No post
anterior recorri ao conceito de superveniência para dizer que a “mente é uma superveniência
do corpo”. Com este conceito defende-se que os fenómenos mentais são uma
resultante dos fenómenos ao nível físico e fisiológico e, portanto, não devem
ser considerados como uma realidade ontologicamente distinta da realidade que
consensualmente nos meios científicos é a do mundo físico. Mas como essa
realidade comporta um aspeto relacional, este conceito não significa que essa
relação subsuma o sentido de causalidade. As causas relativamente aos fenómenos
mentais são partilhadas entre o corpo (o cérebro, mas não apenas o cérebro) e o
ambiente (predominantemente o meio social e cultural). Há situações em que as
causas são predominantemente imputadas ao meio externo; e há outras situações
que são quase exclusivamente imputáveis ao cérebro. Um outro ponto importante
no conceito de relação é comportar a questão da liberdade, uma
vez que as relações entre os corpos vivos e o meio ambiente não está presa a
qualquer tipo de determinismo. O mundo relacional tem muito de
aleatório, o que o liberta de qualquer determinismo rígido e redutor. E é a
este nível que podemos encaixar a liberdade de manobra e o tão discutido livre-arbítrio.
Reconhece-se
que aquilo a que chamamos mente apresenta um tipo de propriedades
que dificilmente conseguimos encaixar no tipo de propriedades físicas que um
corpo ou um cérebro exibe. Apesar de num certo sentido o cérebro ser um órgão
que se equivale aos outros órgãos do corpo, como, por exemplo, o coração ou o
fígado, analisando bem a questão verifica-se que enquanto nos outros órgãos dos
seus processos biológicos não resulta nada de diferente do que é físico ou
biológico, os processos biológicos do cérebro dão origem a estados e/ou eventos
mentais que não podem ser vistos como produtos do mesmo tipo ou nível dos
produtos eminentemente biológicos. Assim, é mais correto falar de correlatos
neurais da consciência do que em processos causais da consciência.
Numa
linguagem filosófica mais técnica isto quer dizer que, ao nível da realidade
ontológica há uma só coisa. Mas ao nível da realidade fenomenológica
encontramos propriedades de natureza diferente. É a existência dos qualia,
no vocabulário dos filósofos de língua inglesa, como elementos intrínsecos à
fenomenologia da consciência. Essa é a modalidade da nossa experiência com o
mundo: cores, sabores, cheiros, melodias . . . e connosco próprios: emoções,
dores e outras sensações. O facto de estas qualidades escaparem ao método
científico – porque o método científico é um método na perspetiva de terceira
pessoa, e os qualia são do domínio exclusivo da primeira pessoa – não
significa que pura e simplesmente não existem. Em todo o caso, pensamentos
abstratos ou raciocínios e cálculos podem ocorrer sem este caráter.
Os
estados de consciência são qualitativos, no sentido em que, para qualquer
estado consciente, tal como uma sensação de dor, ou um estado de pânico, há
qualquer coisa qualitativa que não sabemos como um processo cerebral, que é um
fenómeno físico objetivo, observável por qualquer um do lado de fora, ou na
perspetiva de terceira pessoa, pode causar algo tão peculiar como estados
qualitativos subjetivos de consciência. Parece serem inconciliáveis estes dois
tipos de propriedades distintas: propriedades neurofisiológicas do cérebro e
propriedades subjetivas da mente. Queiramos ou não temos de aceitar este tipo
de dualismo de propriedades, ainda que a sua origem ontológica, ou o acontecimento
ontológico, seja só uma coisa e não duas.
As
características específicas do mental como crenças, desejos, propósitos, ou
intenções não se coadunam com as características do mundo físico regidas por
leis físicas redutoras. Assim, para explicarmos conceitos comumente aceites
como liberdade, vontade e sentido de futuro e de propósitos, temos de recorrer
a outro tipo de explicações com um caráter holístico. Reconhece-se que os
fenómenos mentais possuem propriedades emergentes, diferentes das propriedades
dos componentes mais elementares de que emergem. Ora, isto é muito diferente do
que se passa no mundo físico, onde as explicações científicas se baseiam em
leis causais determinísticas.
Há,
na verdade, uma fenomenologia da mente que não pode ser ignorada. Uma das
características da mente, e sobretudo a mente humana, é o estado de consciência
que suporta aquilo que os filósofos designam por intencionalidade: a
consciência é sempre acerca de qualquer coisa, ou seja, o objeto da
consciência. E a consciência é um atributo relacional do ser completo, a
pessoa, e não um atributo do cérebro. Sendo a intencionalidade “acerca de
algo”, ou “visando algo”, os fenómenos mentais criam o seu próprio objeto,
esteja ele no mundo real ou não. Quando temos uma crença, ou um desejo, a nossa
mente tem algo em vista nessa crença ou nesse desejo. É algo que por si mesmo
já é um objeto mesmo que a crença não corresponda a um facto verdadeiro, ou o
desejo não tenha um referente real.
Para
melhor compreendermos como é que os cérebros funcionam, as explicações
neurobiológicas ficam muito aquém do que realmente se passa com a mente.
Porque, evidentemente, a mente e a consciência têm a sua especificidade
própria. E o segredo deve residir no facto de a mente na sua plenitude residir
no meio sociocultural. Efetivamente as mentes das pessoas fazem parte dos
elementos culturais das sociedades em que vivem. E não tendo de ser a última
palavra – a teoria da causalidade fechada ao nível físico – podemos explicar a
mente com uma visão do mundo bastante diferente. São certos conceitos – como
relação, margem de manobra, indeterminismo quântico, evolução, teleologia – que
permitem aos biólogos explicar a vida, um conjunto de interações dinâmicas que
são geradas ao nível dos organismos vivos. Não existe nenhuma evidência de que
as atuais teorias físicas confirmem o determinismo absoluto; pelo contrário, a
física quântica veio contrariar essa conceção. Apesar de as determinações
físicas continuarem a exercer-se, a emergência da mente acarreta consigo novas
formas e modos de existência, que por sua vez podem exercer sobredeterminações
sobre os níveis físicos da neurobiologia.
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