quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Uma divagação neorrealista: à italiana e à portuguesa




Na verdade, teria preferido não ter festejado os oitentas. Mas não resisti ao convite da minha neta a assistir ao concerto de Khatia Buniatishvilli com a London Synphony Orquestra regida por Thilerman. Eu sou do tempo dos Scorpions (banda de rock alemã), Sherley Bassey e Frank Sinatra. A manhã é a melhor altura do dia. O gato faz tudo o que eu faço. Tomo a medicação, e atiro a embalagem de cartão ao ar, e o gato dá um salto e apara-a com as mãos. Agora apareço de cadeira de rodas, mas durante cinquenta anos fizera longas caminhadas. Em certos aspetos sinto-me velho, quando vejo Naomi Campbell ou Sharon Stone em programas de beneficência. Mas noutros sinto-me novo quando vejo Bono. Vou para a frente da TV. Vejo Madona quando a idade começou a pesar-lhe.
Vittorio De Sica constrói a célebre sequência que Bazin dava como exemplo: a jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série de gestos maquinais e cansados, limpando as formigas com um jato d'água, pegando o moedor de café, fechando a porta com a ponta do pé esticado por causa do gato.

Quando Zavattini define o neorrealismo como uma arte do encontro – encontros fragmentários, efémeros, interrompidos, fracassados – o que ele quer dizer? Cesare Zavattini foi um roteirista italiano e um dos primeiros teóricos e proponentes do movimento neorrealista no cinema italiano: Umberto D e Ladrões de Bicicleta de Vittorio De Sica; Encontros de Paisá, de Rossellini. O neorrealismo italiano foi um movimento cultural surgido na Itália no fim da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema. 




Considere-se a grande tetralogia de Roberto Rossellini: longe de marcar um abandono do neorrealismo, ele leva-o, ao contrário, à perfeição. Alemanha Ano Zero apresenta uma criança que visita um país estrangeiro (por isso o filme foi criticado, porque não teria o enraizamento social, que se supunha ser uma condição para o neorrealismo) e morre devido ao que vê. Stromboli põe em cena uma estrangeira que da ilha vai ter uma revelação ainda mais profunda porque não dispõe de reação alguma para atenuar ou compensar a violência do que vê, a intensidade e a gravidade da pesca do atum (''foi horrível..."), a força pânica da erupção ("estou acabada, tenho medo, que mistério, que beleza, meu Deus..."). Do mesmo modo, se a banalidade quotidiana tem tanta importância, é porque, submetida a esquemas sensoriomotores automáticos e já construídos, ela é ainda mais capaz, à menor perturbação do equilíbrio entre a excitação e a resposta de escapar subitamente às leis desse esquematismo e de se revelar a si mesma numa nudez, crueza e brutalidade visuais e sonoras que a tornam insuportável, dando-lhe o aspeto de sonho ou de pesadelo. Da crise da imagem-ação à pura imagem ótico-sonora há, portanto, uma passagem necessária. Ora é uma evolução que permite passar de um aspeto a outro: começamos por filmes de balada/deambulação com ligações sensoriomotoras debilitadas, e depois chegamos às situações puramente óticas e sonoras. Ora, é dentro de um mesmo filme que os dois aspetos coexistem, como dois níveis, servindo o primeiro apenas de linha melódica ao outro.

Obsessão, de Luchino Visconti, é visto, com razão, como precursor do neorrealismo; e a primeira coisa a tocar o espectador é a maneira pela qual a heroína, vestida de preto, é possuída por uma sensualidade quase alucinatória. Ela está mais perto de uma visionária, de uma sonâmbula, do que de uma sedutora ou apaixonada. A nova imagem, o que a constituiu é a situação puramente ótica e sonora, que substitui as situações sensoriomotoras enfraquecidas. 

Chamada de atenção para o papel da criança no neorrealismo, especialmente com De Sica (e, depois, na França, com Truffaut): é que, no mundo adulto, a criança é afetada por uma certa impotência motora, mas que aumenta a sua aptidão a ver e ouvir.




O que define o neorrealismo é essa ascensão de situações puramente óticas (e sonoras, embora não houvesse som sincronizado no começo do neorrealismo), que se distinguem essencialmente das sinestesias do antigo realismo. Talvez isso seja tão importante quanto a conquista de um espaço puramente ótico na pintura, ocorrida com o impressionismo. Objeta-se que o espectador sempre se defrontou com "descrições", com imagens óticas e sonoras, e nada mais, perseguindo-a, mais que engajado numa ação.

O neorrealismo italiano, por características comuns entre as obras e por uma ideologia difundida entre os seus realizadores, tanto estética como política, constitui um "estilo de época" do cinema. UM processo de libertação do regime fascista. Era um veículo estético-ideológico da resistência. Hasteava a bandeira da representação objetiva da realidade social como forma de comprometimento político. O seu período mais produtivo e significativo ocorreu entre 1945 e 1948. Seus temas protagonizados por pessoas da classe operária imersas num ambiente injusto e fatalista, sempre encontrando a frustração na eterna busca por melhores condições de vida, foram trazidos por influência do realismo poético francês.

Apesar de haver um certo consenso quanto às suas características, não existe uma delimitação exata quanto ao período de duração do movimento. Seguindo o paradigma observado na maior parte dos estilos estéticos da História da Arte e do Cinema, o nascimento dessa corrente aconteceu gradualmente, levando algum tempo até que se observasse o aparecimento de um filme genuinamente neorrealista. E, da mesma forma, sofreu uma decadência paulatina, sem um ponto delimitado de começo ou fim.

Roberto Rosselini, ainda durante a guerra (e, mais especificamente, no próprio campo de batalha) filma "Roma, Città Aperta" em 1945, inserindo registros de combates verdadeiros junto à dramatização. Rodado clandestinamente, como a própria resistência dos Partisans, o filme situa-se num limiar entre encenação e documento histórico. E, ainda, peça de propaganda contra o regime agonizante. No ano seguinte, realiza "Paisà", cujos 6 episódios acompanham o trajeto dos "libertadores", do sul para o norte, retratando a convivência entre italianos e aliados estrangeiros (com pessoas atuando nos papéis delas mesmas), com seus conflitos e choques inevitáveis.

Mas é com Vittorio De Sica que o neorrealismo produz uma das obras mais expressivas e emblemáticas de sua estética: Ladrões de Bicicleta, 1948, a temática dos problemas sociais, a criança, os atores iniciantes ou desconhecidos, a ambientação in loco, a ausência de apelos técnicos ou dramatúrgicos e ao mesmo tempo um intenso conflito na trama (também escrita por Zavattini). Pela história do homem recém-empregado que tem o seu instrumento de trabalho - a bicicleta - roubado, e assim ameaçado de perder o emprego. De Sica emoldura um quadro da classe trabalhadora urbana de então, assombrada pelo desemprego.

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Este meu ensaio é também um pretexto para falar do livro de Álvaro Cunhal - "Até Amanhã Camaradas", sob o pseudónimo de Manuel Tiago e passado a filme em 2005 - realização de Joaquim Leitão e produção de Tino Navarro. Na sinopse do livro de autoria de Urbano Tavares Rodrigues pode ler-se:
«A humanidade profunda na austeridade de quem entrega a sua vida à causa da libertação de um povo merece todo o fluir da narração, as reações de muitas das figuras. Se é certo que o campo e os camponeses pobres e explorados, os pinhais de névoa, a desconfiança dos humildes, a bravura dos operários nas suas greves aqui aparecem, o tema central é a vida do Partido, as ligações, as casas de apoio, os contactos e precauções, por fim a prisão, a tortura, a morte. No presente um romance histórico, a diversos títulos: como obra de arte que é, como testemunho de alcance sociológico e político, como exercício moral (não confundir com moralizante, no estrito sentido apologético). Em resumo, um grande livro, inesperado e onde os sentimentos mais fortes e puros do homem encontram a simplicidade e o rigor transparente da expressão.»

Por ocasião da estreia do filme, Santiago Carrilho, o antigo secretário-geral do Partido Comunista de Espanha recordou, numa entrevista a um jornal, o seu primeiro encontro com Álvaro Cunhal, assim:  "Éramos os dois clandestinos, foi em 1944, sob a ditadura de Salazar, numa estrada de Sintra, Cunhal chegou de bicicleta, estava magríssimo". No entanto, não fez qualquer referência à reflexão que está nitidamente presente nas páginas de "Até Amanhã Camaradas", nem nos episódios televisivos ou nas cenas de "O homem da Bicicleta".

A ação do filme passa-se na década de 1945 a 1955. Inicia-se com um homem pedalando, algures, sobre uma bicicleta. Noite de temporal. Noutro local da ação, a mulher de Manuel Rato anda na lida caseira. O Homem da bicicleta chega. Bate à porta. Vem ensopado, cheio de lama e com aspeto extenuado. A Mulher vai atender.

Ao fim e ao cabo, Afonso e a bicicleta avançam em direção à “integração social” que leva à “autonomia” de cada um em prol do todo português, iniciada pela Grândola Vila Morena, entoada na madrugada do 25 de abril de 1974, e retomada na reconstrução diuturna de uma nação que, embora radicada no passado, vislumbra um futuro, sob a égide impulsionadora do Até amanhã, camaradas. Se as primeiras eleições democráticas ocorridas em 25 de abril de 1976 ainda não puderam concretizar o ideário proposto pelo comunismo, uma vez que o poder é assumido pelos socialistas, liderados por Mário Soares, a possibilidade de mudança se instaura, projetando para o futuro a concretização de uma nação que é sempre passado.




A ilustração supra, duas páginas de um livro do ensino primário, mostra como era Portugal no tempo do fascismo. Era um país oprimido por uma ditadura retrógrada de Oliveira Salazar e servida pela PIDE, uma polícia política implacável. Mas ainda assim havia quem resistisse. Os comunistas resistiam e organizavam-se para mobilizar o povo na luta pelo pão e pela liberdade, mesmo que isso lhes custasse a prisão, e em muitos casos a vida. Pessoas com nomes fictícios como Vaz, Ramos, António e Paula, militantes e funcionários do Partido Comunista, desenvolviam a sua ação na clandestinidade, não podia ser de outra maneira, reorganizando o Partido nas zonas dos arredores de Lisboa e do Ribatejo, ao mesmo tempo que preparavam jornadas de luta, com greves e marchas contra a fome.

Na biografia de Cunhal, José Pacheco Pereira diz que Cunhal criou da sua clandestinidade o mito do “homem da bicicleta”. A designação contém a visão heroica, cultivada pelo partido, de um líder jovem, enérgico, de cabelo ao vento, pedalando na noite, escapando aos algozes, fazendo da bicicleta a metáfora da bravura. Havia, na verdade, dentro do partido comunista português, os homens da bicicleta, mas Álvaro Cunhal, sem dúvida corajoso e ativo, era, segundo Pacheco Pereira, o homem da caneta, o homem da palavra, o homem das reuniões, o burocrata-mor do grupo. O alegado homem da bicicleta passou oito anos a fugir da polícia. Os anos de 1940 a 1943 foram os mais difíceis, tanto pela repressão da polícia, como pela extrema penúria em que viviam os comunistas. A miséria do racionamento, que afetou todo o País, repercutiu-se com dureza nos clandestinos da política.


Em novembro de 1940, Álvaro Cunhal saiu da prisão e encontrou o partido comunista português dividido, desorganizado e quase inativo. O pacto germano-soviético descredibilizara o PCP e desorientara os seus dirigentes. O partido, bipolarizado, entrou em severo conflito interno. E foi sobre essa indisciplina que o poder de Álvaro Cunhal se foi impondo até se tornar indisputado. No dia 4 de maio do ano seguinte ainda se deixou fotografar num passeio de barco pelo Tejo na companhia de Dias Lourenço e outros camaradas. Meses depois, entrou na clandestinidade. Abandonou a vida comum, as deambulações pela rua, as idas ao cinema, os encontros com os amigos. Tornou-se um foragido, sempre fechado, sempre a mudar de casa para fugir da polícia.

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