sábado, 16 de dezembro de 2023

Tempos excecionais de Ibn Rushd (Averróis) e Ibn Khaldun






Houve no islão pensadores progressistas racionalistas e proto/iluministas tais como Ibn Rushd (Averróis) e Ibn Khaldun. Porém, a “esquerda aristotélica” foi logo derrotada: a liquidação política dos mutazilitas ocorreu já antes de 850 – em plena glória abássida. A fragmentação do islão em três califados inimigos datou de 950. O
 fechamento do ijtihad ocorreu antes de 1050 – todos antes das calamidades dos séculos XII-XIV, comumente responsabilizadas pelo declínio do islão. 

O islã foi concebido originalmente como religião universal, mas desde o início foi infiltrado por motivos particulares – desde a luta pela sucessão entre vários ramos da família do Profeta. No histórico confronto entre o islão e as lealdades tribais, as últimas nunca foram definitivamente derrotadas; em consequência, o islão nunca produziu um Estado homogéneo, mas uma cadeia de estruturas políticas sempre frágeis e dependentes de lealdades pessoais e familiares, em vez de regidas por princípios abstratos. Em seguida, a expansão do islã exportou inadvertidamente os moldes da sociedade árabe tribal; os reinos muçulmanos sucessivos permitiram a sobrevivência e reprodução de particularismos. Até o Império Otomano, exemplar mais acabado e duradouro, sofreu de uma falta de coerência interna bem maior do que a de seus concorrentes ocidentais.

Há mil anos, o islã estava integrado no progresso científico, trabalhando os clássicos gregos perdidos na cristandade e avançando na matemática, astronomia, química, ótica, medicina, geografia e outras ciências. Novas invenções ajudaram a tornar o império muçulmano o mais poderoso do mundo. Esses avanços, porém, dependeram de um ambiente de livre exame, que foi gradualmente abafado pela ortodoxia do sunismo. Há muito, estudos científicos antes bem-vindos no Cairo, Bagdade e Shiraz se transferiram para Paris, Londres e Nova York – e, recentemente, também para Tóquio, Bangalore e Telavive. Ainda não voltaram para Bagdade, Teerão ou Islamabad.




A ciência, que está na base das tecnologias que permitiram ao Ocidente conquistar o resto do mundo e, posteriormente, a universalização da modernidade tem sido vista com suspeita no mundo muçulmano, pois o pensamento científico não se baseia numa revelação imutável mas sim na institucionalização da dúvida e na aceitação da incerteza dos resultados da pesquisa. Ora, a ortodoxia islâmica mantém uma atitude hostil para com a ciência. Em termos de educação, quantidade e qualidade de trabalhos científicos produzidos, descobertas e invenções feitas, o mundo muçulmano está hoje claramente atrasado não só em relação ao Ocidente, mas a quase todas as outras civilizações. O critério de aprovação para alunos universitários de ciências exatas e de engenharia, bem como a seleção de professores de ciência, passa pelo crivo religioso. A situação é ainda pior no Afeganistão. Este quadro, em lugar de fortalecer os muçulmanos frente ao Ocidente, os mantém vulneráveis.

As tradições democráticas estão quase ausentes ou reprimidas. O islão e a democracia é um debate das últimas décadas sobre o futuro do islão. A questão de direitos individuais ocupa um lugar muito menor no islão do que no pensamento jurídico ocidental. A mais importante garantia consagrada no direito natural ocidental, a autodeterminação, é explicitamente negada pelo islão. Não é o homem que é soberano, mas sim Deus. As criaturas pertencem ao Criador, que tem um direito de propriedade sobre elas. Para os islamistas, a soberania de Deus é incompatível com a democracia, expressão de uma soberania do povo ilusória e ilegitimamente autoatribuída.

Os islamistas se encontram em muitos países. 
A posição em relação às regras democráticas é apenas instrumental. No olhar fundamentalista, o homem tem apenas o direito (que é também seu dever) de se prostrar e aceitar o poder incomensurável e arbitrário de Deus. Na prática, contudo, os movimentos fundamentalistas em geral não aceitam a autoridade dos ulemás, considerados como corruptos pelo poder existente, mas se autoproclamam os novos intérpretes – em outras palavras, optam por uma liderança carismática, autonomeada, que após a revolução islâmica se tornará a nova elite clerical e burocrática. Ao lado deste modelo, porém, também há de facto tendências democráticas. Nem no Irão foi estabelecido um autêntico regime teocrático, mas um híbrido de teocracia e democracia.

As mais severas interpretações antidemocráticas dos mais conservadores fundamentalistas se chocam com a vontade democrática das massas muçulmanas. O líder da comunidade é obrigado a consultar os representantes dos fiéis antes de tomar uma decisão. Ora, esta exigência, religiosamente sancionada, pode ser aplicada de formas diversas: de maneira tradicional, como quando o sultão ouve as ideias de seus ulemás supremos; ou de modo mais progressista, pelo estabelecimento de regras na prática muito semelhantes às da democracia parlamentar.

A rejeição do racionalismo é, portanto, uma deficiência com grandes consequências. Novos desafios militares do Sul global contra o Norte continuarão ocorrendo enquanto não houver uma redistribuição mais justa em escala planetária. Mas eles surgirão novamente do mundo muçulmano? A emergência de um Estado muçulmano foi (numa forma mais ou menos secularizada) o projeto de Nasser no Egito nos anos 50 e 60, e de Saddam Hussein do Iraque nos anos 80 e 90. Ambos fracassaram. Atualmente, uma nova tentativa deste género  – com ou sem restauração do califado – está extremamente distante. Criar uma base territorial, depois unificar uma região suficientemente extensa, centralizar, armar, islamizar populações diversas constituiria uma tarefa dificílima.

Qualquer unificação no Médio Oriente, atualmente muito desunido, mesmo que houvesse um novo candidato para liderá-la, necessitaria de um longo período de aplicação de violência para reprimir resistências internas e externas, e depois um outro, provavelmente ainda mais longo, para mobilizar as energias populares e preparar a economia e o exército para uma tentativa hegemónica mundial.

Ataques terroristas no sei da União Europeia, tanto isolados como em conjugação em rede, podem, contudo, enfraquecer os fluxos comerciais e causar uma crise económica mundial. Na realidade, porém, é mais provável que eles provocassem movimentos de reação emergindo no centro do mundo capitalista desenvolvido. É pouco provável que isto conduzisse a uma vitória fundamentalista (o que não significa que fundamentalistas não possam chegar ao poder numa série de países muçulmanos). 

Por exemplo, uma população muçulmana empobrecida, pouco identificada com os valores do país de residência, como está a acontecer na França, está a preocupar muito as elites governantes. Fica claro que, muito do alarmismo populista dos partidos de extrema-direita, com ou sem razão, estão a afundar muitas das conquistas democráticas a seguir à Segunda Guerra Mundial. 
A questão é se os esforços multiculturalistas podem contrabalançar forças opostas de não integração.

Há diversas correntes xenófobas nas sociedades ocidentais. As dificuldades socioeconómicas tendem a excluir grupos vulneráveis da periferia da sociedade, dentre os quais se destacam minorias muçulmanas. O risco de alienação de massas de jovens muçulmanos, que tendem a se radicalizar, é bem real. Movimentos islamistas revolucionários operando na subclasse muçulmana explorada e radicalizada nos países europeus está a criar uma conjuntura bem mais incontrolável do que nas conjunturas anteriores.


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