segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Saber fazer perguntas para obter as melhores respostas: como será a nossa vida depois disto?


Uma coisa é a ciência como empreendimento humano, tal como a arte e a política, como parte da cultura humana para melhor viver neste planeta enfrentando as suas agruras. Outra coisa é o cientismo acrítico e a tentação do domínio total das forças da natureza.

Uma pergunta muito repetida nos média ultimamente é se a nossa maneira de estar no mundo vai mudar. E esta pergunta sendo feita no contexto da pandemia, subentende-se que esteja também implícito o problema das alterações climáticas e do aquecimento global. Que outras razões teríamos para tal pergunta? Todavia, uma das explicações para as pessoas estarem apenas focadas na pandemia é porque os governos, os cientistas e os média se têm focado demais na pandemia. E por outro lado o registo contínuo dos mortos por covid-19 algum efeito terá sobre o medo das pessoas da morte. A
s pessoas ao verem gente a morrer, um efeito imediato e sentido como diretamente implicado no vírus, desperta muito mais medo do que noções menos tangíveis em relação aos efeitos do aquecimento global provocado em parte pelo mantra do crescimento económico dos países indexado ao PIB (Produto Interno Bruto) em vez de outros parâmetros de bem-estar sustentável. 

Racionalmente sabemos que é o sofrimento por que passamos antes de morrer que nos deve meter medo, e não a morte em si. A morte, em si, e o que irá acontecer no mundo sem nós deveria ter a mesma relevância que os imensos séculos em que ainda não existíamos. E isso pode-nos incomodar se pensarmos que podemos conhecer o passado, mas não podemos conhecer o futuro sem passarmos por ele. E para não nos incomodarmos com a morte temos de tomar consciência de que a nossa finitude é como é, e não nos adianta nada lamentar esse facto. É por isso que não nos podemos deixar embalar: quer pela antiga ideia de um qualquer tipo de vida depois da morte; quer pela ideia utópica de que a ciência está prestes a descobrir o verdadeiro elixir da eterna juventude, e quem sabe, a vitória final sobre a morte.

Como tudo o que é demasiadamente humano, a globalização trouxe coisas boas e más. A globalização contribuiu tanto para que o vírus SARS-CoV-2 se espalhasse quase instantaneamente por todo o mundo a partir do primeiro foco numa cidade chinesa; como para que se conseguisse uma vacina em tempo recorde. A globalização fez desta epidemia um evento global. Noutros tempos de acentuada entropia social (epidemias, catástrofes naturais e guerras) as zonas de crise eram circunscritas e permitiam sempre a fuga a partir de dentro ou o auxílio a partir de fora. Neste caso, a crise está em todo o lado e por isso não há fuga possível nem auxílio externo suficiente.

Uma das  consequências tem a ver com a saúde mental da população. Além disso, há a clivagem entre gerações: os mais novos tendem a considerar-se a salvo; e os mais velhos ou se resignam que morrer faz parte da vida quando já vai longa, ou então acabam os seus dias vivendo muito aterrorizados. Esta clivagem geracional está a dar azo a um grande mal-estar nas famílias, que tanto faz terem os seus velhos em casa, como tê-los nos lares eufemisticamente ditos de terceira idade ou residências sénior. Portanto, uma clivagem societária geral e perigosa. Ouvem-se de novo ideias malthusianas, mais ou menos disfarçadas, quando se pensa que esta epidemia irá dizimar grupos-alvo, como os maiores de 70 anos, os portadores de doença crónica ou os presos. Ou seja, pessoas consideradas mais descartáveis. 

De uma coisa podemos ter a certeza: todas as sociedades irão empobrecer de forma acentuada. A
 recuperação poderá ser lenta, precisamente porque não há zonas tampão. Para além das mortes pelo novo coronavírus, muitas outras existirão causadas pelo decréscimo de recursos públicos, falências, desemprego e falta de expectativas de vida. 

Um outro problema, que irá surgir inevitavelmente, tanto mais que já estava em curso no Ocidente por causa dos fluxos migratórios sul-norte, é o do crescimento de regimes autocráticos. E esta tendência será ainda mais reforçada quando a China através do seu expedito sistema de desinformação convencer o mundo popular de que foi mais eficiente a combater a pandemia do que as democracias. O regime chinês mostrou as suas limitações (falta de transparência). Mas também a sua capacidade, assente em parte na restrição das liberdades individuais, de voltar a controlar o crescimento económico, e com isso a paz social. Por contraste, os regimes democráticos, mais transparentes, e mais cuidadores das liberdades, sofreram mais mortes, e economicamente ficaram mais "ó tio ó tio". Se a abordagem democrática tiver claramente menos sucesso do que a abordagem autocrática, isso será um problema no futuro próximo. Muitos regimes democráticos, incluindo na Europa, estão já sob pressões populistas de extrema direita que desejam aplicar políticas nativistas e autoritárias. Se as democracias não tiverem sucesso no combate, poderão entrar em deriva autoritária.

As crises climática e migratória, que são globais e necessitariam de respostas globais, mostraram uma tendência para o nacionalismo e para as estratégias nacionais independentes. O que isso pode provocar nas pessoas, sobretudo nas mais jovens, é um sentimento do peso, da urgência e da seriedade da vida que contraste em absoluto com a leveza, a descontração e ligeireza com que se tende a viver hoje nas sociedades que são mais responsáveis pela destruição do planeta. Só um tal sentimento, se for generalizado, pode mudar o muito que precisa de ser mudado no modo como vivemos e nos organizamos. É difícil crer nisso; é ainda mais difícil prever isso; mas é isso que é desejável.


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