tal como uma necessidade psicológica conveniente e sadia. Quando adequada, a religiosidade pode atender a um propósito terapêutico ou, ao contrário, se inadequada pode refletir uma situação clínica patológica, uma eventual ocorrência mórbida e regressiva. A religiosidade e o exercício religiosos são fisiológicos se culturalmente adequados. Entre as variáveis capazes de tornar o fenómeno religioso patológico estão, por exemplo, a intensidade e o grau de obsessão do pensamento místico, a perda da noção dos limites que existem entre o pensamento mágico e o lógico, e a consciência pessoal que as questões da vida prática foram emancipadas da influência divina. 

Embora o estado psicopatológico envolva o uso da razão, por outro lado ele não coloca a pessoa exclusivamente atrelada, ou à forma lógica, ou à forma mágica do pensamento. A Psiquiatria também não preconiza que a pessoa deva rechaçar crenças que não sejam determinadas por motivos racionais. Não pede para extrair conclusões exclusivamente a partir daquilo que é racional e objetivo. Que existem crenças alienantes e patológicas já se sabe, mas identificá-las e estabelecer relações entre essas crenças patológicas com motivos mórbidos internos e particulares de cada um não é tarefa que caiba à ciência. A crença, em si, é um ato de consentimento subjetivo. E com a crença religiosa passa-se a mesma coisa. A fé não se discute.

O exercício do pensamento mágico, e da religiosidade, é um atributo da pessoa psiquicamente livre. Psiquicamente, a pessoa sadia recorre voluntária e espontaneamente aos pensamentos mágicos, sejam eles simples devaneios, fantasias eróticas, ou de natureza metafísica e mística. Porém, ao mesmo tempo, a pessoa livre e sadia também é portadora de uma capacidade voluntária, arbitrária e espontânea de parar com esses pensamentos mágicos e voltar, prontamente, ao pensamento lógico indispensável à lide com a vida e com a realidade. A pessoa psiquicamente sadia sabe, exatamente, onde começa o pensamento lógico e termina o pensamento mágico. Na doença psíquica, no entanto, fica seriamente comprometida essa consciência, sendo difícil e/ou impossível ao paciente fazer com que o seu pensamento transite voluntariamente entre o mágico e o lógico e vice-versa.

Há pessoas emocionalmente propícias ao desenvolvimento de crenças patológicas, sejam essas crenças elaboradas por essas próprias pessoas como uma necessidade interior de alívio para angústias e desesperos, sejam as crenças induzidas por outras pessoas. De modo geral, quanto maiores são as angústias, mais facilmente se recorre ao pensamento mágico. Isso ocorre fisiologicamente nas pessoas normais, porém, diante de situações psíquicas patológicas, a “opção” para o pensamento mágico pode tornar-se absolutamente impositiva.

A predileção pelo pensamento mágico pode-se dar em vários graus: desde uma simples crença, passando pela fé, pelas ideias supervalorizadas, até ao delírio e fanatismo. Isso significa que a simples crença pode privilegiar a mágica sobre a lógica discretamente, sendo possível sair do mágico para o lógico com facilidade. No delírio, porém, há um grau maior de submissão da lógica ao mágico, tornando basicamente impossível o retorno voluntário ao pensamento lógico. Então, para saber se a pessoa está totalmente, parcialmente ou ligeiramente submissa aos seus pensamentos mágicos, devemos saber se essa pessoa tem ou não delírios. Os delírios são os mais graves causadores da soberania do pensamento mágico. É a Psiquiatria quem estuda as patologias que originam delírios que causam o domínio absoluto do mágico sobre o lógico.

A Psiquiatria procura saber diferenciar a sugestionabilidade determinada por razões culturais, ou seja, diferenciar a pessoa que se sente possuída por entidade espiritual durante um culto religioso, da de um delírio. Durante um culto religioso, a pessoa vivencia um entorno místico, podendo ser induzida a aderir a algum tipo de pensamento mágico, cujo conteúdo não será totalmente estranho à outras pessoas que comungam a mesma crença ou o mesmo espaço cultural.

A grande habilidade dos líderes religiosos consiste em saber diferenciar os casos que comportam uma qualquer psicopatologia e encaminhar para tratamento médico. E ficar com os casos sensíveis aos tratamentos informais, ou seja, espirituais. Talvez seja essa a questão eminentemente cultural, que diferencia entre o tratamento da doença e o tratamento da pessoa. E, de facto, algumas pessoas podem ser beneficiadas mais com os tratamentos populares e religiosos, do que com os tratamentos médicos.

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O tema do Transe e Possessão abordado segundo a Psiquiatria Transcultural tem como objetivo separar o trigo do joio, ou seja, qualificar o que é patológico no âmbito da fenomenologia das possessões com o rótulo de sobrenatural, sob o patrocínio de uma religião. E do que não passa apenas de uma questão cultural, a representação da realidade do mundo psíquico nos limites da normalidade. A Psiquiatria Transcultural procura identificar os quadros mentais específicos de determinada cultura, e separá-los da doença psiquiátrica reconhecida por consenso nos quadros classificativos e inscritos no “Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” = DSM-5.

É o caso, por exemplo, do conceito de possessão demoníaca ou Diabo no Corpo, uma condição de agitação de determinadas pessoas, sobretudo do sexo feminino, que são levadas a um padre especializado em exorcismos para serem exorcizadas. Os casos de Diabo no Corpo são o mesmo que as famigeradas epidemias de possessão demoníaca das bruxas que a Europa assistiu durante a Idade Média. Ainda hoje, dependendo da cultura da comunidade em questão, esses quadros de possessão vão aparecendo. No entanto, apesar de tais rompantes de possessões poderem acometer pessoas psiquicamente normais, embora momentaneamente fragilizadas psiquicamente e que a Psiquiatria Transcultural reconhece, esses quadros podem acometer pessoas com quaisquer outras perturbações mentais, incluindo as psicoses.

Alguns pacientes com Epilepsia do Lóbulo Temporal ou Epilepsia do Sistema Límbico podem sofrer exóticas mudanças de personalidade de forma repentina, durante as crises ou entre as crises. Esses quadros de mudanças de personalidade, quando emergem, comumente começam por ser interpretados pelo público como um episódio de êxtase místico, tendo em conta o seu enquadramento religioso. A sua valoração patológica ou mística é mais de ordem cultural. É muito raro a comunidade científica meter-se nestes assuntos diretamente. Mas os casos que são acompanhados de alucinações devem ser classificados como psicóticos, independentemente de serem decorrentes dos efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica geral sobre o cérebro, ou não. As alucinações podem ocorrer em qualquer uma das cinco modalidades dos cinco sentidos, isto é, podem ser visuais, olfativas, gustativas, táteis ou auditivas, mas alguns fatores etiológicos tendem a provocar fenómenos alucinatórios específicos. Assim, as alucinações olfativas, especialmente aquelas envolvendo o odor de borracha queimada, enxofre ou outros cheiros desagradáveis, são altamente sugestivas de epilepsia do lobo temporal.

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