quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Modernidade



O termo "Modernidade" está ligado a dois termos que se tivéssemos que os considerar como mitificados diríamos ciência e democracia. E partir daí podemos derivar outras expressões respetivamente razão e liberdade. A modernidade se acompanha comumente da vida urbana, do individualismo, da emancipação da mulher e da extensão da educação a todos. Uma sociedade moderna tem, em geral, a forma política do Estado soberano, limitado por fronteiras com outros Estados, e estes pertencem a uma “sociedade internacional”, que obedece a certos valores, normas e regras consensuais.

Tudo isso descreve as linhas matrizes que têm regido o desenvolvimento do chamado Mundo Ocidental. A sociedade moderna se desenvolveu baseada em, e contra, formas de convivência social anteriores, “tradicionais”, eliminando-as depois. Essa “modernização”, que se inventou historicamente na Europa ocidental e América do Norte, é mais eficiente do que todas as outras (justamente por causa desses ideais, dizem seus defensores) e, portanto, teve mais invenções, maior produtividade económica e supremacia militar. Em consequência, a modernização se expandiu nos séculos passados a partir de sua base ocidental pelo mundo inteiro, conquistando política, económica e culturalmente as demais sociedades: é o processo da colonização, que levou à exploração das sociedades não ocidentais.

Pela descolonização, então, as sociedades colonizadas adotaram os princípios que subjaziam àquela modernidade, tão bem-sucedida no Ocidente (aparentemente): ideias como autodeterminação, nação, desenvolvimento. Eles reconquistaram a independência, constituíram-se em Estados nacionais que integraram a sociedade internacional enquanto novas unidades e começaram o seu próprio desenvolvimento socioeconómico com base nos moldes copiados do Ocidente - seja na versão liberal, seja na forma revolucionária do socialismo, mas ainda assim ocidental.

Além de pressupostos ideológicos, que hoje faz parte da Teoria Crítica vigente ,o processo da modernização foi um facto. O debate sobre a modernidade, prós e contras, e o seu tempo e modo, ainda não está encerrado. O que é inegável, no entanto, é que algo como a modernidade existe, que ela tem penetrado as sociedades e que ela provoca hoje – após tentativas de imitação ou adaptação – reações de rejeição. 

A problemática das identidades coletivas conflituosas do melting-pot forjou uma espécie de religião a que hoje se dá pelo nome de Wokismo - uma onda de loucura e intolerância que está a varrer o mundo. O seu objetivo é desconstruir todo o património cultural e científico construído pela Modernidade. Woke é uma espécie de sigla do politicamente correto. É uma vaga de irracionalidade e de absurdo que começou nos campus universitários dos Estados Unidos da América, e que ainda está em curso. Não estando ainda no ponto de desaparecer tão cedo, tal facto se deve ao combustível das atuais redes sociais que ainda está para durar. 

A ideologia woke, que inicialmente estava contida nas cercanias do campus, hoje está propagada como se de uma epidemia se tratasse, que infeta a mente de pessoas sobretudo sem experiência de vida, ou seja, com os pés pouco assentes na terra. Como todas as ideologias extravagantes, as hostes de militantes ferozes tem engrossado as fileiras das redes sociais, que depois se mobilizam com as convocatórias para as respetivas manifestações de rua. Hoje em dia, não há uma cidade europeia ou americana onde aos fins-de-semana pontue nas ruas uma manifestação desses movimentos radicalistas inacessíveis à razão.

O debate faz parte do “choque de civilizações”. Pode-se dizer que ambas as visões são exageradas, a começar pelo facto de que o mundo muçulmano inclui uma miríade de contextos dispersos por três continentes; contudo, o interesse que o debate desperta indica a relevância atual do tema para uma avaliação do islão. Nos Bálcãs, no Médio Oriente e na África do Norte, cristãos e judeus se educaram e passaram pelo processo de modernização muito mais rapidamente do que os muçulmanos que foram seus senhores. Quebrou-se a relação de superioridade/inferioridade que permeara por doze séculos o seu relacionamento. Num mundo muçulmano que estava se enfraquecendo, as minorias tinham demandas mutuamente incompatíveis: por um lado, queriam continuar beneficiando do contrato de proteção e das vantagens clientelistas que isto implicava; por outro, começaram a militar em prol da igualdade civil completa. Os mais radicais pediam a autonomia comunal ou até a independência, reivindicações que não eram compatíveis.

A situação atual de muitos Estados muçulmanos a qualidade da coexistência é nitidamente pior do que em épocas anteriores. A intromissão da modernidade se reflete em tentativas, apoiadas pelos recursos do Estado e imensamente maiores do que na época tradicional, de impor uma uniformidade cultural. Na Arábia Saudita, só o wahhabismo é aceite; nem cristãos nem muçulmanos de outras tendências (como os xiitas) têm liberdade de culto. No Irão, o sunismo é discriminado. No Paquistão, aumentaram nos últimos anos os atentados contra xiitas; nas Molucas, na Nigéria há crises frente aos cristãos. Na tolerância para com o “outro”, o islão, que uma vez esteve na vanguarda, tem sido nos últimos séculos ultrapassado pelo Ocidente modernizador.

O desequilíbrio que pôs fim à coexistência foi provocado, em primeiro lugar, pela crescente influência ocidental. É inegável, contudo, que a posição das minorias no Médio Oriente, por tolerável que fosse, era baseada numa desigualdade que não condiz com a sociedade moderna e que hoje só os mais extremos islamistas preconizariam restaurar. Em geral o islão, com exceção de poucos pensadores, ainda não aceitou o princípio do pluralismo.

Os judeus eram bem integrados no mundo muçulmano pré-moderno, ainda que seu tratamento variasse (como o dos cristãos) em função do tempo e do espaço. As épocas e lugares de maior tolerância foram a abássida, a Espanha medieval e o Egito fatímida mas, mesmo nestes contextos, tal tolerância foi pontuada por episódios de perseguição. A situação se deteriorou no fim da Idade Média, mas voltou a melhorar no Império Otomano. Às vésperas da época contemporânea, ela foi melhor na Turquia, no Iraque e no Egito, e pior no Marrocos, Iémen e Irão. No século XIX, as comunidades judaicas no mundo muçulmano aproveitaram o mesmo processo de modernização e emancipação que os cristãos. Contudo, essas comunidades judaicas não existem mais, tendo sido transplantadas nos anos 1940-1960 para Israel, onde os “judeus orientais” constituem atualmente a metade da população.

Um antissemitismo mais fanático só se introduziu no século XX, justamente no contexto da luta pela Palestina. Ideologias antissemitas europeias exerceram maior influência – primeiro levadas por cristãos árabes e propagadas depois pelos nazis, que adicionaram o elemento racista, antes ausente. Essas sementes germinaram, e teorias conspirativas para “explicar” as vitórias de Israel pela essência “malvada” dos judeus são atualmente bastante populares no mundo árabe e em outras sociedades muçulmanas. Suas raízes, todavia, se encontram na Europa cristã e não no islão. Exacerbação discursiva que, por sua vez, realimenta um conflito que parece ilustrar, por excelência, a problemática coexistência na modernidade do islão com o “outro”.


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