domingo, 17 de dezembro de 2023

Civilizações e Edward Said





Civilizações não são entidades tangíveis, mas construções mentais abrangentes e fluidas, que ligam sociedades entre si por meio de modos de organização social e/ou normas, valores, epistemologias, sensibilidades estéticas comuns. Edward Said tem sem dúvida razão quando desmascara a polarização Ocidente/Oriente como uma construção ideológica e interesseira; mas isto não implica que algo como civilizações diferentes não exista. Ao contrário de Estados territoriais, civilizações não têm fronteiras claras, mas elas se justapõem e se influenciam reciprocamente.

Devido aos processos de modernização e globalização, civilizações antes relativamente isoladas estão hoje em comunicação mais intensa, e sua coexistência pode gerar tensões. Todavia civilizações estão longe de ser o único fator que determina as relações entre grupos humanos – interesses económicos, cálculos políticos, pressões do sistema internacional como um todo, entre outros, também moldam as inter-relações. O mundo contemporâneo constitui, justamente, uma combinação de crescentes interdependências económicas, políticas e até culturais – e as reações defensivas a isto por parte de grupos religiosos, étnicos e outros que se sentem ameaçados pela caótica mas aparentemente irresistível interpenetração de economias, governos e civilizações. 

O problema da Palestina deve ser abordado dentro desta perspectiva. Ou seja, nunca foi uma entidade fechada, com fronteiras bem definidas, mas um local da Terra por onde circularam e se entrecruzaram civilizações. Portanto, um local de encontro e interação, marcado ora por conflito, ora por cooperação. Historicamente, as relações entre as civilizações oscilam entre os polos de diálogo e conflito. Elas se chocam quando não há comunicação aberta. 

As potências ocidentais deixaram independentes apenas algumas zonas consideradas primitivas demais para justificar a sua incorporação. Estas zonas incluíam a Península Arábica com as cidades sagradas e berço do islão. O momento chegou oficialmente ao seu fim com a descolonização, essencialmente completada nos anos 70 – mas continua de forma mais insidiosa pela influência informal que o Ocidente mantém no mundo muçulmano. Essas trocas territoriais refletem uma inimizade que se resume nas palavras jihad e cruzada. Tal hostilidade se expressava também no campo teológico: para o islão, o cristianismo era uma versão ultrapassada e, portanto, desprezível, da verdadeira fé; para o cristianismo, o islão era visto de forma ainda muito mais negativa, como a falsa alternativa por excelência. Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, coloca um Maomé condenado e torturado como herege no nono abismo do inferno. Todavia, esta hostilidade constitui o pano de fundo que dissimula períodos extensos de interação mais positiva: comércio, diálogo, trocas culturais, coexistência. Tais encontros ocorreram com maior facilidade no território do islão, mais pluralista, do que no cristão.

A participação de muçulmanos, judeus e cristãos numa economia e cultura comum tem o seu apogeu nos casos da Sicília e Espanha medievais. Ali, a interação filosófica e científica entre as três religiões e o contacto com as fontes gregas por ela facilitado se comprovariam vitais para o futuro desenvolvimento do próprio Ocidente. Interesses económicos sempre contrabalançaram a incompatibilidade ideológica. Apesar de Veneza se enriquecer fazendo a travessia de cruzados para a Terra Santa, a cidade também comerciava com o inimigo – como na ligação mercantil, mutuamente lucrativa, entre mamelucos egípcios, provedores de artigos de luxo orientais, e as galés italianas que forneciam escravos aos sultões do Cairo.

Desde o século XVI, as potências europeias fizeram acomodações políticas frequentes com o Império Otomano e, durante toda a Idade Moderna, o comércio mediterrâneo ultrapassou as barreiras religiosas. Uma Realpolitik destituída de princípios levou o rei da França, Francisco I de Valois, a pactuar com Solimão, o Magnífico, para abrir uma segunda frente contra o imperador Carlos V de Habsburgo, e depois provocou os ingleses a explorar uma ação comum com os persas safávidas contra o império marítimo dos portugueses. Os turcos integraram o incipiente sistema internacional, ainda que não da mesma maneira íntima que as demais potências cristãs. Na Primeira Guerra Mundial, os ingleses derrotaram os alemães em seu próprio jogo, com o célebre episódio de Lawrence da Arábia. E, num período mais recente, o apoio incondicional norte-americano e ocidental ao regime fundamentalista da Arábia Saudita exemplifica novamente que incompatibilidade ideológica e coexistência prática baseadas em interesses comuns não se excluem necessariamente.

O século XX se transformou estruturalmente pela descristianização, pela secularização do Ocidente e pelos avanços científicos e tecnológicos, industriais e militares ligados ao processo de modernização. Esta tríplice revolução retirou a base comum a ambas as civilizações, a europeia e a muçulmana, distanciando definitivamente a primeira da ordem de Deus. A Revolução tornou o Ocidente imensamente mais poderoso do que o mundo muçulmano, o que causou neste último a implosão das estruturas antiquadas, as perdas políticas, a exploração económica e o declínio de seus padrões religiosos e culturais tradicionais. A Revolução levou diretamente à contínua influência ocidental que tanto humilha as populações muçulmanas – influência unidirecional, que expressa a assimetria do poder. Doravante a pergunta não deve ser se o islão constitui uma ameaça, mas se o próprio islão é capaz de sobreviver ao Ocidente. Toda a problemática atual das relações entre Ocidente e Oriente resulta das várias tentativas para fazer frente ao “perigo ocidental” e para contrabalançar a assimetria.

Os islamistas constituem um grupo inassimilável à civilização da modernidade. O verdadeiro “choque de civilizações” que ameaça se estender sobre a Terra, portanto, não é entre a “cristã” e “o islã”, mas entre uma modernidade universalizada por um lado (e que poderia acomodar um islã reformado), e uma versão radical do islão político, que usa as armas da modernidade contra o próprio mundo moderno. Pode-se imaginar, aliás, choques paralelos com outros fundamentalismos: o protestante nos EUA, o judaico em Israel, o hinduísta na Índia. Os islamistas da mais recente onda travam esta guerra em nome de uma transformação não apenas da estrutura interna das sociedades muçulmanas como também de todo o sistema internacional. Este sistema, ainda essencialmente westfaliano, baseia-se em Estados soberanos que mantêm entre si um mínimo de ordem por meio de instituições e procedimentos consensuais (de origem europeia mas atualmente desnacionalizados). Ou seja, o islão dos islamistas não é apenas uma religião, mas um sistema ideológico abrangente e – como os islamistas são os primeiros a admitir – absolutamente incompatível com o Ocidente.

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