sábado, 9 de dezembro de 2023

Maimónides



Maimónides [Moisés ibne Maimom] estivera no reino dos Cruzados com o pai e o irmão David, em 1165, mas por fim não permanecera por lá. E isso apesar da solene injunção em sua Mishná Torá, de que era melhor viver na Palestina, entre gentios, do que numa cidade estrangeira entre muitos judeus, e que morar na Terra Santa era, em si mesmo, uma maneira de expiar pecados e recomeçar do zero (e nisso acreditavam também os cruzados). 

A hostilidade incessante e mútua entre cristãos e muçulmanos era uma oportunidade para os judeus. Odiavam um ao outro mais do que qualquer um deles odiava os judeus. Nenhum dos dois lados excluía os judeus de toda a Palestina, embora não fosse nada fácil morar ali. Um punhado deles, concentrados sobretudo na Galileia, visitava os túmulos dos ancestrais, comerciava, rezava e se debruçava sobre o Talmude. O reino dos Cruzados reinstituíra a antiga proscrição que os afastava de Jerusalém, a não ser em questões de comércio e em dias de oração e jejum, quando os cristãos assistiam com sinistra satisfação às lamentações dos judeus junto do arruinado Muro Ocidental da área do Templo. Era para isso que mantinham os judeus por ali, como testemunhas perpétuas de seu erro cego.

Na época em que Maimónides e sua família fizeram a viagem, a peregrinação já incorporava um conjunto de expectativas da diáspora (da mesma forma como hoje), promovidas sobretudo pelos intensos poemas de saudades, as grandes tempestades da alma, provocadas pelos versos de Yehudah Halevi, muito conhecidos no mundo Sefardita. Maimónides passou por sua tempestade mais ou menos no fim da primeira semana de viagem e registou o pavor de que um vagalhão gigantesco fizesse o navio em pedaços, suas orações trémulas e o alívio ao ver que Deus por fim julgara conveniente fazer com que a tormenta amainasse. Comprometeu-se a jejuar e dar graças, todos os anos, no dia de sua chegada. 

A viagem, iniciada num dos portos do norte de África, talvez Ceuta, não foi, pelos padrões da época, notavelmente longa — talvez pouco mais de um mês, 
espremidos com outras quatrocentas almas no porão, junto com animais e objetos diversos, como as selas pesadas de que precisariam ao chegar a Acre. Esses peregrinos estavam longe de adivinhar sobre o que encontrariam ao chegar. Ninguém imaginaria encontrar o Paraíso, mas, como escreveu Maimónides, dar ao menos quatro passos naquele solo garantiria ao peregrino a vida eterna. Yehudah Halevi desaparecera antes de poder comunicar qualquer sinal de desencanto, e o que restava eram seus cantos triunfais de saudades e exultação. Como recomendava a outros, Maimónides talvez tenha beijado as pedras e o chão ao pisar a Palestina, mas depois de pouco mais de um ano lhes deve ter dado à despedida.

Em comparação com o Egito, onde acabou por radicar-se, ele talvez tenha achado a Palestina um fim de mundo, do ponto de vista cultural. A cidade de Acre, onde ele havia chegado em maio de 1165, seria a sua primeira experiência em uma cidade cristã, ainda que de uma espécie bastante peculiar: um porto bastante fortificado; ruas muito mais largas e imponentes do que em Córdoba. Eram edifícios pomposos em que tinham sede as ordens dos Templários e dos Hospitalários. Igrejas por todo lado. Durante 70 anos a Palestina foi cristã.  No outro lado do extremo cristão, Afonso I, rei de Portugal, em 6 de dezembro de 1185 faleceu, em Coimbra, com 76 anos. E depois, em 1187, veio Saladino.

Não se sabe bem porquê, mas Maimónides levou seis meses para pôr os pés em JerusalémÉ possível que a Jerusalém da imaginação lamentosa precedia e condicionava uma visita pessoal à cidade. Ele deve ter recordado as palavras de Halevi, que os judeus, por conta dos seus pecados, tinham sido punidos com a transformação da cidade de David e Salomão em “covil de corujas e chacais”. E Maimónides frequentemente ponderava se os judeus, impuros como estavam, deveriam ou não entrar nas dependências do Templo, mesmo naquele estado de degradação. Dando rasgões violentos na sua roupa, que transformavam as vestes em trapos, lá foi. Maimónides tivera o cuidado de acrescentar que os restos da roupa só podiam ser consertados com grosseiros pontos espinha de peixe, que se desfaziam ao menor puxão.

Um pequeno número de judeus vivia em Jerusalém. Eram pregoeiros, mendigos, parasitas, acompanhantes de turistas a rochedos e túmulos, exploradores da Torá para crédulos. E havia outra coisa que talvez o tenha feito desejar sair dali. Mas o al-Aldalus estava perdido para sempre. Desde a conquista pelos Almóadas, vinha crescendo a emigração judaica dos principais centros do Magreb — Kairouan, Marrakech e Fez — para Fustat. O Egito ainda estava nas mãos dos califas Fatímidas, do ramo xiita do islão, embora não por muito tempo. Entretanto, Fustat não era apenas um próspero centro de comércio e cultura, mas um lugar onde a devoção e a filosofia eram inseparáveis, e isso pode ter sido um dos atrativos para Maimónides. A sua fama como médico sábio e competente abriu-lhe as portas na corte do califado. 

Em pouquíssimo tempo ele se tornou o médico de Shawar, vizir do califa, e do poderoso ministro al-Qadi al-Fadil, que viu no jovem judeu um intelectual e filósofo, como ele. Além disso, a carreira de Maimónides foi ajudada pelo facto de escrever uma prosa elegante e rimada, e também por ser um médico de múltiplas especialidades, sendo uma delas o amplo conhecimento de venenos e antídotos, sempre importante no perigoso mundo político muçulmano. Maimónides escreveria tratados sobre praticamente tudo o que afligia as pessoas, desde hemorroidas e asma até impotência (sua receita secreta para obter e manter uma forte ereção consistia em esfregar no membro prejudicado uma certa espécie de formigas, moídas e mescladas a uma emulsão de óleos). Maimónides era tão hábil que o vizir Shawar, talvez para adular o cruzado Amalric I, seu aliado, quis que ele tratasse o rei cristão de Jerusalém, que estava acampado em Ascalon. E Maimónides já era indispensável a ponto de poder recusar-se a isso sem sofrer consequências negativas. 

Maimónides, em 1172, recebeu do Iêmen — que no passado fora um reino judeu — uma carta que falava de uma terrível campanha de coerção que um rebelde messiânico, cujo regime fazia o dos Almóadas parecer leniente, vinha infligindo aos judeus. Ao receber essas más notícias, ele citou palavras do Livro de Samuel. O que estava acontecendo no Iêmen parecia ser um facto de perseguição que poderia ocorrer em qualquer parte do mundo muçulmano; que a polidez e até a confiança com que eram tratadas pessoas como ele não passavam de uma concessão, condicionada à sujeição institucionalizada, migalhas culturais atiradas pelos punhos dos senhores. “Lembrem-se”, escrevia ele a todos aqueles que lessem a Epístola no mundo muçulmano.

Um ano depois, em 1173, Maimónides foi atingido por uma calamidade que não podia ser atribuída aos árabes: a morte de seu irmão David num naufrágio no oceano Índico, durante uma viagem de negócios. 
Para Maimónides, todos os sábios da Antiguidade judaica viviam de trabalhos manuais, como aguadeiros ou lenhadores, e ainda assim achavam tempo para estudar à noite, e ele se orgulhava de sua lida diária como médico, que se inseria nessa tradição da nobreza do trabalho. Desse modo, era o trabalho de David que punha comida na mesa de duas famílias. O negócio obrigava David a fazer longas viagens ao Oriente com certa frequência, a fim de adquirir bens valiosos que pudessem ser vendidos no mercado egípcio ou reexportados. No trajeto pelo deserto, bandos de facínoras homicidas emboscavam as lentas caravanas de camelos. No mar, piratas atacavam navios, levavam as cargas e cativos, pelos quais pediam resgate (nas mesmas águas em que ainda hoje atuam à solta). Os próprios navios sabidamente faziam água e costumavam afundar durante tormentas. Sem dúvida, o próprio David também tinha esses receios, mas havia muitos outros comerciantes judeus que cumpriam esses percursos continuamente, de modo que ele se fazia de forte e enfrentava os perigos.

Não há informações precisas sobre quando e onde ocorreu o naufrágio do navio em que David viajava, e só sabemos, pela carta angustiada de Maimónides para o correspondente em Acre, que ele morreu afogado. Com ele, acrescentou Maimónides, estava quase toda a fortuna da família, necessária para adquirir as gemas. Agora que se fora o arrimo das duas famílias, ele teria de prover o sustento da viúva e dos filhos do irmão. Entretanto, a perda da pessoa que ele mais amava no mundo provocou uma espécie de paralisia traumática que o deixou “prostrado e acamado” durante mais de um ano, com graves inflamações, febre e confusão mental. Essa era uma doença que o maior médico do Egito não era capaz de curar. Toda vez que ele encontrava um documento comercial com a caligrafia de David, voltava ao estado de grave depressão.

No Guia dos Perplexos, Maimónides endossou a opinião de Alexandre de Afrodísias, comentador de Aristóteles, para quem a ânsia de disputas decorria de três causas fundamentais: a primeira era o impulso de dominação; a segunda, a simples subtileza complexa do tema em debate; e a terceira, a ignorância daqueles que competiam entre si em busca de uma conclusão irrespondível. A essa lista Maimónides somou o peso morto do hábito, a que acrescentou uma censura veemente “àqueles pregadores e comentadores que julgam que um conhecimento de palavras e uma interpretação de palavras é ciência, e em cujo entender prolixidade é perfeição”. Portanto, sua missão, que lhe ocupou o resto da vida, era primeiro elucidar e revigorar a essência da vida judaica, materializada na Torá, de modo que pudesse ser internalizada na conduta quotidiana; e depois construir um corpus de argumentação capaz de blindar os judeus ao ataque, que estava por vir e quase com certeza violento, contra suas crenças, talvez contra sua própria existência. Ainda em Fez, ele dera início à primeira parte do trabalho: o Comentário sobre a Mishná.

Assim, a Mishná Torá estava cheia de orientações sobre comportamento: «Não convide alguém para jantar se sabe que o convite não será aceite; evite a bajulação; quando discordar de uma pessoa, nunca o faça de uma forma que a exponha à vergonha e à humilhação públicas; coma e beba bem (sobretudo no Shabat), mas não exagere a ponto de perder o bom senso. Só more em cidades ou vilas onde haja um médico, um cirurgião, uma casa de banho pública, fontes confiáveis de água corrente, uma escola, um professor, um escriba, um tesoureiro honesto de obras beneficentes e um tribunal.» Nos negócios, era imperativo seguir o mais alto padrão de ética. Dar emprego aos pobres era cumprir uma grande mitsvá. E talvez o mais profundo exemplo da sabedoria ética da Torá fosse a determinação de evitar toda a espécie de refinamento no enterro dos mortos, por mais ricos que fossem o defunto e sua família.

Maimónides constituía a um só tempo a exceção e a regra no pensamento e na literatura judaicas, na medida em que se sentia dividido, a cada dia, entre as exigências do físico e da política. Próximo como estava dos poderosos no governo de Saladino e até do próprio monarca, de quem era médico, ele compreendia a política tanto no nível prático quanto no filosófico. Esse programa passo a passo foi exposto no Guia dos Perplexos, que, embora prodigioso em sua intensidade intelectual, cria tantas perplexidades e inconsistências quanto as que pretende solucionar. No entanto, é tal a lucidez e, vez por outra, a beleza do pensamento de Maimónides e de sua prosa, que inevitavelmente os leitores se deixam levar por ele. Cada vez mais, esses leitores eram judeus, sobretudo depois que Maimónides consentiu em que um amigo mais jovem, Samuel ibn Tibbon, traduzisse a obra para o hebraico. 
Maimônides morreu em 1204, perto dos setenta anos.

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