sábado, 18 de setembro de 2021

Não existem raças humanas biológicas


Este artigo visa analisar as inteligibilidades sobre raça produzidas pelos processos de racialização. A
 inteligibilidade hegemónica sobre raça está baseada em características fenotípicas, principalmente cor de pele. É um fenómeno social, sistémico, estrutural em algumas sociedades. No processo de racialização, diferentes sociedades usam diferentes critérios para racializar os indivíduos. Por exemplo: Uma colega médica, vinda do Brasil para Portugal, era conotada como a médica brasileira, devido ao sotaque brasileiro e a certos vocábulos específicos, mas de resto era mais uma branca como as portuguesas; no Brasil era considerada mestiça; depois conseguiu uma bolsa e foi para os Estados Unidos estudar, onde passou a ser negra. A mesma pessoa em três sociedades é racializada de três formas diferentes. Um bom exemplo de como é a sociedade e não as características pessoais de cada um que definem a forma como os indivíduos são racializados, isto é, como lhes é socialmente atribuída uma raça. Uma vez atribuída socialmente uma raça a cada pessoa, esta serve para a discriminação, a segregação, a perseguição, o abuso e a exploração.

Há abordagens que associam o racismo com a expansão europeia. Mas esta abordagem está errada, porque não explica fenómenos parecidos em outras partes do mundo, por exemplo, o tráfico saariano de escravos africanos subsaarianos organizado por árabes, ou a maneira como os japoneses trataram os chineses e os coreanos durante a Segunda Guerra Mundial, que certamente seriam definidos como racistas se os europeus fossem os autores. É importante elaborar uma definição de racismo que não seja tão redutora e parcial, incidindo apenas e estritamente à Europa. São processos históricos, como foi o da expansão europeia da época moderna. Por conseguinte, o racismo foi praticado em todo o lado, por outros grupos em outras circunstâncias. 

A racialização – o processo de essencializar, ou reificar, um grupo étnico - pode ser positiva ou negativa, ou talvez uma mistura. Geralmente grupos que racializam outros de maneira negativa também se racializam a si mesmos de forma positiva. A distinção entre racialismo e racismo é útil precisamente porque a racialização nem sempre é feita para justificar dominação racial. O racialismo é a tendência de perceber características intrínsecas e duradouras de um grupo de suposta origem comum, como é exemplo o caso dos ciganos ou dos judeus. Ao passo que as ideologias racistas são formas de afirmação de uma superioridade de um grupo sobre outro, nem sempre maioritário, para justificar a ocupação do poder político e a dominação. Neste caso, o racismo inclui dois elementos: a dominação étnica e uma ideologia que essencializa e categoriza negativamente o grupo subordinado, justificando a sua subordinação.

O simples preconceito contra outro grupo, o etnocentrismo ou a xenofobia não constituem, necessariamente, o racialismo nem o racismo. Os grupos de origem comum quase sempre acreditam que o seu modo de vida é mais honrado que o de outros grupos, e sentem que algumas práticas de outros grupos são repugnantes. Essas posturas tornam-se racialistas quando as práticas do outro são vistas como intrínsecas a esse grupo. Os nacionalismos tendem a racializar-se mutuamente. Afirmações como “os italianos têm sangue quente”, “os holandeses são frugais” ou “os franceses são arrogantes” são exemplo do que representa a essencialização de uma nacionalidade. Mas estas representações não podem ser consideradas racistas porque não são agressivamente negativas – podendo ser acompanhados de outras afirmações positivas (“os italianos valorizam a família”, “os holandeses são bem organizados”, “os franceses têm bom gosto”), não fazem parte de ideologias enfatizando a inferioridade da coletividade assim classificada, e não acompanham práticas de dominação sistemática de algumas nacionalidades por outras.

O racialismo constitui racismo quando afirma a inferioridade como essência do outro, justificando práticas de dominação racial. Neste caso, a racialização é mais agressivamente negativa, envolvendo uma estrutura maior de afirmações inter-relacionadas e explícitas, ou seja, uma ideologia racista. Também é imposta publicamente ao grupo dominado. Não fica restrita aos sentimentos internos do grupo que se crê superior. A violência é uma maneira particularmente eficaz de categorizar o outro. O  racismo tanto pode ser ideológico, dos intelectuais, como popular, que decorre do hábito e da perceção popular, muitas vezes aproveitada e estimulada por partidos políticos de extrema direita reificando ainda mais os traços do populismo.

A crença na existência de “raças” é uma consequência do racismo; o racismo não é consequência de diferenças raciais preexistentes. O que há são grupos racializados ou raças sociais. Portanto, a reprodução acontece no dia a dia, com a recriação quotidiana das relações sociais que se racializam de geração em geração. O racismo não é somente uma ideologia, mas também um conjunto de disposições, esquemas de perceção e estratégias de ação – ou seja, um aspeto do habitus – que reforça e legitima a dominação racial. O habitus racial do grupo dominante se reproduz pela internalização das divisões raciais do mundo social, o que implica a possibilidade de mudanças e reformulações no processo de reprodução, sobretudo em circunstâncias novas.

O habitus racial é suficientemente forte para fixar instituições racializadas, porque o habitus é um determinante de longa duração na cultura das sociedades. As disposições e formas de perceção racializadas internalizam-se e perduram. No caso dos imigrantes, pessoas recém-chegadas a um país vindas de outros contextos, geralmente resistem adotar o habitus racial predominante do país de acolhimento. E isto, naturalmente, levanta imensos problemas, que exige das autoridades um esforço significativo para a integração dessas comunidades. É claro que depende sempre de circunstâncias específicas que tanto acarretam perdas como também podem acarretar ganhos para uns e outros. Em geral, a internalização do habitus racial por esses migrantes é respeitada por mecanismos de sobrevivência, mas não deixa de ser apenas superficial. As camadas mais profundas mantêm-se preservadas. E, paradoxalmente, são estas camadas que são transmitidas à geração seguinte. Daí que não deva ser surpreendente que é nas gerações seguintes, nos filhos de imigrantes já nativos no país de acolhimento, que se levantam os verdadeiros problemas de integração que vão espoletar os ressentimentos da racialização.

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