segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O tempo em que a ideia de "Terceiro Mundo" estava no auge - Anos 60



A ideia de Terceiro Mundo, a de uma frente comum de países em processo de desenvolvimento, sobretudo aqueles países colonizados pelos europeus, delimitava os blocos da guerra fria, ou seja o Ocidente Capitalista e o Oriente Comunista. E no que diz respeito ao Médio Oriente, os estados árabes recém independentes tinham bastante em comum, em cultura e experiência histórica.

 divididas, além de interesses partilhados, para tornar-lhes possível entrar em estreita união uns com os outros, e essa união lhes daria não só maior poder coletivo, mas traria aquela unidade moral entre povo e governo que tornaria o governo legítimo e estável. Os historiadores começaram a interpretar a história egípcia em termos marxistas, de modo que o que pareciam ser movimentos nacionalistas eram vistos agora como movimentos de determinadas classes defendendo seus próprios interesses. A questão das formas de expressão torna-se importante. Um fosso entre expressão e conteúdo é um sinal de fuga da realidade; Najib Mahfuz, escrevendo sobre a vida popular, mas evitando o uso do árabe coloquial, parecia mostrar uma certa alienação da vida real.

No Magrebe, as circunstâncias da luta contra os franceses tinham levado à criação de movimentos nacionalistas com mais amplo apoio popular e melhor organização que os mais a leste. Como os franceses estavam presentes não simplesmente como um governo estrangeiro, mas como um grupo privilegiado de moradores que controlavam os recursos de produção, o único modo de opor-se a eles com sucesso fora através da revolta popular, bem organizada e espalhando-se para além das cidades, até ao campo. Na Tunísia, a independência fora conseguida e o novo governo era dominado por uma combinação de sindicatos e do Partido Neo-Destur, liderada por uma elite educada com raízes, em sua maior parte, em pequenas cidades e aldeias do Sahel, e com ramificações por todo o país. O mesmo na Argélia: a organização que lançou a revolta contra o domínio francês em 1954, a Front de Libération Nationale (FLN), liderada sobretudo por homens de origem humilde mas com formação militar, foi atraindo aos poucos para si, sob a pressão da guerra, amplo apoio em todas as camadas da sociedade. 
Quando passou de uma força revolucionária para um governo, a sua liderança foi uma mistura dos chefes militares históricos da revolução e de tecnocratas altamente educados, sem os quais um governo moderno não podia ser exercido, e extraiu sua força de uma rede nacional de ramificações do partido em que pequenos comerciantes, proprietários rurais e professores desempenharam uma parte. 

Em Marrocos, uma coligação semelhante de interesses - entre o rei, o Istiqlal e os sindicatos - conquistara a independência mas não se revelara tão estável e unificada como nos outros países do Magrebe. O rei pôde afirmar, contra o Partido Istiqlal, que era a autêntica encarnação da comunidade nacional, e também pôde estabelecer seu controlo sobre o novo exército. O Istiqlal, sem o apoio popular que poderia extrair de uma pretensão geralmente aceite de que expressava a vontade nacional, tendeu a dividir-se em facções ao longo de linhas de classe; disso surgiu um novo movimento, a Union Nationale des Forces Populaires, dirigida por líderes do campo e das montanhas, e dizendo falar pelos interesses do proletariado das cidades.

Na maioria dos países do Médio Oriente, a independência fora conseguida pela manipulação de forças políticas, tanto internas quanto externas, e por negociações relativamente pacíficas, apesar de momentos de perturbação popular. O poder nos novos estados independentes foi num primeiro momento para as mãos de famílias dominantes ou elites intelectuais, que tinham tido a posição social e a habilidade política necessária durante o período de transferência de poder. Todavia, esses grupos não possuíam em geral a habilidade e o apelo necessários para mobilizar apoio popular nas novas circunstâncias da independência, ou para criar um Estado no sentido pleno. Não falavam a mesma linguagem política daqueles que diziam representar, e seus interesses estavam na preservação do tecido social e distribuição de riqueza existente, mais do que em mudanças no sentido de maior justiça social. Nesses países, os movimentos políticos tenderam a desfazer-se após a independência, e estava aberto o caminho para novos movimentos e ideologias, que misturariam elementos de nacionalismo, religião e justiça social de uma maneira mais atraente. Os Irmãos Muçulmanos foram um desses movimentos, sobretudo no Egito, Sudão e Síria. Grupos comunistas e socialistas também passaram a desempenhar um papel significativo em oposição tanto ao domínio imperial em sua última fase, como aos novos governos que tomaram o seu lugar.

No Egito, o movimento comunista cindiu-se em pequenos grupos, que apesar disso conseguiram desempenhar um papel em certos momentos de crise. Em particular, durante o confronto com os britânicos nos anos após o fim da guerra, o Comité dos Operários e Estudantes, dominado pelos comunistas, proporcionou liderança e orientação às forças populares levantadas. No Iraque, um papel semelhante foi desempenhado pelos comunistas no movimento que obrigou o governo a retirar-se do acordo de defesa assinado com os britânicos em 1948. O acordo teve o apoio da maioria dos líderes políticos estabelecidos, e oferecia algumas vantagens ao Iraque, como o fornecimento de armas para o exército e a possibilidade de apoio britânico na luta que então se iniciava na Palestina, mas parecia implicar um elo permanente entre o Iraque e a Grã-Bretanha, e portanto, em último caso, uma subordinação permanente dos interesses iraquianos aos britânicos. A oposição a ele serviu de foco em torno do qual puderam juntar-se vários interesses diferentes: os dos camponeses alienados de seus xeques que se haviam transformado em proprietários rurais; do proletariado urbano diante dos altos preços dos alimentos; dos estudantes; e de líderes nacionalistas de coloração diferente. Nessa situação, o Partido Comunista desempenhou um papel importante, oferecendo um elo entre diferentes grupos. No Sudão, também, o grupo dominante que herdou a posição britânica estava ligado a dois partidos, cada um dos quais ligado a uma liderança religiosa tradicional, e semelhantes em composição social, embora diferissem no grau em que desejavam ligar o Sudão ao Egito; havia um papel popular que não podiam desempenhar, e que o Partido Comunista, formado em grande parte por estudantes que tinham estudado no Egito, tentara preencher.

Diante dessa fragmentação de forças políticas, houve várias tentativas de criar novos tipos de movimento que combinassem todos os elementos importantes. Dois foram de particular importância nas décadas de 1950 e 1960. Um foi o Partido Ba‘th (Ressurreição), na Síria. Era um partido que apresentava um desafio à dominação da política síria por um pequeno número de grandes famílias urbanas e pelos partidos ou frouxas associações de líderes que expressavam os interesses delas. Apelava basicamente à nova classe educada, criada pelo rápido aumento na escolarização, e que vinha de comunidades de fora da maioria muçulmana sunita: alawitas, drusos e cristãos. Originara-se dos debates intelectuais sobre a identidade nacional dos sírios e suas relações com outras comunidades de língua árabe: um debate mais urgente na Síria que em outras partes, porque as fronteiras traçadas por Grã-Bretanha e França em seu próprio interesse correspondiam menos que na maioria dos países do Médio Oriente às divisões naturais e históricas.

O Egito apelava à unidade árabe sem aceitar o argumento de que isso seria interferência nos assuntos de outros países. Nos anos seguintes, executaram-se vigorosamente medidas de reforma social: limitações de horas de trabalho, salário mínimo, ampliação dos serviços de saúde pública, uma proporção dos lucros da indústria distribuída em serviços de seguro e assistência social. Essas medidas foram tornadas possíveis pelo rápido crescimento do Egito no início da década de 1960. Em 1964, porém, o crescimento cessara, e o consumo privado per capita não mais aumentava. Mesmo em seu ponto mais alto, o regime de ‘Abd al-Nasser não conseguiu canalizar todas as forças políticas do povo egípcio. Seu movimento político de massa, a União Socialista Árabe, foi um canal através do qual se comunicavam ao povo as intenções do governo, em vez de um canal pelo qual se expressassem os desejos, sugestões e queixas populares. Os Irmãos Muçulmanos acusaram-no de usar a linguagem do Islão para encobrir uma política basicamente secular; os marxistas criticaram o “socialismo árabe” por ser diferente do “socialismo científico”, baseado no reconhecimento das diferenças de classes.

A personalidade de ‘Abd al-Nasser foi dominante nesses anos. Os sucessos do regime - a vitória política na crise do canal de Suez de 1956, a construção da grande barragem de Assuan, as medidas de reforma social, e a promessa de liderança forte em defesa da causa palestina - foi uma lufada que parecia vir de um mundo diferente. Era uma nação árabe rejuvenescida por uma autêntica revolução social. Essas esperanças foram encorajadas pelo hábil uso da imprensa e da rádio, que apelavam por cima dos governos ao “povo árabe”. Esses apelos aprofundaram os conflitos entre governos árabes, mas Nasser continuou sendo um símbolo poderoso de unidade e revolução, e encarnou-se em movimentos políticos de largo alcance, como o Movimento de Nacionalistas Árabes, fundado em Beirute, e muito popular entre os refugiados palestinos.

Com a conquista da independência pela Argélia em 1962, praticamente chegou ao fim a era dos impérios europeus, mas ainda havia algumas áreas do Médio Oriente onde o poder britânico continuou, encarnado em formas de governo e baseado em último caso na possibilidade de emprego da força armada. Em Áden e no protetorado circundante, os interesses britânicos tinham se tornado mais importantes na década de 1950. A refinaria de petróleo de Áden era importante, e também era a base naval, pelo temor de que a URSS estabelecesse o seu controlo no Corno de África, na margem oposta do mar Vermelho. O despertar da consciência política em Áden, estimulado pela ascensão de Nasser e por mudanças que ocorriam no Iémen, levou os britânicos a aumentar o grau de participação local no governo. Estabeleceu-se uma Assembleia Legislativa em Áden, e os estados protegidos vizinhos formaram uma federação que incluía a própria Áden. Mas essas concessões limitadas trouxeram novas demandas da pequena classe educada e dos operários de Áden, e dos que se opunham ao domínio dos governantes da federação, com encorajamento do Egito. Mas a agitação emergiu, 
e em 1966 o governo britânico decidiu retirar-se. A essa altura, a oposição dividira-se em dois grupos. Quando se deu a retirada em 1967, foi um grupo urbano de tendência marxista que conseguiu tomar o poder.

No Golfo Pérsico, em 1961, concedeu-se plena independência ao Kuwait: uma classe dominante estável de famílias de comerciantes, reunida em torno de uma família reinante, podia agora criar um novo tipo de governo e sociedade pela exploração de seu petróleo. Mais abaixo no golfo Pérsico, uma revisão dos recursos e da estratégia britânica levou em 1968 à decisão do governo de retirar suas forças militares, e portanto seu controlo político, de toda a área do oceano Índico até 1971. Num certo sentido, essa decisão ia contra um interesse local britânico. A descoberta de petróleo em várias partes do Golfo Pérsico e sua exploração em larga escala em Abu Dhabi deram nova importância ao que tinha sido uma área pobre e levaram a certa extensão do controlo britânico dos pequenos portos da costa para o interior, onde agora se tornava importante a delimitação precisa de fronteiras. Por influência britânica, estabeleceu-se uma débil federação, a União dos Emirados Árabes, para assumir o papel unificador que os britânicos haviam exercido. Consistia de sete pequenos estados - Abu Dhabi, Dubai, Sharja e quatro outros - mas nem Bahrain nem Qatar entraram. Durante algum tempo, a independência do Bahrain foi ameaçada por pretensões iranianas de soberania, baseada em argumentos históricos, mas estas foram retiradas em 1970.

Na década de 1950, a perspectiva de descoberta de petróleo no interior de Omã levou a uma extensão do poder do sultão, apoiado pelos britânicos. Isso, por sua vez, deu origem a uma revolta local, apoiada pela Arábia Saudita, que tinha suas próprias pretensões territoriais; por trás do conflito, havia os interesses em choque de empresas de petróleo britânicas e americanas. A revolta foi suprimida, com ajuda britânica, e o imanato extinto, mas em 1965 uma outra mais séria irrompeu na parte ocidental do país, Dhufar. Essa continuou até a década de 1970, também com apoio de fora. O sultão não queria fazer qualquer concessão à mudança, e em 1970 foi deposto por instigação britânica em favor de seu filho.

Na Síria, o poder foi tomado pelo Partido Ba‘th em 1963: primeiro pelos líderes civis, depois por oficiais do exército a ele filiados. No Iraque, o governo de oficiais estabelecido pela revolução de 1958 foi derrubado em 1963 por um mais inclinado ao Ba‘th. Mas as discussões sobre unidade entre Iraque, Síria e Egito mostraram as diferenças de interesse e ideias entre os três. No Sudão, houve um golpe militar em 1958, e o governo dele resultante seguiu uma política de neutralidade e desenvolvimento económico, até a restauração do governo parlamentar em 1964, por pressão popular. 

Na Argélia, o primeiro governo estabelecido após a independência, tendo Ahmad Ben Bella à frente, foi substituído em 1965 por um mais inteiramente comprometido com o socialismo e os não alinhados, liderado por Hawari Boumediene. Do outro lado, porém, havia as monarquias do Marrocos, Líbia, Jordânia e Arábia Saudita, com a Tunísia numa posição ambígua, governada por Burguiba como líder de um partido nacionalista de massa comprometido com reformas de longo alcance, mas hostil à extensão da influência egípcia e a muitas das atuais ideias de nacionalismo árabe.

Já no início da década de 1960 havia sinais de que as reivindicações e pretensões de Nasser iam além de seu poder. A dissolução da união entre Egito e Síria, em 1961, e o fracasso das últimas conversações sobre unidade mostravam os limites da liderança de ‘Abd al-Nasser e dos interesses comuns dos estados árabes. Mais significativos eram os acontecimentos que ocorriam no Iémen. Em 1962, o imã Zaydi, governante do país, morreu, e seu sucessor foi quase imediatamente deposto por um movimento no qual liberais educados que tinham estado no exílio se juntaram a oficiais do novo exército regular, com um certo apoio tribal limitado. O antigo imanato tornou-se a República Árabe do Iémen - agora muitas vezes chamada de Iémen do Norte, para distingui-la do Estado estabelecido após a retirada britânica do Iémen e do protetorado em torno, oficialmente conhecido como República Popular do Iémen, mas muitas vezes chamada de Iémen do Sul. 

O grupo que tomou o poder pediu imediatamente ajuda, e unidades do exército egípcio foram mandadas. Mesmo com esse apoio, porém, a tarefa de governar um país que tinha sido diretamente controlado, mas mantido junto pela habilidade e os contactos do imanato, revelou-se difícil demais para o novo governo. Partes do campo, que ainda aceitavam a autoridade do imã, ou se opunham ao tipo de controlo que o governo tentava criar, levantaram-se em revolta. Tinham apoio da Arábia Saudita, e seguiram-se vários anos de guerra civil, em que se entrelaçaram o conflito entre grupos locais e entre o Egito e as monarquias árabes “tradicionais”. Nenhum dos lados pôde vencer o outro; os que os egípcios apoiavam podiam controlar apenas as cidades principais e as estradas entre elas, mas não a maior parte do campo, e um grande exército egípcio, combatendo em condições desconhecidas, foi retido ali por vários anos.

Na teia de relações interárabes havia a Palestina que parecia estar adormecida. Daí que a Guerra dos Seis Dias, em 1967, é um marcos histórico de viragem. Tecia-se agora um novo fio. Desde 1948, os próprios palestinos não tinham podido desempenhar um papel independente nas discussões sobre o seu destino: sua liderança desmoronara, estavam espalhados por vários estados, e os que haviam perdido casa e trabalho tinham de reconstruir uma nova vida para si. Só tinham podido desempenhar um papel sob o controlo dos estados árabes e com a permissão deles. 

Em 1964, a Liga Árabe criara uma entidade separada para eles, a Organização para Libertação da Palestina - OLP -, mas esta se achava sob controlo egípcio e as forças armadas a ela ligadas faziam parte dos exércitos do Egito, Síria, Jordânia e Iraque. A essa altura, surgia uma nova geração de palestinos, no exílio mas com uma lembrança da Palestina, educada no Cairo, ou Beirute, e reagindo a correntes de pensamento ali atuantes. Aos poucos, em fins da década de 1950, começaram a surgir dois tipos de movimentos claramente palestinos: o Fatah, empenhado em manter-se inteiramente independente dos regimes árabes, cujos interesses não eram os mesmos dos palestinos, e em confronto direto com Israel.

A população de Israel continuara a crescer, sobretudo pela imigração; em 1967, estava em cerca de 2,3 milhões, dos quais os árabes compunham uns 13%. Seu poder económico aumentara, com a ajuda dos Estados Unidos, contribuições dos judeus no mundo externo e reparações da Alemanha Ocidental. Também viera escalando a força e a especialização de suas forças armadas, e da força aérea em particular. Israel sabia-se militar e politicamente mais forte que os vizinhos árabes; diante da ameaça desses vizinhos, o melhor curso era mostrar sua força. Isso poderia levar a um acordo mais estável do que o que pudera conseguir; mas por trás disso havia a esperança de conquistar o resto da Palestina e terminar a guerra inacabada de 1948. Todas essas linhas convergiram em 1967. 

A guerra foi um momento decisivo, sob muitos e diferentes aspectos. A conquista de Jerusalém pelos israelitas, e o facto de que os lugares santos muçulmanos e cristãos agora estavam sob controlo de Israel, acrescentaram outra dimensão ao conflito. A guerra mudou o equilíbrio de forças. Ficou claro que Israel era militarmente mais forte que qualquer combinação de estados árabes, e isso mudou a relação de cada um deles com o mundo externo. O que era, certa ou erroneamente, encarado como uma ameaça à existência de Israel despertou simpatia na Europa e América, onde as lembranças do destino judeu durante a Segunda Guerra Mundial ainda eram fortes; e a rápida vitória israelense também tornou Israel mais desejável como aliado aos olhos dos americanos. Para os estados árabes, e sobretudo o Egito, o que acontecera fora em todos os sentidos uma derrota que mostrava os limites de sua capacidade militar e política. E para a esperança de um dia os palestinianos terem o seu Estado, uma tragédia. Israel interpretou que estava legitimada a ocupação de tudo e mais alguma coisa. Mais refugiados palestinos, e mais mais caíram sob o domínio israelita. Os palestinos, vendo-se em sua maioria unidos sob domínio israelense, exigiram uma existência nacional separada e independente. E os israelitas começaram a administrar as terras conquistadas praticamente como partes de Israel. 

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