quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Fundamentalismos



O eterno problema da falta de entendimento entre as três religiões monoteístas com origem no Médio Oriente, e onde ainda aí se mantém uma forte tensão militar por via da sua importância geopolítica, volta novamente a prender a atenção dos líderes mundiais. Neste momento o problema é mais de cariz político do que religioso, embora nunca se possa adormecer esse lado da questão, em que o mundo islâmico ainda não se livrou dos seus fundamentalismos.

Para entender a crise, duas escolas interpretativas se opõem no Ocidente. M
uito mais do que simples opiniões, são paradigmas que refletem duas cosmovisões opostas. Também é claro que ambas as correntes dispõem de fortes argumentos e têm razão parcial. Na realidade, “a luta pela reação ao islã” exemplifica num microcosmo as grandes batalhas ideológicas travadas no mundo ocidental desde que a colonização impôs ao colonizador um esforço para um melhor entendimento do colonizado.

1) a versão internalista, ou reacionária - em que o próprio islã é o problema; a longa história de intervenções ocidentais no mundo muçulmano não foi apenas negativa, pois houve também oportunidades positivas que foram desperdiçadas. O mundo islâmico permanece preso num círculo vicioso de rancor, autopiedade, teorias da conspiração e violência. A raiz do problema seria o próprio islão, o mais importante fator da falta de desenvolvimento do mundo muçulmano. O islão, após sua época de glória na Idade Média, não conseguiu mais se renovar e não providencia soluções para uma modernização das sociedades muçulmanas. E ainda impede que os muçulmanos adotem plenamente os princípios da modernidade.

2) a versãoo externalista rejeita tal visão do islão. Minimiza a responsabilidade das próprias sociedades muçulmanas por sua miséria e aponta, ao contrário, para fatores externos. Assim, tanto a desunião do mundo muçulmano como a existência de estruturas autoritárias seria resultado de intromissões ocidentais. A turbulência é a reação à integração do mundo muçulmano numa estrutura global injusta e desequilibrada em termos de poder e riqueza. A posição geoestratégica crucial do Médio Oriente e da Ásia meridional atrai a permanente atenção ocidental para garantir o controlo dessas regiões. E a necessidade de o Ocidente administrar o petróleo – acesso, preço, lucros – leva-o a intervenções militares contra quaisquer regimes que possam desafiá-lo.

Maxime Rodinson, Edward Said e John Esposito estão entre os principais representantes mais progressistas que defendem que o islão constitui apenas um fator, e não necessariamente o maior, que molda os reflexos e as escolhas dos países muçulmanos, que diferem enormemente entre si em sua história, estrutura socioeconómica, composição étnica, tipo de religiosidade, opções económicas. O verdadeiro problema está na rejeição do islão pelo Ocidente, estrutura ocidental de conhecimento como poder, que criou uma imagem artificial, inverosímil e hostil do mundo muçulmano – um imaginário que sustenta o projeto de dominação que permanece após as independências meramente formais dos Estados muçulmanos. O Ocidente projeta sobre um Oriente (não existente) seus próprios aspectos não reconhecidos e rejeitados. Seria isto que manteria a desigualdade. 
Mesmo que as manifestações do islamismo nem sempre agradem ao olhar eurocentrista, elas são apenas uma reapropriação de sua autenticidade cultural na busca de um mundo mais equitativo. O desenvolvimento e a democratização do mundo muçulmano acontecerão naturalmente (embora não necessariamente seguindo o modelo ocidental), quando o capitalismo global, e os EUA em particular, deixarem de intervir no mundo muçulmano. O Ocidente deveria concentrar-se em seu próprio racismo. Em última rácio, o próprio fundamentalismo muçulmano acaba por  representar uma reação saudável contra a “colonização epistemológica” ocidental. 

 Nos anos 50 e 60, o paradigma predominante ainda partiu da superioridade do modelo ocidental (democracia parlamentar pluralista, secularismo, liberdades individuais, burocracias impessoais, capitalismo industrial) mas acreditava-se que tal êxito estava ao alcance de quaisquer povos “subdesenvolvidos”, inclusive dos muçulmanos, mediante a adoção da “modernização”. Visões que contestavam esta visão – marxistas em particular – eram nitidamente minoritárias. Várias influências causaram uma mudança neste quadro como a descolonização africana e as frustrações do desenvolvimento. Com a Guerra do Vietname, e a crescente aceitação do discurso marxista contra o imperialismo, veio a crítica à intervenção norte-americana contra movimentos progressistas no terceiro mundo. 

Depois do esvaziamento do modelo alternativo marxista, deu-se no mundo académico ocidental a dita viragem subjetivista e relativista na filosofia e ciências sociais. Houve um florescimento de novos movimentos sociais: feministas, ecologistas, homossexuais, negros nos EUA, e de uma multidão de outras causas minoritárias, étnicas e religiosas. Cada qual reivindica o direito à alteridade, dando como incorreta a visão anterior. Ainda que muitos dos movimentos tivessem objetivos próprios bastante radicais (e frequentemente separatistas), todos convergiram na ideologia multiculturalista, ou seja, a coexistência das diferenças numa tolerância generalizada que rejeita em princípio qualquer hierarquia de valores. Todos estes movimentos ideológicos se alimentaram do debate académico, repercutindo por sua vez numa mudança da atmosfera intelectual.

A nova hegemonia do pós-modernismo e do relativismo cultural dos estudos pós-coloniais resultou em parte destes fatores políticos e intelectuais, mas também, da luta entre gerações, e, por fim, do influxo demográfico (em particular nas universidades norte-americanas) de intelectuais do terceiro mundo. Os de origem muçulmana traziam em sua bagagem uma maior sensibilidade à subjetividade do mundo muçulmano – e um maior distanciamento intelectual do modo de pensar ocidental anteriormente predominantes. Assim, com um certo atraso, as correntes que percorreram as ciências sociais acabaram influenciando também a discussão académica e política sobre o islão. 

A relevância dessas discussões transcendeu amplamente os limites da academia até ao 11 de setembro de 2001. Muitas transformações se deram causadas pelos ataques de Osama bin Laden. À luz destes acontecimentos (reforçados pelas declarações posteriores de certos meios islamistas em favor de Osama), a visão de um multiculturalismo global, tal como a de um islã benevolente que só os preconceitos e a islamofobia, feneceu. Vozes denunciaram os islamófilos por ter ideologicamente preparado e, portanto, justificado o terrorismo fundamentalista. Esta acusação é obviamente muito exagerada. Contudo, é verdade que a tendência de sempre buscar as causas do mal fora do próprio mundo muçulmano impede o entendimento do islamismo como uma reação deturpada contra a modernidade, que vem de dentro do islão. O relativismo cultural e moral impossibilita qualquer avaliação do fenómeno, assim como a ideia de que todas as opiniões têm igual valor também impede um diálogo sério.


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