quarta-feira, 19 de junho de 2019

O exercício da incerteza


Há uma prima filosofia que trata da condição humana numa alteridade absoluta. Não é uma alienação através das consolações fáceis da mística ou da religião, nem tão pouco uma vã e oculta tentativa de provar a existência de Deus. Ora, o momento ontológico da partida é um desses momentos em que a prima filosofia é convocada.

Como o mundo só existe pela cognoscibilidade do ego de cada um, sempre que um ego desaparece, é também mais um mundo que desaparece. É na perspetiva existencialista de um Sartre ou e de um Nietzsche que o ego transcendental seja o Nada.

Há um aDeus relacional que outorgamos ao Outro, que nos acolhe na abertura do mundo. E há um aDeus ao mundo, graças a Deus, em relação ao Outro. Não há revelação direta da transcendência divina, como diz Emmanuel Levinas, um discípulo de Husserl. Deus “escreve direito por linhas tortas” ao revelar-se tortuosamente no rosto do Outro.

A nossa inclinação para perguntar o que é a vida, ou o que é o espírito, não constitui a forma mais correta de encontrar a resposta. Por isso não paro de querer saber o que é a vida itself, como diz Damásio. A vida no sentido de um imperativo que mandata todos os seres vivos, sem exceção, na perseverança de nos mantermos vivos a qualquer custo. Vigilância, atenção, memória e muito que mais difícil capaz de descrever um perfume, uma exalação. É certo que ainda hoje aceitamos que as qualidades das sensações que experimentamos na nossa subjetividade intrínseca – aquilo que os filósofos chamam qualia – como a dor, o perfume de uma flor, ou a cor de uma maçã, não são suscetíveis de uma redução matemática, como o não são também a intencionalidade de um pensamento ou a lealdade a um ideal.

 Cada espécie tem os seus próprios mecanismos e estratégias que permitem governar a vida eficazmente. Que em primeiro lugar se pronunciam as emoções e os sentimentos para uma forma acertada de fazer as coisas, e que dá pelo nome de inteligência, é o que Damásio diz, vincando a existência de uma inteligência afetiva, que é o que permite que façamos o que interessa à permanência da própria vida (itself). 

Sempre que um indivíduo morre é um universo completo que se extingue. As dores sofridas, as angústias, a força de vontade todos os fenómenos idiossincráticos e culturais.
Um ateu querer ter fé religiosa, ou alguém querer ser amado, são coisas que não se conseguem pelo querer. E, todavia, há pessoas que fazem tudo o que está ao seu alcance para ter uma crença, pelo conforto espiritual que esta lhe poderá proporcionar. Ninguém adquire crenças deste modo. O bem-estar que uma crença nos pode proporcionar é um efeito colateral. E não é o bem-estar de que podemos desfrutar por termos uma determinada fé, o que nos fará tê-la.

As coisas mais importantes para as nossas vidas, que geralmente passam despercebidas por parecerem irrelevantes à luz da razão, se as perseguirmos, não as obteremos nunca. Quanto mais deliberada e racional for a sua busca, mais obstáculos nos aparecem à frente, por mais lendas que os chamados livros de “autoajuda” nos possam contar.

São absurdas aquelas tiradas grandiloquentes desses “prémios Nobel da Metafísica” que nos querem convencer para aderirmos a certas práticas para alcançar a felicidade. Admitindo que seja algo que exista, é absurdo tentar de maneira premeditada e consciente ser feliz. Em geral, desejamos coisas mais concretas do que a felicidade. Envolvemo-nos em algo mais palpável, e depois, mais como um subproduto, podemos ser visitados por uma experiência algo indefinível, mas sentida, sem a termos convocado.

A ideia da existência de um Eu substancial situado algures dentro da nossa cabeça é uma ideia que hoje em dia, com o progresso das neurociências, e por que não dizer também com o progresso das ideias filosóficas na disciplina da filosofia da mente, não faz qualquer sentido. Podemos, contudo, aceitar que essa ideia seja uma ideia de cariz metafísico, da mesma maneira que é considerada a ideia de Deus ou de Alma. Não existe Deus ou Alma, da mesma maneira que existem homens e vacas, mas sim a ideia de Deus e de Alma. Ora, o mesmo se passa com o Eu, que apenas existe como ideia. É coisa que logicamente jamais poderia ser detetada por uma ciência natural. A ideia de um sujeito substancial, de algum modo distinto dos seus estados vivenciais, está abandonada. Assim, a ideia dualista que coloca de um lado um Eu, ainda que imaterial (espiritual), e do outro um corpo físico (material), considera-se fracassada.

A existência é uma coisa peculiar. Algumas coisas têm-na e outras não. Isto parece um paradoxo, porque o que significa haver coisas que não existem? Vejamos, por exemplo, a ideia de Pai Natal. Ou a ideia de unicórnio. As ideias existem, de facto, acontece apenas que o próprio Pai Natal, como pessoa real, ou o unicórnio como animal natural, não existem. Tal como uma imagem de um unicórnio não pode ser identificada como o unicórnio que representa – uma vez que a imagem do unicórnio existe, mas não aquilo que é representado – também a ideia de uma coisa inexistente não é a mesma coisa que a própria coisa inexistente. Assim, parece que estamos a dizer que certas entidades não mentais carecem de existência. Como é isto possível?

Considerações como estas levaram alguns filósofos a negar que a existência seja uma propriedade real. É um erro lógico encarar a existência como uma propriedade das coisas do mesmo género que a propriedade de ser pesado ou de ser vermelho. O conceito de existência é um conceito universal que pertence a um determinado tipo de conceitos, que são também universais no sentido de não se aplicarem a atributos de particulares, como por exemplo, a ideia de numeroso. Diz-se que na praga dos gafanhotos os gafanhotos eram numerosos, ou abundantes. Mas isso não significa que um gafanhoto é numeroso ou abundante. Significa que o atributo de gafanhoto tem muitos exemplares. Portanto, dizer que eu existo, e que o leitor existe, não estou a dizer que ambos temos essa propriedade peculiar de existir. Cada um de nós é apenas mais um exemplar, ou espécime, de um tipo de espécie a que chamamos espécie humana. A existência é uma propriedade de objetos, dos quais não faz sentido aceitar a inclusão no conceito de objetos o conceito de Deus ou de Eu.

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