quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Bruxo! Disse ela

 

Ao procurar no Google o sítio da minha companhia de seguros entrei por engano num sítio dito “Mundo ageas”, com letras garrafais dizendo: “Bem-vindo a um mundo de serviços”. Depois verifiquei que me tinha enganado, mas tive curiosidade, já agora, que serviços eram esses? E é de facto um mundo! Tem de tudo: desde pilates e aulas de yoga; explicações de alemão, aulas de guitarra; extensão de pestanas e limpezas da casa; investigação privada e tradução de filipino; pichelaria, instalação e configuração de router; cantores e aluguer de insufláveis para festas; vidente . . .




Dentro do espetro das ideias delirantes encontramos desde variantes benignas chamadas ideias sobrevalorizadas ou superestimadas, até ao fanatismo puro e duro. Essas ideias costumam ser exageradas por sobrevalorização emocional ou psicológica, que pode ocorrer em qualquer indivíduo. Portanto, é necessário ressalvar, que nem toda a crença delirante, do ponto de vista lógico e racional, tem de ser necessariamente patológica. Até as constituições dos países, as cartas para os direitos humanos, ou catecismos religiosos, podem incluir ideias sobrevalorizadas e, todavia, ninguém se atreve a dizer que são exageradas. Os cientistas também podem cultivar ideias superestimadas afetivamente que decorre do seu amor à profissão, ou à sua paixão pela pesquisa científica sem outros interesses. As ideias supervalorizadas ou crenças exageradas não são delírios, nem comportam nenhum fanatismo. Para realçar as diferenças, existem outros sinais e sintomas que fazem parte de quadros clínicos psicopatológicos bem definidos pelas perícias técnico/especializadas de nível internacional.

fanatismo e o espírito de seita dizem respeito a ideias supervalorizadas mais contundentes e exuberantes, organizadas num sistema que espelha fielmente aquilo que entendemos por sectarismo. Trata-se da adesão afetiva incondicional a certas ideias prevalentes em grupos restritos das sociedades em geral. Veja-se neste momento o caso dos chamados 'negacionistas' em relação às vacinas e à covid-19. O que importa a esse respeito é saber que ideias erróneas por superestimação afetiva, ou ideias supervalorizadas, representam uma variedade atenuada das chamadas ideias delirantes, que na maior parte dos casos pode corresponder a problemáticas predisposições da personalidade para desvios psicopatológicos. 

Para a formação de ideias delirantes são necessários alguns elementos favorecedores. Pode ser uma personalidade prévia vulnerável e problemática, seja por traços de marcante histrionismo (extrema sensibilidade afetiva); tendência para a paranoia e teorias da conspiração; ou mesmo devido a problemas funcionais cerebrais que vão desde epilepsias a tumores cerebrais. Acontece sempre ocorrer numa situação emocional frágil, problemática e vulnerável inserida num ambiente cultural que ofereça os ingredientes culturais a condizer.

O processo mental que caracteriza uma ideia delirante é bastante similar ao do pensamento mágico. Toda a infância é povoada de pensamento mágico, num grau maior ou menor. As ideias delirantes aparecem em certas pessoas como tentativa de manipular frustrações ou vicissitudes e tensões da vida real. Trata-se de fantasiar de forma elaborada desejos que a vida real não pode satisfazer. No entanto, tornam-se patológicas se essas fantasias se tornarem incompatíveis com uma convivialidade saudável. Uma pessoa com marcante e desmedida ambição pelo poder, por exemplo, dependendo da estrutura de sua personalidade, pode ser altamente nefasta quando leva outras pessoas a acreditarem nela ao ponto de os elegerem democraticamente. 

Um outro aspeto a ter e conta nestes processos mentais é o da sugestão, que contribui para reforçar a adesão a ideias condicionadas por fenómenos de influência, seja de ordem ideológica no caso da política, seja de ordem espiritual no caso dos cultos religiosos. A pessoa que vivencia uma realidade diferente e estimulada por outra pessoa pode ser influenciada por sugestão. Em termos gerais, todos nós somos sugestionáveis em algum grau e isso equivale a dizer que o ser humano é, essencialmente, um imitador. É como a força da persuasão publicitária, ou da moda que ninguém tem a veleidade de contestar sob pena de ser ridicularizada. A propaganda e o marketing só se viabilizam porque tomam por base a sugestionabilidade humana. Mas convém esclarecer que a sugestão não tem nada a ver diretamente com o delírio ou ideias delirantes. Nessas situações não está em causa a perda da livre vontade e do pensamento lógico. A hipnose é uma espécie de lavagem ao cérebro que depende do grau de sugestionabilidade da pessoa. A sugestão será tão mais forte quanto mais vulnerável a pessoa for emocionalmente. Mas, seja qual for o grau de sugestionabilidade ou de influência, como não se trata de delírio nem de ideia delirante, será possível mais facilmente a pessoa reassumir o seu sentido do real. A autossugestão é a mesma coisa que a sugestão, porém, tem como mola propulsora os elementos psíquicos internos, embora motivados por valores culturais. Sugestão e autossugestão podem ser vivenciadas por pessoas excessivamente tímidas com perda de autocontrolo por ansiedade que no limite pode provocar crises de pânico. 


***

«Na sala do rés-do-chão, está frio. Um pequeno aquecedor elétrico trava a sua batalha desesperada contra as correntes de ar que passam através da porta. E o homem idoso que entra, ligeiramente curvado, com uma pasta na mão, avisa de imediato: "Não vou tirar o casaco". É um espaço despido. Uma mesinha de madeira muito simples ao centro, algumas cadeiras dos anos sessenta e uma poltrona castanha das que se usavam há trinta anos, com braços de madeira, costas levemente inclinadas e revestimento de tecido acastanhado a fazer lembrar, de uma maneira impiedosa, o mobiliário socialista dos países de Leste. Estranho, porque aquelas pessoas são portadoras de males que a ciência médica não compreende ou reconhece, nem consegue curar. Nem aqueles que deveriam ter alguma familiaridade com essas maleitas, como são os psicólogos e psiquiatras, porque não há pachorra para abrir uma porta para o 'além' da matéria, para o sobrenatural.

Um homem que, em 1976, se licenciou em medicina, quase por procuração, porque beneficiou da bonomia daqueles tempos da brasa, daqueles tempos do PREC, e das passagens administrativas com apto, é conhecido como o 'bruxo', mas na verdade é mais parecido com um exorcista. Nas paredes há pouca coisa, um diploma apenas. É um homem com ar mefistofélico, nunca nenhuma piada no seu discurso. Um poço de recordações, de histórias, de experiências Diz que não tem telefone móvel, não tem Internet, não vê televisão, nem lê jornais. De muitas coisas, nada agradáveis, os seus pacientes o informam. A sensação de entrar num mundo diferente, numa dimensão que não é a habitual, é intensa. E torna-se cada vez mais forte, à medida que os pacientes desenrolam o fio das suas histórias, caindo em transe, seres gritantes, de cuja boca saem baba e blasfémias, dotadas de uma força tal que nem seis ou sete pessoas conseguem imobilizá-las, sendo necessário amarrá-las para impedir que façam mal a elas próprias e aos outros. Depois voltam ao seu normal, calmas, logo que termina o estado de transe.

A sensação destes dois universos que caminham lado a lado, muito próximos, que de vez em quando se tocam, num curto-circuito dramático, por causa da presença de um poder maligno e palpável, na sala despida, no rés-do-chão daquele edifício na periferia da cidade dos arcebispos, cidade do quartel-general dos milagreiros, e não só. Quando a memória não o socorre, vêm em sua ajuda as recordações indeléveis dos exorcistas. Uns manuscritos redigidos com uma máquina de escrever de um compadre antigo, que outrora fora jornalista, ou melhor, encarregado dos horóscopos e dos “borda de água” do jornal. Cuido de omitir o nome das pessoas envolvidas, para evitar qualquer possível identificação. Há os que contaram as experiências, pessoalmente vividas numa sala repleta de geringonças. Há os colegas de curso, e os colegas de ofício, mais empenhados na maledicência contra ele, na guerra contra o adversário, do que em conversa construtiva. Sigilo profissional dos seus ex-colegas de faculdade. E sigilo das suas vítimas.» 

 

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