terça-feira, 25 de junho de 2019

O estar ciente das coisas


O estar introspetivamente ciente não é, em si, um tipo de experiência. Não temos uma experiência da nossa experiência como a que temos de um pôr do Sol. Isto é assim porque o ato de estar interiormente ciente não possui a fenomenologia característica de uma modalidade dos sentidos. A única fenomenologia presente em semelhante consciência provém do objeto de que se está ciente.

Enquanto dormimos não estamos cientes de nada. Mas durante o dia todo acordados estamos permanentemente em relação com o mundo externo ao nosso corpo, sendo a perceção, e dentro desta a visão, a forma mais importante de contacto com o mundo. Por exemplo, os objetos externos com os quais o sujeito da perceção se encontra perceptualmente, são a coisa concreta que através da experiência parece ser de determinada forma. É a esta determinada forma de aparência que se designa por conteúdo da experiência. É importante não se confundir aqui o objeto em si do conteúdo da experiência. Assim, relativamente a qualquer experiência percetual, podemos sempre fazer duas perguntas: qual é o objeto da experiência; qual é o conteúdo da experiência. E esta diferenciação é importante por causa das ilusões e alucinações. Numa alucinação total, realmente não há objeto, mas há conteúdo. Possuir conteúdo é condição da própria existência de uma alucinação. As coisas nem sempre parecem o que são, é o caso da ilusão. O conteúdo de uma ilusão pode ser o de um objeto com características que o objeto concreto na realidade não possui.

Estou à janela com a Maria a conversar enquanto passam pessoas na rua. A certa altura digo: olha, parece que vai ali o Carlos. Usei a palavra “parece” como modo estritamente fenomenológico de representação. O conteúdo das nossas perceções é o modo como as coisas nos parecem, acompanhado, claro, de um ou mais conceitos previamente adquiridos. Há uma relação causal entre o objeto e a experiência. Faz parte do conceito de perceção que a relação percetual implique uma relação causal. Há um tipo de correspondência entre conteúdo e objeto, mediada por uma cadeia causal. Quando usamos uma palavra para nos referirmos a alguma coisa fazemos dessa coisa objeto de u ato representacional. A perceção, por conseguinte, envolve três elementos: o sujeito da perceção; a experiência representacional; e o objeto. De forma semelhante, a referência, envolve três elementos: o falante; a palavra; e objeto. Proferir uma palavra é algo semelhante a vivenciar a experiência percetiva. Mas atenção, percecionamos coisas e não experiências. E seria um erro dizer que as palavras são os objetos imediatos da referência.

Se estar introspetivamente ciente de uma dor é problemático – estar ciente de uma dor é o caso de tomar a dor por objeto – muito mais o é estar ciente de si, daquilo que é referido por self ou eu. Tal como podemos estar cientes da nossa experiência observacional do mundo lá fora, assim podemos estar cientes de nós nos mesmos termos. Tanto quanto podemos conjeturar, não é provável que os animais irracionais tenham esse atributo: “estar ciente de si”. Eles não podem dar-se ao luxo de ter pensamentos acerca dos seus próprios eus.

Bem, este aspeto da experiência do “eu” não é de todo pacífica entre os investigadores, sejam eles filósofos ou cientistas. Pode-se ter a perspetiva de o eu ser identificado com o corpo. De acordo com esta perspetiva estamos cientes do “Eu” através dos mesmos sentidos que nos levam a estar cientes do mundo exterior ao nosso corpo, acrescidos de pelo menos mais dois sentidos exclusivos do corpo: o sentido cinestésico e o sentido propriocetivo. Mas também há quem defenda que a autoconsciência não depende de perceções aparentemente idênticas às do nosso próprio corpo. Por conseguinte, para estes autores a consciência do eu não é constituída pela consciência do corpo.

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