quarta-feira, 8 de setembro de 2021

A tralha de Proust




Piero Tosi contou a Lorenza Foschini, jornalista da RAI, uma história extraordinária sobre o espólio de Marcel Proust. E isso deu-lhe matéria para um livro: O Sobretudo de Proust. Mas o livro não teria sido escrito se Carlo Iansiti, que conheceu profundamente Jacques Guérin, não o tivesse apresentado a Lorenza Foschini.

Em 1929 Jacques Guérin foi operado pelo médico Robert Proust devido a uma apendicite. Ora, este médico era o irmão mais novo do escritor Marcel Proust que morrera em 1922 com 51 anos de idade. Depois Guérin foi agradecer a casa do médico o sucesso da operação. E então é surpreendido com o espólio de Marcel Proust espalhado pela casa do médico.

Em 1935, Robert Proust morre, com 57 anos de idade. Marthe Dubois-Amiot, viúva do médico, sempre odiara o cunhado. Várias fontes imputam o seu ódio à alegada homossexualidade de Marcel Proust. O biógrafo de Proust descreve Marthe com desprezo, uma enfadonha mulher burguesa que fez tudo para apagar qualquer vestígio de “indecência” que pudesse macular o decoro da família. Foi assim que se perderam as cartas de amor de Marcel, grande parte da sua correspondência social, e os rascunhos e as preciosas anotações do seu trabalho. Em todo o caso, Jacques Guérin ainda tem tempo de salvar alguma coisa. 

Suzy Proust, a única filha de Robert e Marthe, terá adquirido muitos dos manuscritos de seu tio e vária documentação literária associada, assim como grande parte dos móveis que seu tio Marcel havia acumulado no grande apartamento de Paris. Marthe, em algum momento, terá pedido a um tal Werner, um homem que ela tinha arranjado, e que permanece uma figura misteriosa, que lhe levasse os papéis que ainda restavam. Independentemente de como eles tinham sobrevivido à ira incendiária da viúva, pilhas de papéis de Marcel Proust foram entregues por Werner a um alfarrabista na rua Faubourg Saint-Honoré, que Henri Lefebvre administrava. Jacques Guérin era um cliente regular dessa livraria. De acordo com uma fonte, mal Werner desandou, Guérin passou por lá e se deparou com esse acervo de Proust.

E foi assim que Jacques Guérin comprou os manuscritos de Proust, bem como cartas e fotografias. Depois conseguiu um encontro com Werner para saber se qualquer outra coisa da propriedade literária de Proust ainda estaria para venda. Havia, de facto, muito mais. Junto com os papéis, havia uma grande quantidade de móveis sobreviventes e um sobretudo. Marcel Proust gostava muito de um sobretudo que mantinha sobre os cobertores em sua cama, como proteção adicional contra o frio. O estado do sobretudo estava num mísero estado, muito deteriorado e cujo forro estava infestado de parasitas. Werner era um homem de negócios astuto, mas nem ele se atreveu a vendê-lo a Guérin, deu-lho. Felizmente, Jacques Guérin era um homem rico, e com queda de colecionador meticuloso e persistente, tendo conseguido, a grande custo, restaurar o sobretudo. Uma geração de entusiastas depois veio a determinar que o sobretudo de Proust figurasse como uma das peças mais importantes do legado de Proust.

Dizia Guérin, virado para Marthe: «Mas afinal, madame, o seu cunhado era um génio. Será possível que nunca tenha tido vontade de ler o seu romance?» E Marthe, com o tom seco e decidido da burguesa bem-criada, que não tem nenhuma dúvida acerca dos deveres da sua condição, responde com a voz estrídula de muitos anos antes: «Ora, ora, senhor Guérin! Não passa de um amontoado de mentiras!» Também a Philip Kolb, outro homem que dedicou boa parte da vida a decifrar a enorme quantidade de cartas de Marcel, Marthe dá uma resposta igualmente seca e esclarecedora a respeito do que pensa do cunhado. Diante dos insistentes pedidos do erudito americano, para saber de anedotas e particulares, e principalmente das suas lembranças pessoais acerca do grande escritor, com a sua costumeira maneira resumida de falar, dá esta lapidar opinião: «Monsieur, meu cunhado era um ser bizarro.» 
***
Certa noite no Larue, na Place de la Madeleine, por volta de 1901, os amigos de Marcel viram-no tão encolhido de frio que lhe arranjaram um sobretudo. A mesma cena irá repetir-se, em 1911, Marcel percorria o longo corredor do Ritz que levava à sala de jantar onde aparecia envolto na sua pesada pele, bem no meio de maio, em plena primavera, como uma sombra, o rosto e a voz consumidos pela familiaridade com a noite. Sentava-se a uma mesa, comia pouco, às vezes bebia. Certa noite tomou uma garrafa inteira de Porto, um vinho mencionado no romance: “Monsieur de Cambremer", que, conversando com o doutor Cottard numa noitada na casa dos Verdurin, na Raspelière, alardeia suas qualidades para combater a insónia.

Em 1913, 
com Jean Cocteau, ficará de pé à mesa do restaurante, arrebatado com as qualidades de Vaslav Nijinsky, primeiro bailarino dos Balés RussosCocteau retrata Proust metido em seu pesado sobretudo, o queixo escondido na gola de pele, na qual repousam os bigodes ainda pretos, bem como os cabelos que despontam do chapéu. 



Na ponta das mangas, cruzadas na frente, aparecem as mãos enluvadas, enquanto no bolso esquerdo do sobretudo se vislumbra uma garrafa de água mineral, como conta Cocteau: “Voltava dessas excursões ao alvorecer, encapotado em seu sobretudo forrado de pele, lívido, os olhos roxos, inchados, com um litro de água de Evian enfiado no bolso (...).” No desenho são representados, com rápidos traços de lápis, os cabelos compridos, as olheiras profundas, as faces mal escanhoadas, a cabeça colada ao pescoço. Guérin, ao ficar de posse desse esboço, que fazia parte do tesouro da chapeleira, emoldurou-o com um passe-partout escuro, para salientar o papel marfim do desenho, nem desconfiando de que aquele sobretudo ainda estivesse circulando por aí.

Proust deambulava com o seu sobretudo pelos luxuosos salões do imponente hotel da Place Vendôme. Ao entrar na sala do restaurante era alvo dos olhares ávidos das mesas vizinhas, perfeitamente ciente de estar a ser observado. Como disse o neto do barão Gustave de Rothschild: «É dessa forma que um dos seus mais notáveis compatriotas me demonstrou a sua admiração dizendo: “A mais profunda impressão que a minha esposa e eu guardamos de Paris é M. Proust.” Eu já estava muito feliz, mas cedo demais, pois acrescentou: “Pois de facto foi a primeira pessoa que vimos alguém jantar com um sobretudo forrado de pele vestido”.»

Em junho de 2000 a Christie’s, em Londres, vendia manuscritos de Proust por uma quantia estonteante. E em maio de 2016 Cartas (raras) a seu pai, manuscritos inéditos, desenhos, retratos de família foram leiloados pela casa Sotheby's de Paris. No total, mais de 120 fotografias, manuscritos e cartas, bem como testemunhos sobre os amores e amigos. 
Vários retratos de família - muitos com Marcel Proust - e retratos de seus amigos-amantes, foram colocados à venda pela sobrinha-neta do escritor, Patricia Mante-Proust, estimado entre 520.000 e 740.000 euros. 

Em setembro de 2018, O Ministério da Cultura da França informou que o governo francês comprou manuscritos inéditos do escritor Marcel Proust. Os escritos foram colocados à venda na famosa casa de leilões Sotheby’s no dia 23 de maio, pela sobrinha-neta de Marcel Proust: Marie-Claude Mante. O valor pago não foi revelado. O material foi colocado em exibição pública em 2019, na Maison de Tante Léonie-Musée Marcel Proust, museu dedicado ao escritor.

Não conhecemos os nomes de quem, com o mesmo zelo, guarda agora os esboços, as cartas e os “brouillons” de Marcel, comprados a peso de ouro. Quando Jacques Guérin morreu, em 6 de agosto de 2000, estava com quase 100 anos. Tinha sido um dos mais importantes bibliófilos e, oito anos antes de morrer, decidira começar a vender a sua extraordinária coleção. Em 20 de maio de 1992, na sala La Paix do Hotel George V, em Paris, exatamente às três da tarde, foram leiloados manuscritos e edições originais de Baudelaire, Apollinaire, Picasso, Hugo, Cocteau, Genet, Rimbaud e, obviamente, Proust. Esse homem, tão apegado às suas “conquistas”, aos papéis salvos com tanta obstinação, aos objetos miúdos acariciados até chegar às raias do fetichismo, aos grandes personagens que podia até não conhecer, mas eram amados de forma obcecada e maníaca, esse homem que chegou a investigar, a confundir-se entre parentes e amigos só para possuir uma lembrança de um fragmento da vida do escritor, por mais de meio século mantidos escondidos, faz surgir num passe de mágica um tesouro naquela noite na rue Berton, e vende-os 
por quantias exorbitantes.

Como um príncipe renascentista, viveu em seu castelo repleto de maravilhas. Em vão, o presidente François Mitterand foi visitar o Paraclet-Sophie, esperando que a magnífica coleção fosse doada à nova Biblioteca Nacional que estava a nascer por vontade dele. Jacques Guérin portou-se com o ilustre hóspede como se portava com todos: grande cortesia, acolhimento magnífico, ótima conversa. Mas o roteiro continuava o mesmo: quando o hóspede chegava a mencionar o motivo que o levara até ali, o dono da casa interrompia-o gentilmente exclamando, com falsa surpresa: “Ora, mas que pena! A conversa foi tão agradável, que acabamos não reparando que já está ficando escuro. Já é tarde demais para lhe mostrar. Fica para a próxima vez.”

Por mais de cinquenta anos, Jacques Guérin manteve escondidos os seus tesouros, e de repente decide livrar-se deles a pouco e pouco, sabendo que tudo passa, tudo desaparece. Amou as suas conquistas com uma paixão visceral e, de posse delas, guardou-as trancafiadas sem mostrá-las a ninguém, só para o seu próprio prazer. “Quando um homem ama uma mulher, não a compartilha com os outros”, declarou a Franco Marcoaldi, numa entrevista. “Foi o que fiz com os meus tesouros: como Barba Azul com suas mulheres, tranquei-os no porão!” Agora, à beira do novo século, Jacques, esse velho misterioso e indecifrável, apagada toda a paixão, pode serenamente separar-se das coisas amadas: “A minha coleção é como um balão aerostático”, diz a Marcoaldi, “os anos passam e eu voo para o céu.”




Estando em Paris, se tiver curiosidade pode dar uma saltada até ao museu Carnavalet. Não hesite em subir a bonita escadaria da casa que já pertenceu a madame de Sévigné. Nos andares superiores, encontram-se as salas dedicadas à capital francesa no começo do século XX. Depois de passar por algumas, chega-se a um estreito corredor. Procurem dar uma olhada rápida à sua direita onde foi montado o quarto de dormir que já foi de madame de Noailles, claro, luminoso, com a elegante cama estilo Luís XVI, e demorem-se mais, por sua vez, no seguinte. O aposento está protegido por um amplo vidro, com uma placa ao lado informando que os móveis expostos pertenciam ao quarto de Marcel Proust e foram doados por monsieur Jacques Guérin. O panfleto que provavelmente compraram na entrada explicará que “os móveis e os objetos expostos acompanharam Marcel Proust nas três moradias que ocupou após a morte dos seus pais, a partir do momento em que, depois de uma juventude frívola, ficou cada vez mais afastado do mundo para dedicar-se exclusivamente à escrita.




Uma vez que tinha o hábito de escrever à noite, deitado, é nesta simples cama de latão que compôs a maior parte de À la Recherche du Temps Perdu, uma das obras fundamentais da literatura universal”. Arranjados com meticuloso cuidado, com a mesma arrumação que tinham no apartamento da rue Hamelin, ainda podem ser vistos alguns dos protagonistas desta história: a cama de latão coberta pela colcha de cetim azul; a estante dos livros e a escrivaninha, pretas e solenes; os castiçais de madeira dourada; o rosto sério e carrancudo do professor Adrien Proust, sentado numa poltrona renascentista, num quadro atribuído a Laure Brouardel; e, arrumados numa mesinha, os objetos miúdos e preciosos, a Legião de Honra, o prendedor de gravata Cartier e, ao lado da cama, a bengala de passeio revestida de pele de javali; no chão, o tapete antigo que Jacques vira no chão muitos anos antes.




Alguém poderia perguntar: Qual é o sentido de ficar pasmado para aqueles móveis que, nem feios nem bonitos, jazem estáticos diante dos nossos olhos, e porque tão culto e requintado cavalheiro se dedicou com paixão a salvá-los do descuido e da destruição?

A resposta já pode ser encontrada nas primeiras páginas da Recherche: “Talvez a imobilidade das coisas que nos cercam lhes seja imposta pela nossa certeza de que se trata realmente daquelas coisas, e não de outras, pela imobilidade do nosso pensamento em relação a elas. Eu só sei que, ao acordar desse jeito, o meu espírito se agitava tentando, sem conseguir, saber onde eu estava, com tudo, objetos, países, anos, a rodar num vórtice à minha volta, no escuro (...).”

No Museu Carnavalet, cada coisa está como Proust a via ao acordar. Mas, se fosse permitido ao visitante aproximar-se da cama de latão e apalpar com a ponta dos dedos a desbotada colcha azul, ele perceberia com surpresa que falta um retângulo de pano. Jacques, na hora de mandar sair os móveis da sua casa rumo ao museu, recortou uma tira daquele tecido, emoldurou-a e pendurou na parede ao lado do seu quarto de dormir, como uma relíquia, da mesma forma que os fiéis da Idade Média guardavam zelosamente para si um pedaço milagroso da roupa do santo. No mais, cada coisa está no devido lugar como antigamente, a não ser o sobretudo.

O sobretudo já não está lá. Uma etiqueta colocada em baixo, ao lado da poltrona, presente dos herdeiros de Reynaldo Hahn a Guérin, para que cuidasse dela, informa que as condições do sobretudo de Marcel Proust não permitem a sua exibição. O sobretudo repousa numa longa caixa de papelão nos porões do museu, acolchoado entre folhas de papel de seda.

Lorenza Foschini ficou grata a Jean Marc Léri, diretor do museu Carnavalet, por lhe ter deixado ver várias vezes o sobretudo de Proust. E a enegrecida e oxidada, ainda coberta com a colcha azul, a cama de latão do escritor. A cama onde Proust passou noites insones desde os 16 anos, onde escrevera toda a obra e na qual morrera em 18 de novembro de 1922. 



Lorenza Foschini e Jean Marc Léri no Museu Carnavalet

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