sexta-feira, 28 de junho de 2019

Mecânica quântica e consciência em Roger Penrose


Desde a publicação do livro “A nova mente do imperador”, Penrose tem mantido uma grande atividade, quer em publicações, quer em conferências, especulando as ligações entre a física fundamental e a consciência humana. Ele argumenta que as leis conhecidas da física clássica são insuficientes para explicar o fenómeno da consciência. Penrose propõe a nova física, dado os requisitos específicos da consciência, como ponte entre mecânica clássica e quântica (o que ele chama de gravidade quântica correta). Inspirando-se em Turing, demonstra que um sistema pode ser determinístico sem ser algorítmico.

Penrose acredita que tais processos determinísticos ainda não-algorítmicos podem entrar em jogo na quebra de onda (segundo a teoria da mecânica quântica), e pode ser aproveitado pelo cérebro. Ele argumenta contra o ponto de vista de que os processos racionais da mente são completamente algorítmicos. Isso contrasta com o que hoje se sabe dos progressos da Inteligência Artificial. A consciência transcende a lógica formal.

Um dos seus argumentos - que tem sido criticado por matemáticos, cientistas de informática e filósofos - é o das implicações do teorema da incompletude de Gödel para as teorias computacionais da inteligência humana. Há um consenso entre os especialistas nesses campos de que o argumento falha, embora diferentes autores podem escolher diferentes aspectos do argumento para atacar Penrose.

Um dos principais proponentes da inteligência artificial, Marvin Minsky, foi particularmente crítico, afirmando que Penrose "tenta mostrar, capítulo após capítulo, que o pensamento humano não pode ser baseado em qualquer princípio científico conhecido”. A posição de Minsky é exatamente o oposto – ele acreditava que os seres humanos são, de facto, máquinas, cujo funcionamento, embora complexo, é totalmente explicável pela física atual.

Penrose tem-se juntado a outros cientistas, como é o caso de Stuart Hameroff, para reiterar que a consciência resulta de efeitos da gravidade quântica em microtúbulos. No entanto, outros físicos não se cansam de o criticar demonstrando que ele está errado.

Hameroff, em conferências falando da biologia quântica, tem dado uma visão geral da pesquisa atual na área e respondeu às críticas acerca do lugar da consciência dentro do universo.

As enzimas podem usar o tunelamento para transferir eletrões a longas distâncias. É possível que a arquitetura quaternária de proteínas possa ter evoluído para possibilitar o emaranhamento quântico sustentado e a coerência. Mais especificamente, eles podem aumentar a percentagem da reação que ocorre através do tunelamento de hidrogénio. Tunelamento refere-se à capacidade de uma pequena partícula de massa para viajar através de barreiras energéticas. Essa habilidade é devida ao princípio da complementaridade: certos objetos têm pares de propriedades que não podem ser medidos separadamente sem alterar o resultado da medição. Os eletrões têm as propriedades da onda e da partícula, e assim, podem passar através das barreiras físicas como uma onda sem violar as leis da física. Estudos mostram que as transferências eletrónicas de longa distância entre centros redox através de Tunelamento Quântico desempenha papéis importantes na atividade enzimática da fotossíntese e respiração celular.

Por exemplo, estudos mostram que o tunelamento de eletrões de longo alcance na ordem de 15-30 Å desempenha um papel em reações redox em enzimas de respiração celular. Sem Tunelamento Quântico, os organismos não seriam capazes de converter energia rapidamente o suficiente para sustentar o crescimento. Mesmo que existam grandes separações entre sites redox dentro de enzimas, os eletrões são bem sucedidos na transferência. Isso sugere a capacidade dos eletrões para o túnel em condições fisiológicas. Contudo, é necessária mais investigação para determinar se este tunelamento específico também é coerente.

Phil Tetlow, apesar de apoiar as visões de Penrose, reconhece que as ideias de Penrose sobre o processo de pensamento humano são, atualmente, uma visão minoritária nos círculos científicos, quanto à natureza do processo quântico na consciência. Em Janeiro 2014, Hameroff e Penrose, alegaram que uma descoberta de vibrações quânticas em microtúbulos por Anirban Bandyopadhyay do Instituto Nacional de Ciência dos Materiais no Japão, confirmou a hipótese deles. Uma versão revista e atualizada da teoria foi publicada, juntamente com comentários críticos e debate, na edição de março de 2014 de Physics of Life Reviews.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

A questão da superveniência


No post anterior recorri ao conceito de superveniência para dizer que a “mente é uma superveniência do corpo”. Com este conceito defende-se que os fenómenos mentais são uma resultante dos fenómenos ao nível físico e fisiológico e, portanto, não devem ser considerados como uma realidade ontologicamente distinta da realidade que consensualmente nos meios científicos é a do mundo físico. Mas como essa realidade comporta um aspeto relacional, este conceito não significa que essa relação subsuma o sentido de causalidade. As causas relativamente aos fenómenos mentais são partilhadas entre o corpo (o cérebro, mas não apenas o cérebro) e o ambiente (predominantemente o meio social e cultural). Há situações em que as causas são predominantemente imputadas ao meio externo; e há outras situações que são quase exclusivamente imputáveis ao cérebro. Um outro ponto importante no conceito de relação é comportar a questão da liberdade, uma vez que as relações entre os corpos vivos e o meio ambiente não está presa a qualquer tipo de determinismo. O mundo relacional tem muito de aleatório, o que o liberta de qualquer determinismo rígido e redutor. E é a este nível que podemos encaixar a liberdade de manobra e o tão discutido livre-arbítrio.

Reconhece-se que aquilo a que chamamos mente apresenta um tipo de propriedades que dificilmente conseguimos encaixar no tipo de propriedades físicas que um corpo ou um cérebro exibe. Apesar de num certo sentido o cérebro ser um órgão que se equivale aos outros órgãos do corpo, como, por exemplo, o coração ou o fígado, analisando bem a questão verifica-se que enquanto nos outros órgãos dos seus processos biológicos não resulta nada de diferente do que é físico ou biológico, os processos biológicos do cérebro dão origem a estados e/ou eventos mentais que não podem ser vistos como produtos do mesmo tipo ou nível dos produtos eminentemente biológicos. Assim, é mais correto falar de correlatos neurais da consciência do que em processos causais da consciência.

Numa linguagem filosófica mais técnica isto quer dizer que, ao nível da realidade ontológica há uma só coisa. Mas ao nível da realidade fenomenológica encontramos propriedades de natureza diferente. É a existência dos qualia, no vocabulário dos filósofos de língua inglesa, como elementos intrínsecos à fenomenologia da consciência. Essa é a modalidade da nossa experiência com o mundo: cores, sabores, cheiros, melodias . . . e connosco próprios: emoções, dores e outras sensações. O facto de estas qualidades escaparem ao método científico – porque o método científico é um método na perspetiva de terceira pessoa, e os qualia são do domínio exclusivo da primeira pessoa – não significa que pura e simplesmente não existem. Em todo o caso, pensamentos abstratos ou raciocínios e cálculos podem ocorrer sem este caráter.

Os estados de consciência são qualitativos, no sentido em que, para qualquer estado consciente, tal como uma sensação de dor, ou um estado de pânico, há qualquer coisa qualitativa que não sabemos como um processo cerebral, que é um fenómeno físico objetivo, observável por qualquer um do lado de fora, ou na perspetiva de terceira pessoa, pode causar algo tão peculiar como estados qualitativos subjetivos de consciência. Parece serem inconciliáveis estes dois tipos de propriedades distintas: propriedades neurofisiológicas do cérebro e propriedades subjetivas da mente. Queiramos ou não temos de aceitar este tipo de dualismo de propriedades, ainda que a sua origem ontológica, ou o acontecimento ontológico, seja só uma coisa e não duas.

As características específicas do mental como crenças, desejos, propósitos, ou intenções não se coadunam com as características do mundo físico regidas por leis físicas redutoras. Assim, para explicarmos conceitos comumente aceites como liberdade, vontade e sentido de futuro e de propósitos, temos de recorrer a outro tipo de explicações com um caráter holístico. Reconhece-se que os fenómenos mentais possuem propriedades emergentes, diferentes das propriedades dos componentes mais elementares de que emergem. Ora, isto é muito diferente do que se passa no mundo físico, onde as explicações científicas se baseiam em leis causais determinísticas.

Há, na verdade, uma fenomenologia da mente que não pode ser ignorada. Uma das características da mente, e sobretudo a mente humana, é o estado de consciência que suporta aquilo que os filósofos designam por intencionalidade: a consciência é sempre acerca de qualquer coisa, ou seja, o objeto da consciência. E a consciência é um atributo relacional do ser completo, a pessoa, e não um atributo do cérebro. Sendo a intencionalidade “acerca de algo”, ou “visando algo”, os fenómenos mentais criam o seu próprio objeto, esteja ele no mundo real ou não. Quando temos uma crença, ou um desejo, a nossa mente tem algo em vista nessa crença ou nesse desejo. É algo que por si mesmo já é um objeto mesmo que a crença não corresponda a um facto verdadeiro, ou o desejo não tenha um referente real.

Para melhor compreendermos como é que os cérebros funcionam, as explicações neurobiológicas ficam muito aquém do que realmente se passa com a mente. Porque, evidentemente, a mente e a consciência têm a sua especificidade própria. E o segredo deve residir no facto de a mente na sua plenitude residir no meio sociocultural. Efetivamente as mentes das pessoas fazem parte dos elementos culturais das sociedades em que vivem. E não tendo de ser a última palavra – a teoria da causalidade fechada ao nível físico – podemos explicar a mente com uma visão do mundo bastante diferente. São certos conceitos – como relação, margem de manobra, indeterminismo quântico, evolução, teleologia – que permitem aos biólogos explicar a vida, um conjunto de interações dinâmicas que são geradas ao nível dos organismos vivos. Não existe nenhuma evidência de que as atuais teorias físicas confirmem o determinismo absoluto; pelo contrário, a física quântica veio contrariar essa conceção. Apesar de as determinações físicas continuarem a exercer-se, a emergência da mente acarreta consigo novas formas e modos de existência, que por sua vez podem exercer sobredeterminações sobre os níveis físicos da neurobiologia.


Comportamento: Crenças e Desejos


Os filósofos analíticos, sobretudo os da corrente anglo-americana, gostam de dignificar estes dois pilares da vida mental com o rótulo “atitudes proposicionais”, porque se trata de ter uma atitude (comportamento) para com uma proposição. Uma proposição é o conteúdo verdadeiro ou falso expresso por uma afirmação. Usamos frases para exprimir proposições. Mas nem toda a frase exprime uma proposição: ordens, perguntas, conselhos só em casos especiais exprimem proposições. As proposições especificam estados de coisas, e as crenças e os desejos são atitudes que temos para com estados de coisas.

Uma coisa é certa: os nossos comportamentos são atitudes dos nossos corpos que se correlacionam com os estados cerebrais. Dos estados cerebrais releva a mente, o conceito difuso da nossa linguagem onde são enquadradas as atitudes proposicionais: acreditar, raciocinar, desejar, esperar, lamentar. . . A vida mental é sobre isto. As atitudes proposicionais constituem as razões da ação, as forças que moldam o comportamento humano. São o que nos faz agir. Temos de rejeitar a suposição de que as propriedades mentais são independentes das propriedades corporais. Pelo contrário, o mental é determinado pela nossa parte física. Em jargão filosófico a mente é uma superveniência do corpo. Este conceito tem o seguinte sentido: o que é da Química será sobreveniente ao que é da Física; o que é da Biologia será sobreveniente ao que é da Química; e no mesmo sentido o que é da Mente, da consciência, será sobreveniente à Neurofisiologia. Mas o facto de as propriedades mentais sobrevirem da matéria física do cérebro não implica que o cérebro tenha de ter propriedades da mesma natureza. E, dentro do mesmo raciocínio, a superveniência não implica imediatamente que os atributos mentais tenham uma natureza física. De certo modo, o mesmo critério se poderia aplicar à vida. O fenómeno da vida, esta propriedade, também é sobreveniente em relação ao físico.

É assim razoável a expectativa de podermos afirmar que as propriedades físicas determinam as propriedades mentais. É como acontece, independentemente de não sabermos explicar como acontece. À luz do que já sabemos através dos progressos não apenas da ciência, mas também dos progressos da filosofia na nossa maneira de pensar. Mas a verdade é que a ciência até agora ainda não consegue elucidar como o mental se manifesta em certas formas complexas de matéria. Neste ponto a comunidade científico-filosófica divide-se em otimistas e pessimistas. Os otimistas acreditam que ainda não sabemos, mas um dia saberemos. Até se admiram como os físicos de partículas, que dominam a teoria standard da Física, ao desenvolverem as suas teorias acerca da matéria, nunca tenham tido a ousadia de questionar os poderes causais das partículas sobre a emergência daquilo a que chamamos mente. Os pessimistas, por seu lado, acreditam que, enquanto o ser humano estiver limitado ao seu cérebro para conhecer, nunca se saberá.

Mas regressemos ao tópico das proposições, frases e pensamentos. Uma frase é uma sequência de palavras, formada segundo as regras sintáticas de uma língua. Mas uma frase tanto tem propriedades semânticas como sintáticas: tanto as palavras como a frase completa têm significado. Os filósofos têm tido tendência para se centrar nas propriedades semânticas das frases indicativas, em particular no facto de serem verdadeiras ou falsas. Aos significados de tais frases têm chamado “proposições”, e têm ligado a noção de proposição às condições de verdade da frase associada. O termo “proposição” é por vezes assimilado à própria frase; por vezes ao significado linguístico de uma frase; por vezes “ao que é dito”; por vezes aos conteúdos das crenças e de outras atitudes proposicionais. Mas seja como for que se definam, as proposições têm de ter duas características: a capacidade para serem verdadeiras ou falsas; e estrutura composicional (serem compostas de elementos que determinam as suas propriedades semânticas). Uma frase pode ser destituída de significado, e por isso nada dizer, mas ser ainda uma frase.

Não são as frases, mas antes as afirmações, que são verdadeiras ou falsas. Para Frege, uma proposição é um “pensamento”, que é simultaneamente o significado cognitivo expresso por uma frase e o conteúdo de uma atitude proposicional como a crença ou o desejo. O pensamento é o que dá sentido à frase. Os pensamentos distinguem-se segundo o seguinte princípio: se for racionalmente possível acreditar que p e não acreditar que q, então o pensamento de que p e o pensamento de que q são diferentes. Uma perspetiva alternativa das proposições como entidades é que são coleções de entidades propriamente ditas que constituem “factos” ou “estados de coisas”.

Em suma, sabemos que há disposições cerebrais por trás dos comportamentos que no nosso vocabulário conceptual são do domínio mental. É por isso que dizemos, por exemplo, que uma pessoa retira a mão da água a ferver por causa das dores que não aguenta. Ainda que as dores possam ser redutíveis a uma explicação fisicalista – as dores são sinais emitidos por disposições específicas no cérebro para salvaguarda do equilíbrio vital do ser vivo – a descrição funcional, apesar de tudo, não abrange completamente o caráter fenomenológico da dor enquanto aspeto subjetivo de um fenómeno que se se passa no interior de um corpo. O caráter fenomenológico dos estados interiores de cada indivíduo, como é o caso de todas as sensações, tem um nível de apresentação que as atitudes proposicionais não têm, que é o nível de perspetiva na primeira pessoa.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O estar ciente das coisas


O estar introspetivamente ciente não é, em si, um tipo de experiência. Não temos uma experiência da nossa experiência como a que temos de um pôr do Sol. Isto é assim porque o ato de estar interiormente ciente não possui a fenomenologia característica de uma modalidade dos sentidos. A única fenomenologia presente em semelhante consciência provém do objeto de que se está ciente.

Enquanto dormimos não estamos cientes de nada. Mas durante o dia todo acordados estamos permanentemente em relação com o mundo externo ao nosso corpo, sendo a perceção, e dentro desta a visão, a forma mais importante de contacto com o mundo. Por exemplo, os objetos externos com os quais o sujeito da perceção se encontra perceptualmente, são a coisa concreta que através da experiência parece ser de determinada forma. É a esta determinada forma de aparência que se designa por conteúdo da experiência. É importante não se confundir aqui o objeto em si do conteúdo da experiência. Assim, relativamente a qualquer experiência percetual, podemos sempre fazer duas perguntas: qual é o objeto da experiência; qual é o conteúdo da experiência. E esta diferenciação é importante por causa das ilusões e alucinações. Numa alucinação total, realmente não há objeto, mas há conteúdo. Possuir conteúdo é condição da própria existência de uma alucinação. As coisas nem sempre parecem o que são, é o caso da ilusão. O conteúdo de uma ilusão pode ser o de um objeto com características que o objeto concreto na realidade não possui.

Estou à janela com a Maria a conversar enquanto passam pessoas na rua. A certa altura digo: olha, parece que vai ali o Carlos. Usei a palavra “parece” como modo estritamente fenomenológico de representação. O conteúdo das nossas perceções é o modo como as coisas nos parecem, acompanhado, claro, de um ou mais conceitos previamente adquiridos. Há uma relação causal entre o objeto e a experiência. Faz parte do conceito de perceção que a relação percetual implique uma relação causal. Há um tipo de correspondência entre conteúdo e objeto, mediada por uma cadeia causal. Quando usamos uma palavra para nos referirmos a alguma coisa fazemos dessa coisa objeto de u ato representacional. A perceção, por conseguinte, envolve três elementos: o sujeito da perceção; a experiência representacional; e o objeto. De forma semelhante, a referência, envolve três elementos: o falante; a palavra; e objeto. Proferir uma palavra é algo semelhante a vivenciar a experiência percetiva. Mas atenção, percecionamos coisas e não experiências. E seria um erro dizer que as palavras são os objetos imediatos da referência.

Se estar introspetivamente ciente de uma dor é problemático – estar ciente de uma dor é o caso de tomar a dor por objeto – muito mais o é estar ciente de si, daquilo que é referido por self ou eu. Tal como podemos estar cientes da nossa experiência observacional do mundo lá fora, assim podemos estar cientes de nós nos mesmos termos. Tanto quanto podemos conjeturar, não é provável que os animais irracionais tenham esse atributo: “estar ciente de si”. Eles não podem dar-se ao luxo de ter pensamentos acerca dos seus próprios eus.

Bem, este aspeto da experiência do “eu” não é de todo pacífica entre os investigadores, sejam eles filósofos ou cientistas. Pode-se ter a perspetiva de o eu ser identificado com o corpo. De acordo com esta perspetiva estamos cientes do “Eu” através dos mesmos sentidos que nos levam a estar cientes do mundo exterior ao nosso corpo, acrescidos de pelo menos mais dois sentidos exclusivos do corpo: o sentido cinestésico e o sentido propriocetivo. Mas também há quem defenda que a autoconsciência não depende de perceções aparentemente idênticas às do nosso próprio corpo. Por conseguinte, para estes autores a consciência do eu não é constituída pela consciência do corpo.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Os caminhos da tolerância


O século das Luzes teve importância que teve para os europeus porque fechou a época das conquistas, da chacina e das pilhagens nas outras partes do mundo. Período sombrio esse, para os patriotas de um mundo a que os europeus chamaram terceiro. É por isso que agora ninguém gosta da palavra “Descobrimentos”, porque os continentes que os europeus dizem que descobriram, não descobriram coisa nenhuma, porque esses continentes eram conhecidos desde tempos imemoriais pelos que sempre lá viveram.

O Iluminismo deu início à época que, para todos os efeitos, está a chegar ao fim. Depressa as coisas se complicaram quando a ciência iluminista deixou de se poder conformar com as explicações da tradição bíblica. A encarnação de Deus – o dogma da transubstanciação – e o mistério da Trindade ultrapassavam a sua capacidade de compreensão. O mesmo se passava com os milagres. A par deste aspeto histórico-religioso e histórico-eclesiástico, o Iluminismo significou simultaneamente um movimento social, que impeliu à emancipação da burguesia. O édito de tolerância no tempo de José II, do Sacro Império Romano Germânico, promulgava publicamente o que amadurecera como fruto do Iluminismo católico, que lenta e ininterruptamente se difundira nos territórios dos Habsburgo numa primeira fase como um problema de religião.

Coube à literatura desbravar o caminho para a revelação da dualidade do Outro. São exemplares as obras de um Daniel Defoe, Jonathan Swift, Rousseau, Voltaire, Fontenelle, Goethe ou de um Herder: um ser humano como qualquer um de nós, portador de características raciais, de cultura, de crenças e convicções, com dias bons que trazem as alegrias e satisfação, ou dias menos bons que trazem a fome, a dor e a tristeza.

O tipo de tolerância que se exige a uma sociedade civil é aquela que reconhece a cada pessoa o direito de decidir por ela própria o que escolher, e formar as suas próprias opiniões. É ilegítima qualquer tentativa no sentido de coagir alguém pelas suas ideias ou opiniões. Mas isso não significa que não devamos tentar procurar todos os meios de persuasão legítimos, por exemplo, para fazer com que uma pessoa deixe de ser racista. Ao indivíduo tolerante cumpre reconhecer o direito que assiste a outra pessoa discordar de si. Todavia, o indivíduo tolerante não está obrigado a aceitar o convívio com o intolerante, e obviamente também não com o racista.

No reino do pensamento, isso corresponde aos limites da simples razão. A tolerância não é a expressão da debilidade, mas da coragem. Não significa o reconhecimento igual para todas as formas de pensamento. O que é tolerado limita-se à esfera da subjetividade de cada um, da sua interioridade psíquica, e não ao exercício prático de ideias que colidam com determinados valores morais.
Focando agora a tolerância no âmbito das religiões, o diálogo inter-religioso não se limita apenas às grandes religiões universais, mas também ao diálogo entre estas religiões e o ateísmo. E o apelo à tolerância aplica-se obviamente também aos ateístas científicos. Conseguirá a ideia de tolerância sair-se bem no seio da ciência, que de vez em quando se endurece para fazer o frete a um certo tipo de capitalismo cujos propósitos é o abominável domínio da Terra.

As relações entre os homens por vezes perdem a sinceridade e a confiança recíproca. Por isso a tolerância está em ação em tudo, não só enquanto virtude de convívio que nos é inculcada, mas como fundamento da disposição anímica humana, que conta com a alteridade do Outro. Ora, nestes tempos da técnica da comunicação, que encurta as distâncias desenfreadamente, em vez de gerar diálogos compassivos e consensuais, gera confrontos que levam à intolerância. Vejam-se as tendências separatistas nos países com estados configurados há séculos, aparentemente estáveis. Uns por causa da língua, outros por causa da religião, e ainda outros por fatores económicos que têm a ver com catástrofes ecológicas e ambientais.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Filosofia – para que serve?


No artigo que precede este, a parte final ocupou-se de certa maneira do problema da existência. É obviamente fundamental, mas o que quer dizer exatamente? Publico este artigo quase numa atitude provocatória, porque estamos num tempo em que as autoridades políticas, e certos círculos da elite cultural “bem-pensante” que tem influência no poder político, defendem que o mais importante é a ciência, a filosofia e a história pode esperar porque não serve para nada, principalmente no currículo das escolas secundárias e até universitárias. Ora, a existência não é um tópico que a ciência possa alguma vez vir a ser capaz de dar conta. É uma questão puramente filosófica, simples, mas surpreendentemente confusa. Pensar sobre ela faz-nos ver que mesmo os nossos conceitos mais básicos não são claros para nós. É um erro pensar que todas as questões genuínas são científicas ou empíricas. Na verdade, a própria ciência levanta problemas filosóficos.

Hoje, a maior parte dos jovens estudantes universitários, tirando aquele número reduzido de jovens, a que os outros chamam “refugo” a frequentar os cursos de História e Filosofia, têm ouvidos moucos no que diz respeito a questões filosóficas. E esse preconceito que vem já de trás, dos liceus, é ampliado pela formação que recebem por parte dos seus professores universitários das áreas ditas “duras”, que lhes dizem que as únicas verdadeiras questões são aquelas que podem ser resolvidas através de experiências controladas. O resultado disso é, pura e simplesmente, a sua debilidade para trabalharem questões conceptuais mais complexas e abstratas.

Não significa que os cientistas das áreas matemáticas não são suficientemente inteligentes para continuar a descobrir coisas que ainda não sabemos. Nem, por outro lado, que se prestassem mais atenção à Filosofia, eles iriam poder dar todas as respostas em questão de dias. O que está em causa é que as perguntas da Filosofia são mais profundas do que as perguntas da ciência pura e dura, ou a ciência por trás da técnica, que diz respeito apenas ao mundo empírico vulgar da observação sensorial.

Wittgenstein defendeu que os problemas filosóficos surgem da incompreensão da nossa própria linguagem. Muitas vezes usámo-la de uma forma que não pode ser sustentada. A única maneira de perscrutarmos outras realidades, ou mesmo certos momentos da realidade comum, é através de estados de consciência alterados que por redundância é habitual chamar misticismo. E efetivamente Wittgenstein também teve o seu momento místico.
Bem, com menos misticismo os chamados filósofos da linguagem comum e os positivistas lógicos, um grupo de cientistas de inclinações filosóficas a trabalhar sobretudo em Viena nos anosa 30 do século XX, defenderam que a Filosofia não passava de um conjunto de pseudoproblemas sem sentido. Dividiram as frases com sentido em duas classes: as que poderiam ser verificadas através da observação e de experiências – como as frases da Química e da Física – e as que eram meras tautologias. Coisas como, por exemplo: o livre arbítrio, ou a existência, ou a verdade, não pertencem a qualquer dessas categorias, então não podem ter significado. E não tendo significado, devem ser banidas do discurso intelectual respeitável. A inteligência humana não evoluiu por seleção natural para resolver problemas filosóficos, mas sim para garantir uma maior sobrevivência individual e persistência da espécie. E essa era então outra razão para afirmar o caráter intratável da Filosofia em geral. Os problemas filosóficos seriam de uma natureza incompatível com o nosso modo de apreender a realidade do mundo que conta para nós.

A experiência vivida, tal como a sentimos quando a temos, não se decompões em processos físicos elementares. É por isso que não temos acesso direto ao funcionamento do nosso cérebro quando estamos a pensar, ou a fazer qualquer outra coisa. É o problema da mente consciente. A consciência não é, claramente, “uma fatia grossa de tecido cerebral”. Claro que esta é precisamente a razão pela qual o dualista acha que a mente é uma coisa separada do cérebro.

A essência do problema da consciência, ou o problema mente-corpo, é o salto inexplicável, a passagem do cérebro à mente, ou à consciência, como se andássemos à procura da ponte que suporta a passagem. E não encontramos ponte nenhuma. Assim, suspeitamos que os estados conscientes não podem ser explicados em termos dos processos neuronais de que emanam.

A realidade pode obviamente ultrapassar, de várias formas, a nossa capacidade para a conhecer. Mas apesar disso a humanidade não desiste, e é através da Filosofia que tenta compensar a frustração pelo esforço intelectual perdido. Convencidos de que precisamos apenas de prestar atenção ao nosso vocabulário habitual, para que vejamos que não há nenhum problema em “fazer sair a mosca da garrafa”.

As crianças fazem perguntas, que apesar de serem espontâneas e parecer que vieram do nada, a verdade é que são as verdadeiras perguntas filosóficas que espantam os pais e os deixam de certo modo frustrados, porque não abem como responder. Os conceitos extremamente gerais são aqueles que surgem de súbito e em todo o lado em que há um jovem ser humano. São conceitos que nenhuma disciplina científica nos pode dizer o que eles envolvem, porque quando os cientistas dessas disciplinas partem para o seu labor já dão como pressupostos e adquiridos um número infindável de conceitos que ainda ocupam o trabalho diário e fastidioso dos filósofos. A maior parte dos cientistas das ciências físicas, biológicas e económico-financeiras, não conseguem fazer o seu trabalho sem usarem a matemática. Portanto, a ferramenta dos números. Mas quanto à questão: de onde vieram os números? A sua atitude é olharem para nós com o sobrolho carregado num ar de espanto ou de indiferença. Será que são, como Platão pensava, entidades objetivas e independentes da mente que existem fora do espaço e do tempo? Nada disto pode ser dado numa aula normal de Matemática. Embora isso não signifique que os nossos professores de Matemática não se preocupem com as ideias filosóficas acerca destas questões.

O exercício da incerteza


Há uma prima filosofia que trata da condição humana numa alteridade absoluta. Não é uma alienação através das consolações fáceis da mística ou da religião, nem tão pouco uma vã e oculta tentativa de provar a existência de Deus. Ora, o momento ontológico da partida é um desses momentos em que a prima filosofia é convocada.

Como o mundo só existe pela cognoscibilidade do ego de cada um, sempre que um ego desaparece, é também mais um mundo que desaparece. É na perspetiva existencialista de um Sartre ou e de um Nietzsche que o ego transcendental seja o Nada.

Há um aDeus relacional que outorgamos ao Outro, que nos acolhe na abertura do mundo. E há um aDeus ao mundo, graças a Deus, em relação ao Outro. Não há revelação direta da transcendência divina, como diz Emmanuel Levinas, um discípulo de Husserl. Deus “escreve direito por linhas tortas” ao revelar-se tortuosamente no rosto do Outro.

A nossa inclinação para perguntar o que é a vida, ou o que é o espírito, não constitui a forma mais correta de encontrar a resposta. Por isso não paro de querer saber o que é a vida itself, como diz Damásio. A vida no sentido de um imperativo que mandata todos os seres vivos, sem exceção, na perseverança de nos mantermos vivos a qualquer custo. Vigilância, atenção, memória e muito que mais difícil capaz de descrever um perfume, uma exalação. É certo que ainda hoje aceitamos que as qualidades das sensações que experimentamos na nossa subjetividade intrínseca – aquilo que os filósofos chamam qualia – como a dor, o perfume de uma flor, ou a cor de uma maçã, não são suscetíveis de uma redução matemática, como o não são também a intencionalidade de um pensamento ou a lealdade a um ideal.

 Cada espécie tem os seus próprios mecanismos e estratégias que permitem governar a vida eficazmente. Que em primeiro lugar se pronunciam as emoções e os sentimentos para uma forma acertada de fazer as coisas, e que dá pelo nome de inteligência, é o que Damásio diz, vincando a existência de uma inteligência afetiva, que é o que permite que façamos o que interessa à permanência da própria vida (itself). 

Sempre que um indivíduo morre é um universo completo que se extingue. As dores sofridas, as angústias, a força de vontade todos os fenómenos idiossincráticos e culturais.
Um ateu querer ter fé religiosa, ou alguém querer ser amado, são coisas que não se conseguem pelo querer. E, todavia, há pessoas que fazem tudo o que está ao seu alcance para ter uma crença, pelo conforto espiritual que esta lhe poderá proporcionar. Ninguém adquire crenças deste modo. O bem-estar que uma crença nos pode proporcionar é um efeito colateral. E não é o bem-estar de que podemos desfrutar por termos uma determinada fé, o que nos fará tê-la.

As coisas mais importantes para as nossas vidas, que geralmente passam despercebidas por parecerem irrelevantes à luz da razão, se as perseguirmos, não as obteremos nunca. Quanto mais deliberada e racional for a sua busca, mais obstáculos nos aparecem à frente, por mais lendas que os chamados livros de “autoajuda” nos possam contar.

São absurdas aquelas tiradas grandiloquentes desses “prémios Nobel da Metafísica” que nos querem convencer para aderirmos a certas práticas para alcançar a felicidade. Admitindo que seja algo que exista, é absurdo tentar de maneira premeditada e consciente ser feliz. Em geral, desejamos coisas mais concretas do que a felicidade. Envolvemo-nos em algo mais palpável, e depois, mais como um subproduto, podemos ser visitados por uma experiência algo indefinível, mas sentida, sem a termos convocado.

A ideia da existência de um Eu substancial situado algures dentro da nossa cabeça é uma ideia que hoje em dia, com o progresso das neurociências, e por que não dizer também com o progresso das ideias filosóficas na disciplina da filosofia da mente, não faz qualquer sentido. Podemos, contudo, aceitar que essa ideia seja uma ideia de cariz metafísico, da mesma maneira que é considerada a ideia de Deus ou de Alma. Não existe Deus ou Alma, da mesma maneira que existem homens e vacas, mas sim a ideia de Deus e de Alma. Ora, o mesmo se passa com o Eu, que apenas existe como ideia. É coisa que logicamente jamais poderia ser detetada por uma ciência natural. A ideia de um sujeito substancial, de algum modo distinto dos seus estados vivenciais, está abandonada. Assim, a ideia dualista que coloca de um lado um Eu, ainda que imaterial (espiritual), e do outro um corpo físico (material), considera-se fracassada.

A existência é uma coisa peculiar. Algumas coisas têm-na e outras não. Isto parece um paradoxo, porque o que significa haver coisas que não existem? Vejamos, por exemplo, a ideia de Pai Natal. Ou a ideia de unicórnio. As ideias existem, de facto, acontece apenas que o próprio Pai Natal, como pessoa real, ou o unicórnio como animal natural, não existem. Tal como uma imagem de um unicórnio não pode ser identificada como o unicórnio que representa – uma vez que a imagem do unicórnio existe, mas não aquilo que é representado – também a ideia de uma coisa inexistente não é a mesma coisa que a própria coisa inexistente. Assim, parece que estamos a dizer que certas entidades não mentais carecem de existência. Como é isto possível?

Considerações como estas levaram alguns filósofos a negar que a existência seja uma propriedade real. É um erro lógico encarar a existência como uma propriedade das coisas do mesmo género que a propriedade de ser pesado ou de ser vermelho. O conceito de existência é um conceito universal que pertence a um determinado tipo de conceitos, que são também universais no sentido de não se aplicarem a atributos de particulares, como por exemplo, a ideia de numeroso. Diz-se que na praga dos gafanhotos os gafanhotos eram numerosos, ou abundantes. Mas isso não significa que um gafanhoto é numeroso ou abundante. Significa que o atributo de gafanhoto tem muitos exemplares. Portanto, dizer que eu existo, e que o leitor existe, não estou a dizer que ambos temos essa propriedade peculiar de existir. Cada um de nós é apenas mais um exemplar, ou espécime, de um tipo de espécie a que chamamos espécie humana. A existência é uma propriedade de objetos, dos quais não faz sentido aceitar a inclusão no conceito de objetos o conceito de Deus ou de Eu.

terça-feira, 18 de junho de 2019

O Pensamento, com Colin McGinn


Colin McGinn, nascido em 1950 em West Hartlepool, Inglaterra, é um filósofo britânico atualmente a lecionar na Universidade de Miami. Também teve importantes funções no quadro docente da Universidade de Oxford e da Rutgers University, Universidade Estadual de Nova Jersei, é conhecido pelo seu trabalho na área da filosofia da mente, embora tenha escrito tópicos de outras áreas da filosofia.
O pensamento é essencialmente uma interação ou um entrelaçamento entre o cérebro e o ambiente; os pensamentos têm o conteúdo que têm por causa do mundo a que por acaso estamos anexados, e não o têm meramente em virtude dos nossos estados internos. Até hoje ainda ninguém foi capaz de produzir uma teoria completamente satisfatória que pusesse um fim ao eterno problema mente-corpo, também conhecido pelo problema da alma e do espírito em relação ao corpo. Daí alguns filósofos recentes, entre os quais se conta Colin McGinn, terem defendido a ideia de que a nossa pretensão monista era impossível, dado a realidade conter um “ingrediente” que não podemos conhecer. Por outras palavras, há um obstáculo insuperável com a nossa constituição intelectual que nos impede de descobrir a pista que falta. Eu, não indo tão longe, diria que o problema é mais da ordem conceptual do que da ordem cognitiva. Ora, sendo, de facto, muito misteriosa a forma como se dá a ligação entre o nosso cérebro e o ambiente, para produzir pensamento acerca do mundo verdadeiramente real, não parece que tenha de existir algum tipo de “cola” que anule esse tão contestado dualismo cartesiano.

As experiências percetivas dos objetos apresentam a aparência das coisas, aparência essa que está limitada apenas à superfície dos objetos. Mas o âmago da matéria, a sua composição molecular, só podemos aceder a ela por meios auxiliares artificias a que damos pelo nome de tecnologias. É quase uma tautologia subscrever aquilo que os físicos dizem da natureza do mundo: que a composição molecular dos objetos não se manifesta nas experiências percetivas normais.

A principal tese da Ciência Cognitiva desde a sua fixação nos termos da multidisciplinaridade dos anos 60 do século XX, que reuniu psicólogos e cientistas da linguagem, filósofos, matemáticos da computação e inteligência artificial, neurocientistas e até antropólogos, é que a mente funciona como um computador. Chomsky, o homem com a maior proeminência na área da linguagem, defendeu que o domínio da língua consiste numa competência interna da gramática, um sistema de representações simbólicas. Há uma estrutura simbólica na nossa cabeça, basicamente inatamente sediada, sem a qual não seríamos capazes de aprender a falar uma qualquer língua natural. E, pelo menos nas primeiras décadas em que a ciência cognitiva se afirmou, o aparelho cerebral da linguagem funcionava como um computador, sendo o cérebro parecido com o hardware a implementar um programa simbólico. As estruturas cerebrais onde funciona a linguagem seriam como uma máquina de calcular complexa, que a partir de informação limitada constrói elaboradas hipóteses com base nessa informação.

Por sua vez, David Courtnay Marr, um neurocientista e psicólogo britânico, integrou resultados da psicologia, inteligência artificial e neurofisiologia em novos modelos de processamento visual. Seu trabalho teve grande influência na neurociência computacional e levou a um ressurgimento de interesse neste campo. Marr morreu de leucemia em Cambridge, Massachusetts, com 35 anos, devido a leucemia. Seus achados estão reunidos no livro Visão: Uma investigação computacional da representação humana e do processamento de informação visual, publicado postumamente e reeditado em 2010 pela MIT Press. O sistema visual aplica, na tarefa de ver o mundo, várias hipóteses integradas, sem as quais não seria possível ver.

Tudo isto conduz a um enorme enriquecimento das nossas ideias sobre como a mente funciona. As nossas mentes permitem-nos ver objetos e compreender uma linguagem como se fossem as coisas mais simples do mundo; nada acerca da nossa compreensão consciente do que se está a passar nos dá qualquer indicação sobre o tipo de complexidade computacional que subjaz ao ato mais simples de perceção. Se a mente nada mais fosse do que a nossa compreensão consciente do que se passa, seríamos incapazes de ver o que quer que seja ou de processar a linguagem.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Mente e Realidade, com Gareth Evans


Gareth Evans [1946-1980] estudou Filosofia, Política e Economia no University College da Universidade de Oxford de 1964 a 1967. Tornou-se um senior scholar em Christ Church, Oxford (1967-1968) e um Kennedy Scholar na Universidade de Harvard e na Universidade da Califórnia em Berkeley (1968-1969).
Gareth Evans foi um brilhante carismático jovem filósofo de Oxford, tendo merecido o prestigiante cargo de “Wilde Reader” em Filosofia da Mente em Oxford com a precoce idade de 33 anos. Pouco tempo depois de aceitar o cargo, misteriosamente, adoeceu. Isto seguiu-se a um incidente no México, onde se encontrava como professor visitante, no qual levou um tiro de espingarda numa perna como resultado de uma tentativa falhada de rapto de um amigo filósofo mexicano com quem estava na altura por acaso. Pouco tempo depois foi-lhe diagnosticado cancro em estado avançado, e em poucos meses morreu.
Uma vez que era de longe o melhor jovem filósofo na Grã-Bretanha, a tragédia chocou todo o mundo filosófico. Os seus escritos exerceram uma enorme influência no estado da Filosofia. O seu livro póstumo, The Varieties of Reference, é ainda um trabalho maior da filosofia da mente e da linguagem. Em sua breve carreira, Evans contribuiu substancialmente nos campos da lógica, metafísica, filosofia da linguagem e filosofia da mente.
Evans fez parte do florescimento dos estudos filosóficos sobre a mente e a linguagem na Universidade de Oxford após 1970, sob a influência de Donald Davidson, dos Estados Unidos da América, e do seu conterrâneo Saul Kripke. Ele foi um dos muitos filósofos britânicos que mais contribuíram para o desenvolvimento do projeto semântico formal para as línguas naturais, tendo editado em parceria com John McDowell a coletânea sobre o tema Truth and Meaning. Sob a influência de Peter Strawson, Evans continuou a tradição dos estudos filosóficos de Oxford de investigar as condições para a objetividade do pensamento sob um viés kantiano.
Seu livro póstumo The Varieties of Reference, ainda é muito influente nos estudos de filosofia da mente e filosofia da linguagem, desenvolve teses do filósofo e amigo John McDowell (editor do livro) sobre os pensamentos acerca de objetos singulares (por oposição às propriedades de objetos), tomando-os como modos especiais da mente vincular-se ao mundo.
          Em filosofia da realidade existem duas posições antagónicas: a dos antirrealistas e a dos realistas, ou seja, a velha questão do idealismo e do realismo, se o mundo depende de algum modo das nossas mentes ou se é completamente independente delas. Este é um tema filosófico com uma longa tradição.
          Depois de Einstein ter apresentado as teorias acerca de como é o universo, sem ter recorrido a qualquer observação empírica, mas à medida que os anos vão passando e as observações empíricas as vão confirmando uma a uma, leva-nos a pensar que os realistas são capazes de estar mais certos que os antirrealistas.
          Os antirrealistas dizem coisas do género: se quisermos descobrir algo sobre a estrutura básica da realidade, devemos investigar o modo como falamos sobre a realidade. A questão era a seguinte: será que o significado das nossas frases deve ser explicado em função dos indícios que temos para as afirmar, ou será uma questão de condições de verdade que nada têm intrinsecamente que ver com indícios? Isto relaciona-se com o idealismo, a ideia de que o mundo é em última análise mental. O verificacionismo reduz-se aos estados sensoriais que nos levam a acreditar nos indícios que nos são dados pelos sentidos. Por exemplo, o que nos aparece visualmente, como estado do sistema sensorial, é mais um parece. Assim, a verdade do que dizemos para um antirrealista vai depender dos nossos estados sensoriais. Ao passo que um realista, baseando-se nos astrofísicos teóricos do calibre de Einstein, dirá que a verdade do mundo real que eles apresentam é independente de qualquer estado sensorial. Os realistas defendem que há objetos no mundo intrinsecamente independentes da mente, que ao provocarem os nossos estados sensoriais são eles as causas dos nossos estados mentais, os quais por sua vez nos dão os indícios da sua existência.
          Para um antirrealista a realidade esgota-se em tudo aquilo que faz parte do nosso conhecimento. O que desconhecemos é como se não existisse. Ao passo que para um realista há coisas e factos que existem quer tenhamos ou não conhecimento delas.  Que o realista diz é que a realidade transcende o nosso conhecimento. A realidade é o que é, defende o realista, quer possamos saber coisas sobre ela quer não. Ao passo que o antirrealista acha que a realidade é, em última análise, o produto dos nossos estados cognitivos.
          Não podemos confundir a própria realidade com as formas que temos de a conhecer. A realidade é uma coisa; o conhecimento que temos dela, outra. Os objetos físicos não são a mesma coisa que os estados sensoriais que temos quando os percecionamos. E também as partículas físicas não são a mesma coisa que os contadores que assinalam a sua presença. Ora, como os estados sensoriais da realidade são os estados a que a tradição científica classifica de objetividade, então o mundo real, tal como ele é em si, independente das mentes humanas, só pode ser apreendido teoricamente. Vemos de facto objetos físicos e as suas propriedades, mas não podemos ter a pretensão de os ver puramente, objetivamente, tal como são representados pela física empírica ou observacional.
          Depois da correção de alguns equívocos relacionados com a nossa perceção do mundo exterior à nossa mente, apesar de não recomendar que trabalhemos muito com a categoria dicotómica subjetivo/objetivo, podemos afirmar que o mundo observável resulta da nossa necessária subjetividade percetiva. Ao passo que é através da racionalidade que conseguimos formar através da ciência uma representação puramente objetiva do mundo. Temos conceitos que não têm qualquer laivo de subjetividade, mesmo com uma perceção irremediavelmente subjetiva.
          É inescapável o conceito de pensamento quando falamos de assuntos relacionados com um outro conceito que é o de mente. Há quem entenda que mente e cérebro é a mesma coisa. Mas eu não acho. Quando faço uma pergunta à minha neta e ela demora a responder, eu digo: pensa primeiro à vontade antes de responder; ou quando lhe mostro um pássaro amarelo e lhe pergunto como se chama esse pássaro, não estou a ver o que oo cérebro dela está a fazer, mas sim toda a sua atitude enquanto pensa e responde. Pensar é uma espécie de discurso silencioso no qual os símbolos estão causalmente ligados a objetos exteriores. Para colocar a coisa de forma simples: aquilo em que pensamos é uma questão de saber que objetos causam os símbolos que nos surgem na cabeça.
          Portanto, não sendo possível reduzir conceitos mentais a conceitos físicos, Donald Davidson procurou aderir a essa mundividência basicamente materialista, mas ao mesmo tempo defendendo que não se podia fazer a mente ser apenas o cérebro. Daí retirou uma série de conceitos com os quais desenvolveu algumas ideias a que chamou “monismo anómalo”, por ser uma espécie de materialismo não redutor.

sábado, 15 de junho de 2019

Em defesa da memória


Em maio passado, António Guterres testemunhou pessoalmente o drama de quatro países do Pacífico Sul durante um périplo que o levou à Nova Zelândia, Ilhas Fiji, Vanuatu e Tuvalu, onde foi feita a fotografia da capa da “Time”. Não foi uma simples visita. António Guterres é um entusiasta confesso do multilateralismo, ativamente empenhado em contrariar essa letargia. É esse o reconhecimento que a “Time” lhe faz.A revista “Time” acompanhou o secretário-geral da ONU num périplo pelo Pacífico onde há países que, face às alterações climática, lutam para não serem engolidos pelo mar. Na capa, António Guterres surge em pose dramática, com a água do Pacífico já pelos joelhos. Mas a mensagem é de esperança: “Os países mais atingidos pelas alterações climáticas estão a lutar — e a obter resultados”, diz a “Time”.

Fez no mês de maio passado 12 anos que inaugurei este blogue -“A Fisga” - com reflexões mais à volta da ciência e da filosofia, em boa parte estimulado por Carlos Fiolhais e Desidério Murcho, enquanto participava como comentador regular no blogue “De Rerum Natura”, que eles haviam criado em março do mesmo ano.

A propósito do tema assinalado em epígrafe, e para recordarmos qual era o ambiente intelectual no meio dos cientistas “ortodoxos” acerca do tema do “Aquecimento Global”, resolvi revisitar algumas etiquetas desses tempos iniciais para avaliar melhor quão conscientes já nessa altura estávamos dos contributos que a atividade humana estava a dar ao aquecimento do planeta Terra. Para nosso espanto, em 2007 e 2008 ainda havia dúvidas na mente de muita boa gente e com bons créditos científicos, se os ecologistas tinham razão.

Lia-se num editorial do blogue, com o título “Aquecimento Global, uma lufada de ar fresco”: http://dererummundi.blogspot.com/2008/11/aquecimento-global-uma-lufada-de-ar.html#comment-form

«Sabia que - exactamente ao contrário do que é voz corrente - nos últimos 7 anos a temperatura global não aumentou? E que 2008 foi o ano mais fresco da década? . . . O que é extraordinário, mesmo preocupante, é tudo isto continuar a ser omitido pelas entidades responsáveis, como o IPCC ou o Prémio Nobel Pachauri. Fechando os olhos aos factos. Tendo havido alguns comentários críticos, houve outros que reforçaram a ideia com afirmações como: “E mais grave ainda é todo o sistema educativo agora parecer aceitar como dogma todo este belo conto de fadas do aquecimento global... Dou pelos meus filhos a dizer-me que não tarda temos os glaciares transformados em mar e Portugal submergido... E dizem isto com uma certeza absoluta de quem tem todas as respostas na ponta da língua, porque sim, porque é o que vem escrito nos manuais da Escola!!!! Isto, isto é que é terrorismo e ninguém me tente convencer do contrário!”»

E em 20 de maio de 2008 era postado este texto do físico Freeman Dyson:
http://dererummundi.blogspot.com/2008/05/dyson-sobre-o-aquecimento-global.html

Do que li do texto de Freeman Dyson, apresentado por Carlos Fiolhais com a seguinte introdução : «Sobre o controverso assunto do aquecimento global, que já inflamou as páginas deste blogue, vale a pena ouvir a voz sábia e ponderada do físico Freeman Dyson, professor jubilado do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, no sempre muito interessante "The New York Review of Books" (para mim o melhor jornal cultural do mundo). Termina assim o seu artigo em que analisa dois livros recentes sobre o aquecimento global:

“Infelizmente, alguns membros dos movimentos ambientalistas também tomaram como ponto de fé que o aquecimento global é a maior ameaça à ecologia do nosso planeta. É esta a razão, porque os argumentos sobre o aquecimento global se tornaram azedos e apaixonados.”»

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Sentido moral

As descobertas não acontecem apenas ao nível da ciência. Também acontecem no campo da ética. A maioria das descobertas mais valiosas devemo-las a acontecimentos casuais, ou até acidentais. Por conseguinte, completamente à margem das esperanças ordinárias.

Ainda que fôssemos peritos em ética, não era por aí que nos iríamos comportar de maneira moralmente correta. Conseguimos ter bons comportamentos corretos da mesma maneira que uma criança consegue falar a sua língua nativa corretamente. E da mesma forma não precisamos de tirar um curso de cinematografia, ou de ler uma enciclopédia de cinema de ponta a ponta para sabermos apreciar um bom filme.

Gostamos de descrever nossos valores em termos de uma moral absoluta, mas a realidade é mais complexa. Ainda que certas intuições morais sejam universais, é grande o espaço que a cultura tem para moldá-las. Nem Aristóteles nem Cristo puseram em causa a escravatura. Como e por que o espírito do tempo de uma sociedade se modifica, é um mistério. A luta contra o racismo foi vencida? Uma coisa se pode dizer: tal estádio cultural é independente da vontade do legislador. É por isso que é mais frequente as leis aparecerem só depois de a sociedade ficar madura para uma tal viragem na conduta social. Obviamente, sempre sobram grupos marginais que resistem à mudança. Mas, enquanto se limitarem a vociferar, sem irem das palavras aos atos, não vale a pena gastar recursos públicos com eles.

Uma das crenças que se tornou tácita nos tempos da modernidade foi a crença indefetível na razão. Mas o uso da racionalidade tem os seus limites, inclusivamente no campo da moral. E quando se abusa da razão em situações impenetráveis à razão, o resultado pode ser ainda mais pernicioso do que se ela não se tivesse intrometido.

É numa série de crenças e expectativas inconscientes, a que também poderemos chamar inatas ou intuitivas, que a nossa conduta diária repousa. É um erro pensar-se que passamos o dia todo a tocar a nossa vida para a frente usando continuadamente a razão. E na base da nossa vida fazem parte crenças, que apesar de aparentemente serem tão triviais, têm ocupado o ofício dos metafísicos desde Platão até aos nossos dias. Por exemplo, todos nós acreditamos que o mundo que nos rodeia é real e não ilusório; que amanhã o sol se vai levantar como sempre se levantou; que mantemos a nossa identidade desde que nascemos, ou que somos a mesma pessoa ainda que tivéssemos estado e saído do coma passado muitos dias. Tudo isto são lugares comuns do nosso sentido do óbvio, mesmo que algumas dessas crenças tenham passado remotamente por ideias muito discutíveis, mas que acabaram por se transformar em crenças óbvias ao fim de muito tempo de discussão por parte de metafísicos como Platão ou Descartes. E isto é assim, independentemente de ainda andarem por aí metafísicos a afirmar com seriedade que essas crenças tácitas com as quais contamos com tanta alegria não só não são fiáveis, mas além disso serem literalmente falsas. Mas como dizia David Hume, essas metafísicas não devem moer-nos o juízo.

Todos nós desconfiamos que à volta da nossa vida paira o nevoeiro da incerteza. Nunca podemos ter qualquer certeza acerca da validade de decisões que hoje tomamos para segurança do nosso futuro e de todos os outros que contam para nós. Pressupor que a nossa existência decorre de um terreno perfeitamente plano e determinado a levar-nos por vias bem definidas se as procurarmos pelas melhores razões que a priori nos vão fazer chegar às metas certas, é próprio de uma mentalidade racionalista fanática. Não há forma racional de fazer descobertas. As descobertas, como subproduto que são, ocorrem a um indivíduo quando não são procuradas. Ou então quando se está à procura de outra coisa.

William Kingdon Clifford, em “The Ethics of Belief”, defende que é do ponto de vista epistémico irresponsável, e um erro moral, acreditar seja no que for sem provas suficientes. Caso as provas sejam insuficientes, é irresponsável, do ponto de vista epistémico claro, acreditar só porque isso nos faz felizes, ou porque gostaríamos que fosse verdadeiro, ou porque temos medo de levar a sério a hipótese de não o ser. Há uma diferença capital entre acreditar que se sabe e saber realmente. Sem provas não há conhecimento, mas o que dizer da crença? A posição de Clifford é que também neste caso se exige provas, sob pena de se cair na irresponsabilidade epistémica. Um agente tem uma crença responsavelmente quando tem boas provas, mesmo que tenha tido azar epistémico e afinal a crença seja falsa; e tem-na irresponsavelmente quando não tem boas provas, ainda que por sorte seja verdadeira.

Quem tem crenças extraordinariamente fortes apesar de dispor apenas de provas muitíssimo fracas é epistemicamente irresponsável. Ser preconceituoso ou dogmático inclui ter crenças muito fortes e recusar-se a abandoná-las ou enfraquecê-las, apesar de se ter confrontado com a fraqueza das provas a seu favor, ou com a força das contraprovas. A responsabilidade epistémica exige a humildade de se reconhecer que talvez nos tenhamos enganado, o que por sua vez dá trabalho porque exige a procura cuidadosa das melhores provas e contraprovas, ao invés de formar opiniões à toa, seja com base exclusivamente na cor política aleatoriamente associada a essa ideia, seja com base noutros fatores inapropriados.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Não vale tudo


No filme de Martin Scorsese – “Tudo Bons Rapazes” – o protagonista quase no começo lança a seguinte afirmação: “Desde que consigo lembrar-me, sempre quis ser um gangster”.

Estão a decorrer no Parlamento as audições na comissão de inquérito ao caso Caixa Geral de Depósitos. Nas últimas horas conheceu-se a versão de Filipe Pinhal que foi Presidente do BCP durante cerca de 6 meses. Disparando em todas as direções afirma: Houve uma teia urdida em vários pontos, que teve um diretório claro constituído por José Sócrates, Teixeira dos Santos e Vítor Constâncio, e depois vários operacionais, cada um a fazer o seu papel”. Pinhal sugere que Berardo terá sido “influenciado”, para reforçar a posição no BCP e seguir uma determinada linha. José Sócrates, na TSF, desmente e fala em Velhaca maledicência”.

Não basta que alguém lhe apeteça ser algo para que tenha direito a sê-lo. Um dos requisitos mais claramente exigíveis a qualquer estilo de vida é que a sua realização não arraste consigo um ataque aos direitos dos outros, uma incursão devastadora nas suas liberdades. As metas pessoais cuja consecução envolve a infração das normas sociais de convivência não podem ter cabimento numa sociedade livre e justa. Uma forma de vida que é presidida por objetivos que, muito claramente, implicam prejudicar os outros não é uma forma de vida admissível, nem minimamente aceitável. É aqui que devemos rejeitar a falácia dos falsos apelos à tolerância.

Ronald Dworkin – 1931-2013, professor de Direito e Filosofia na Universidade de Nova Iorque e de jurisprudência na University College London – defende que não só as metas pessoais devem ser moralmente impolutas, mas que também devem sê-lo os meios que se empreguem para alcançar tais metas. Por mais que levemos uma vida excitante e centrada no umbigo, essa vida acaba por ser reprovável quando é construída sobre iniquidades que não podemos esconder da nossa consciência.

A dor do tédio como fonte de maldade


Alex e os seus “droogs” estão aborrecidos. Chegada a noite, é hora de abandonar o bar e ir à procura daquelas situações capazes de lhes satisfazer as necessidades de prazer. A noite está serrada, e não tarde entrarem em ação, ao passar por um velho mendigo bêbado. Espancam-no à bastonada, e desatam a fugir para não serem apanhados pela polícia. E por agora é suficiente, o início do filme Laranja Mecânica. Alex acaba por ser preso. A partir daqui vai servir de cobaia para testar um novo método de “lavagem ao cérebro”, cujo interesse é transformar lobos em cordeiros inofensivos.
Ao fim de duas semanas de tratamento é feita uma demonstração pública na presença dos governantes. O público que está a assistir à demonstração fica encantado com os resultados da experiência. A única voz dissonante é o capelão da prisão, que interpela o ministro avisando que converteram Alex num inválido moral. Dali em diante não será capaz de praticar o mal, mas não por livre arbítrio. Ao ser obrigatoriamente bom, Alex não tem escolha. O ministro está pouco ralado com considerações de ordem ética, porque o objetivo do governo é suprimir a criminalidade. Chega então a hora de restituir a pseudoliberdade a Alex, longe de adivinhar o que o espera lá fora, a paga com juros, pela maldade que fez aos outros. E todos se vingaram, um a um até ao último, o intelectual que ficou numa cadeira de rodas e perdeu a mulher por causa dele. E vinga-se da forma mais sofisticada de todas. Submete-o, com o som da aparelhagem de música no máximo, à audição da nona sinfonia de Beethoven, a música que o punha em pânico desde que ficou fóbico após o (des)tratamento. Retorcendo-se de dor, não suportando mais o sofrimento, lança-se da janela do sótão para o vazio da noite. Não morre da queda. Todo partido, nem tudo é mau, as fobias desapareceram com o choque.  Todas as fobias desapareceram com a tremenda queda. Volta a ser uma pessoa livre para cometer crimes, sabendo muito bem distinguir o bem e o mal.
Este é um caso que aborda o prazer de fazer o mal. Comecemos primeiro por tecer algumas considerações acerca do mal, para depois ir ao tema do prazer. O que leva jovens, que até uma certa idade são “doces” e “amigáveis”, a praticar atos de terror? Nas últimas décadas, psicólogos e sociólogos que se dedicaram a estudar “o mal” chegaram a conclusões interessantes. A mais polémica é a de que o “puro mal” só existe nas nossas cabeças. De um modo geral, até o mais frio assassino acredita ter razões que justificam o seu ato. A personalidade, é claro, importa. Psicopatas por exemplo, têm maior chance de envolver-se em agressões (as cadeias têm proporcionalmente mais pessoas com esse perfil do que a população geral), mas isso é só parte da história. Experiências conduzidos por psicólogos sociais mostraram que mesmo pessoas tidas como normais cometem verdadeiras barbaridades, se a situação as levar a isso. Philip Zimbardo, por exemplo, fez com que estudantes de Stanford representando o papel de guardas numa penitenciária fictícia logo praticassem abusos muito reais contra seus prisioneiros. O que a literatura psicológica mostra é que a maioria dos atos de violência e crueldade pode ser reduzida a poucas causas principais. Na classificação proposta por Jonathan Haidt, as duas primeiras são ambição e sadismo, mas elas têm pouca relevância prática. É raro alguém matar só para ter lucro e mais ainda para extrair prazer. As outras duas são alta autoestima e idealismo moral. Curiosamente, são duas características que tentamos incutir em nossos filhos desde pequenos. E, quando elas se combinam para produzir um sujeito cheio de si acreditando agir a mando de um Deus ou de uma ideologia infalíveis, o pior acontece.

E o prazer? O prazer pode ser visto como um fenómeno cinético, que consiste na viagem da incomodidade até à comodidade. A comodidade é um estado de equilíbrio que atingimos tanto quanto nos livramos das sobre-estimulação, como da infra-estimulação. Ora, o tédio é uma infra-estimulação que nos incomoda. Bem, em casos extremos, a privação sensorial a que são submetidos prisioneiros em tortura, pode chegar a ser extremamente dolorosa: enxaqueca, náuseas, fadiga, alucinações, confusão mental. Por conseguinte, o prazer é um fenómeno efémero, transitório. Dura enquanto dura a viagem a caminho da comodidade. É claro que, quanto mais crua for a incomodidade, mais intenso será o prazer com a obtenção daquilo que vai sanar a incomodidade. Mas se nos instalarmos preguiçosamente nas pegajosas seduções da comunidade, privamo-nos com isso da capacidade de sentir prazer. A comodidade quando é mantida para além da conta, deixa de o ser. Aquilo que era comodidade transforma-se insidiosamente em falta de estímulo. E a falta de estímulo pode transformar-se na disposição tanto para a prática de verdadeiros atos de heroísmo, como para a devassidão desabrida em atos de crueldade e tortura.

terça-feira, 11 de junho de 2019

A essência fundamental da identidade pessoal


Sharbat Gula, afegã, perdeu os pais durante um bombardeamento soviético. Em 1985 foi capa da revista National Geographic, na altura com 13 anos de idade. O seu olhar não deixou ninguém indiferente. Em janeiro de 2002, uma expedição da National Geographic viajou ao Afeganistão, com a missão de localizar Gula. McCurry, o fotojornalista, ao saber que o campo de refugiados Nasir Bagh estava para fechar, perguntou por ela aos outros refugiados que ainda moravam no campo. Um deles conhecia o irmão de Gula, e conseguiu fornecer pistas da sua localização. Portanto, passados 16 anos, tendo ela então 29 anos de idade, voltou a ser encontrada. E foi imediatamente reconhecida. Apesar de o seu rosto agora muito diferente, o de uma mulher de 30 anos, marcado pelas provas e pelas agruras por que teve de passar, os seus olhos constituíam aquele fator de continuidade que permitiu a sua identificação. Em 26 de outubro de 2016, Gula, viúva com 4 filhos, foi detida no Paquistão pela Agência de Investigação Federal (FIA) por viver no país usando documentos falsos. Ela chegou a ficar presa por 15 dias e foi obrigada a pagar uma multa. E foi na sequência disso que foi deportada e entregue ao governo do Afeganistão por determinação de um juiz paquistanês.

Há uma questão fundamental na essência da identidade pessoal que falta nos textos dos autores da área das Ciências Cognitivas, para além da mera dimensão neurobiológica. Para a maior parte destes autores, ser pessoa equivale a ter uma identidade pessoal corpórea, entendendo-se o corpo no sentido fundamentalmente biológico. Os limites do Eu são os limites do corpo físico cujo funcionamento é na sua totalidade objecto de estudo das ciências naturais.

Esta posição compreende-se em parte como reação à conceção tradicional e metafísica do ser humano que considerava os elementos constitutivos do self, como a mente, ou a alma, algo de natureza não corpórea, sendo o corpo biológico visto numa perspetiva instrumental. Recorde-se que, para S. Tomás, a alma era considerada incorpórea e dotada de poderes intelectuais. Neste cenário, o que se passava no corpo biológico pertencia ao domínio dos meros acidentes, tornados possíveis porque a alma era a forma do mesmo corpo. Os autores das Ciências Cognitivas assumem uma posição de negação total desta conceção e por isso é natural que afirmem que tudo o que define o ser humano tem apenas e só uma natureza biológica. Nada mais.


A esta conceção estritamente biológica, falta, porém a dimensão relacional – uma dimensão que não é apenas mais uma característica do ser humano a juntar a tantas outras, mas uma sua dimensão realmente constituinte, o fundamento real e objetivo do self., fora do contexto de um paradigma dualista, isto é, no contexto de um paradigma que não tenha necessidade de recorrer ao dualismo matéria/espírito.


O comportamento não existe nas suas partes separadas, como os neurónios individuais. De facto, um neurónio individual é mudo. É a complexa interação de muitos deles que é capaz de coisas como a consciência.


Os estudos sobre a empatia têm sido objecto de interesse, quer no interior das Ciências Cognitivas. A capacidade de empatia é constitutiva do ser humano. Quando tal capacidade não é desenvolvida desde os primeiros anos de vida, isso constitui um grande obstáculo para que o mesmo ser humano possa entrar numa relação recíproca com os outros e de ter, por conseguinte, um comportamento ético verdadeiramente pessoal. O carácter recíproco e relacional constituinte desta relação não é geralmente reconhecido.


Recentemente, têm vindo a lume trabalhos que exploram a dimensão relacional da pessoa, aprofundando aquilo a que em Ciências Cognitivas se poderia chamar estudos da segunda pessoa. Com efeito, as Ciências Cognitivas, como qualquer ciência, têm um discurso tipicamente de terceira pessoa, isto é, descritivo e explicativo dos factos que um investigador ou uma equipa de investigadores observa na natureza em geral e nas pessoas em particular, independentemente da relação estabelecida entre os investigadores e o sujeito da investigação. Aliás, nalgumas ciências, especialmente em psicologia, a eliminação de qualquer relação pessoal com o sujeito em estudo é considerada condição necessária e essencial para a objetividade e o sucesso desse estudo. Outras vezes, a relação, qualquer que seja a sua natureza, é considerada irrelevante para o estudo em questão, como no caso das neurociências, por exemplo.


O ressurgir do interesse pela consciência tem-se centrado sobretudo na relação entre as perspetivas da consciência relacionadas com a primeira-pessoa e com a terceira-pessoa, sendo frequentemente esquecidas as dimensões intersubjetiva e interpessoal da experiência consciente.


A consciência humana individual forma-se numa inter-relação dinâmica entre o Eu e o Outro e é, por conseguinte, inerentemente intersubjetiva. O encontro concreto do Eu com o Outro envolve fundamentalmente a empatia, entendida como um género de intencionalidade único e irredutível. A empatia é a condição prévia (a condição de possibilidade) da ciência da consciência. A empatia humana é inerentemente dinâmica: abrem-se-lhe caminhos de modos de intersubjetividade não egocêntricos e transcendentes. O progresso real na compreensão da intersubjetividade requer a integração dos métodos e das descobertas das ciências cognitivas, da fenomenologia, e das psicologias contemplativas e meditativas da transformação humana.


Não se trata aqui de fazer um aproveitamento da empatia num sentido algo místico, misterioso ou sobrenatural para recuperar as velhas teses metafísicas sobre identidade pessoal. Trata-se apenas de alargar o âmbito de estudo da pessoa, colocando-o num contexto muito mais complexo que aquele que é objecto das Ciências Cognitivas, sem que isso signifique uma qualquer ascensão a um “outro mundo” sobrenatural. Mas uma abordagem do ser pessoal e da ética humana na perspetiva da segunda pessoa representa, sem dúvida, uma abertura para um “outro mundo” que extravasa o das Ciências Cognitivas “clássicas”, visto que estas se interessam pelo mundo visto apenas na perspetiva da terceira pessoa.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Cuidado com o encarniçamento terapêutico


Se fosse necessária uma teoria para explicar o valor da vida, nunca a encontraríamos. Estão sempre a surgir novas tecnologias que vêm afrontar o princípio contra as medidas heroicas de reanimação pouco sensatas em “velhinhos” frágeis, afásicos, hemiplégicos, eventualmente com Alzheimer, que se pudessem emitir a sua vontade quereriam morrer em paz. Princípio filosófico esse, mais sereno em relação à vida e ao seu sentido mais profundo, que se perdeu porque a competição económica desenfreada ditou que os educadores preterissem a disciplina da Filosofia nas escolas em prol das Matemáticas. Esses princípios filosóficos seguiam o preceito aristotélico do epistema – que diz respeito à aquisição de teorias; e da fronesis – que se refere à avaliação do caso singular. Daí aquelas duas máximas muito conhecidas: “médico que só sabe medicina nem medicina sabe”; e “em medicina cada caso é um caso”.

O receio de cometer erros, mas, mais do que isso, o receio de ser acusado de negligência tem como consequência a prática de uma medicina de declarada natureza defensiva, obrigando ao recurso a exames auxiliares desnecessários e potencialmente perigosos e, como consequência inevitável, o aumento da despesa pública.

É claro, outra coisa são os erros. Mas não nos podemos iludir com a utopia da medicina sem erros. Isso seria impossível porque a nossa ignorância é infinita. O que é possível é a margem de ignorância ser menor do que a que existe. E a ignorância deve ser combatida com o maior empenhamento de universidades, hospitais, órgãos profissionais e sociedades científicas. De um lado o pensamento estruturado e crítico. E do outro a praxis pela demonstração da competência.