sábado, 11 de setembro de 2021

O que cai fora dos binários




The Economist, 4 de setembro 2021, a revista britânica, toma posição contra a cultura do cancelamento e a censura de uma esquerda autoritária iliberal, cada vez mais elitista e agressiva. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha 70 a 80% dos académicos não-alinhados confessam-se hostilizados pelos colegas e pelos estudantes. E 68% dos estudantes admitem que não dizem o que pensam, não vão os colegas considerar as suas opiniões ofensivas. Ou seja, há uma “esquerda iliberal” que tem vindo a entreter-se a traçar limites à livre expressão. E o número de doutrinados ou de noviços é já significativo: 40% dos nascidos já neste milénio (os chamados “millennials”) acham que devem banir-se teses e opiniões ofensivas para “as minorias”. Segundo The Economist, estão também zelosamente empenhados na denúncia, julgamento, punição e expulsão dos hereges.

Em 2018 Colin Wright, da Penn State University, escreveu dois artigos em que defendia que o sexo era uma realidade biológica e não uma construção social. Passou a ser um blasfemo, um desmancha prazeres, machista, transfóbico, racista; pronta acusação de prática de “ciência racialista” e consequente expulsão da universidade. Ainda teve a solidariedade privada de alguns colegas, mas ninguém se atreveu a contratá-lo. Na Universidade da Califórnia, os concorrentes a lugares académicos têm de preencher declarações sobre como pensam “promover a diversidade, a equidade e a inclusão” – e são admitidos ou recusados mais em função desses bons propósitos do que de outros requisitos curriculares. Vale a pena ler a carta de demissão de Peter Boghossian, da Portland State University, um pensador e professor de Filosofia, ateu e de esquerda, que ousa questionar a ortodoxia e blasfemar contra a transformação das universidades de “bastions of free thinking” em “social justice factories”, assinou a sua carta de demissão dizendo que a missão parece não ser já a de ensinar estudantes a pensar, mas a de treinar ativistas na arte de bem macaquear “as certezas morais dos ideólogos.”

Na Escócia, um diploma de março de 2021, diz que o “crime de ódio” é todo o ato “verbal ou físico”, com origem no “preconceito”, que possa “prejudicar a coesão da sociedade” ao ofender “as comunidades minoritárias”. Encoraja os ofendidos a comunicarem por email ou por telefone qualquer manifestação de “ódio às minorias”. As vítimas deste crime são todos os que, por motivos “de deficiência, de raça, de religião, de orientação sexual ou de identidade transgénica”, se sintam ofendidos por terceiros. Quem tenha conhecimento das ofensas é encorajado a denunciar os prevaricadores: “We want you to report it.” Já existia o crime de blasfémia que consistia em dizer ou escrever palavras contra Deus e a religião, com intenção de causar perturbação e desordem na comunidade. Agora é o “crime de ódio”, que, segundo The Economist, pode levar até sete anos de prisão. Um programa mais vasto, portanto, que abre toda uma panóplia de novas possibilidades.

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‘queer’, é uma espécie de mnemónica para contestar o binário homem/mulher; masculino/feminino; heterossexual/homossexual, etc. Por exemplo, as ligações indiferenciadas que normalmente se faz com sexo, género e sexualidade, são muito contestadas pelos teóricos ‘queer’, porque consideram que são termos que não têm necessariamente nada a ver uns com os outros.

‘woke’, como um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma perceção e consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano "stay woke", cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões.

‘Foucault’, o discurso é central nas questões de poder, tais discursos perpetuam-se na cabeça das pessoas na forma de preconceitos. Preconceitos que forram um lastro de verdades endémicas que impregnam toda a sociedade. Para Foucault, em divergência com filósofos marxistas como Marcuse, o poder funcionava mais como uma grelha percorrendo todas as camadas da sociedade, determinando o que as pessoas consideravam verdade. É através do discurso, do sistema da linguagem em que todos participamos, que o poder se exerce e se sente.

‘biopoder’, sistema de socialização, o principal responsável pelo conhecimento, segundo Foucault. Assim justificou o discurso científico que se instituiu como autoridade suprema, responsável por racismos de Estado, em nome da urgência biológica e histórica. E foi assim que esta visão se tornou uma das crenças centrais do pós-modernismo aplicado ao ativismo pela Justiça Social de hoje.

No campo dos estudos culturais, em alguns departamentos académicos, existem vários projetos políticos que têm como objetivo acabar com a normalidade. Para isso trabalham uma série de teorias filiadas nestas últimas corrente pós-modernas. Foucault, estas teorias fogem à história para teorizarem que categorias e discursos, que no passado foram aceites, obviamente como sensatos, ou verdadeiros em seu próprio tempo, mas hoje não devem ser aceites como tal. Esta lógica é usada para argumentar que as categorias que parecem “normais” para nós, são construídas socialmente por discursos dominantes.

Académicos pós-modernos, inspirados em Foucault e Derrida, partilham da crença que caracterizar ou categorizar, seja o que for, deriva de um discurso e de um conhecimento que se legitima para restringir e oprimir. E foi assim que a ideia de Foucault – de que a sexualidade é um produto do discurso – revolucionou o ativismo político gay e lésbico da atualidade. E é preciso que se diga que, se a ‘Teoria queer’ é incoerente, é propositada. Não se trata de nenhum erro epistemológico.

É claro que nenhum cientista sério pensa que o comportamento humano é apenas comportamento animal. Não ignora que há no comportamento humano muito produto cultural. E não ignora que a cultura muda com o tempo. E que muitas das nossas ideias são construções sociais maleáveis. Hoje poucas pessoas são essencialistas biológicas puras. Mas estas teorias pós Foucault e Derrida são outro tipo de conversa. Por paradoxal que possa parecer, os teóricos pós-modernos são de uma grande radicalidade no seu construtivismo social. E é por este radicalismo, no desprezo pela biologia, que as suas teorias são muito limitadas. Os trabalhos dos neurocientistas, que fundamentam as diferenças biológicas que existem subjacentes aos comportamentos dos homens e das mulheres, já não deixam duvidas a ninguém. Mas tal conhecimento ainda é muito mal recebido por estes teóricos e ativistas, porque alegam que estas disciplinas científicas ainda estão sob o controlo do poder de uma perspetiva masculina, como é o caso da neurociência.

Ora, tal posicionamento absurdo tem a sua razão de ser, dado que não lhe são alheios os 3 tomos da História da Sexualidade de Michel Foucault:
  • A vontade de saber, 1976
  • O uso dos prazeres, 1984
  • O cuidado de si, 1984

Michel Foucault morreu em Paris a 25 de junho de 1984, com 57 anos, vítima de complicações causadas pela Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, a tal SIDA, causada por um vírus, o vírus da imunodeficiência humana (VIH).



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