segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Os sefarditas


Os judeus sefarditas, que sói dizer-se de dialeto ladino, na verdade, estavam tão fartos da brutalidade da perseguição movida pelos visigodos, que tinham aderido ao cristianismo, que quando os árabes e mouros entraram pela Sefarad, ספרד (a palavra tem origem na denominação hebraica para designar a Península Ibérica), acreditaram que lhes tinha saído a sorte grande. Estes judeus de Sefarad possuíam algumas tradições, línguas, hábitos e ritos diferenciados dos outros judeus, os asquenazes, do centro e leste europeu.  

Entretanto, da mesma forma que os judeus eram úteis para os governantes da Maiorca aragonesa, como intermediários comerciais e cartográficos, também o eram para os castelhanos. Castela precisava da familiaridade dos judeus com a língua árabe. Nessa época os árabes estavam em alta em matéria de ciência, como matemática, astronomia e medicina. Ainda que menos virados para a filosofia, ainda assim, por causa da ciência, preservaram muitos escritos de Aristóteles. O interesse de Castela, por conseguinte, era duplo: estratégico e intelectual. Na segunda metade do século XIII, no governo relativamente benigno de Afonso X, dito “o Sábio”, a Toledo judaica tornou-se o grande centro de tradução de literatura árabe e judaica, inicialmente para o latim, e depois para os vernáculos castelhano e português.

Afonso X - avô de Dom Dinis (rei da primeira dinastia de Portugal, 6º e ordem cronológica) - autor de poemas e cantigas, ansiava muito por se tornar versado em todo o género de conhecimento e, como tantos outros antes dele, acreditava na lenda de que os judeus tinham acesso a ciências esotéricas, de ordem astrológica, alquímica e astronómica. Yehuda ibn Moshe, um dos tradutores judeus que contribuíram com textos para o Livro do Conhecimento de Afonso X, foi também induzido a traduzir, expressamente para o rei, obras em hebraico sobre magia, em particular sobre a arte de invocar poderes entranhados em pedras. 

No século XIII, a comunidade sefardita começava a escrever e a falar menos em árabe do que no dialeto ladino. É possível que a semente de uma cultura comum tenha sido semeada, não pela primeira vez, por meio da música. Canções em ladino em louvor a El Cid e romanças sobre reis, princesas e cavaleiros franceses, provençais, catalães e castelhanos — muitas com uma cadência viva que vem diretamente do mundo musical árabe — também indicam uma sensibilidade em comum, da mesma forma que a arquitetura híbrida. Contudo, é extraordinário que algumas das primeiras romanças da literatura espanhola tenham sido criadas no cadinho da cultura judaica que depois foi alvo de proibição.

O momento de harmonia cultural não sobreviveria por muito tempo a Afonso X, que morreu em 1284. Por baixo do refinamento de gostos da elite, preconceitos repugnantes (e os primórdios de uma campanha por conformidade cristã, promovida pelos frades) começavam a dificultar e, por fim, impossibilitar a sobrevivência do pluralismo. Em 1349, o boato de que judeus tinham trazido a peste para exterminar os cristãos teve como resultado ataques sangrentos em Toledo. Em outra explosão de violência, em 1367, quase mil casas foram incendiadas na judiaria. Recorrendo à resiliência que, a essa altura, era uma segunda natureza dos judeus, a comunidade aprendeu a reconstruir, reformar e restaurar. Entre um súbito pesadelo e outro, os negócios e os estudos continuavam. Nas vésperas do terror de 1391, as duas comunidades de Toledo gabavam-se de contar com nove sinagogas e cinco casas de estudos da Bíblia e do Talmude.

A profanação das sinagogas e dos rolos, o saque de objetos rituais de prata, como as coroas da Torá e os remates decorados com romãs, das hastes laterais do rolo, bem como o incêndio de casas e as mortes indiscriminadas são conhecidos por uma dolorosa elegia escrita por Jacob ibn Albenech na linguagem dos maratiyeh, os cantos fúnebres que eram uma especialidade de Toledo. A lista de lugares destruídos e de homens assassinados é penosa e angustiante: o cantor chazam Saul; o rabino Isaac ben Judá; Isaac ben Shushan, cujo corpo foi perfurado várias vezes por arma branca; e, o pior de tudo, Abraão ben Ophrit, que, identificado como bachur, o que significa que teria entre doze e dezesseis anos, por alguma razão que se desconhece foi impiedosamente apedrejado, arrastado pelo empedrado das ruas, o que lhe estraçalhou o corpo, e depois parcialmente queimado antes de ser atirado ao rio, de onde teve de ser retirado pelos pais já de provecta idade. 

Os rolos da Lei, o Sefer Torá, foram tirados da Sinagoga Nova e laboriosamente profanados antes que um crucifixo fosse colocado entre suas duas Arcas. (Em algumas sinagogas sefarditas, quando se fazia uma Arca nova, a velha era deixada no mesmo lugar onde estava.) No retorno da anarquia para a ordem, exigido pela casa real, parte dos danos foi compensada. Entretanto, em 1411, Vicente Ferrer chegou com o seu exército de flagelantes, e a Sinagoga Nova de José ben Meir Shushan tornou-se, em caráter definitivo, a igreja de Santa María la Blanca. O resultado pareceu o triunfo que todos os verdadeiros soldados de Cristo vinham desejando: dois terços dos judeus desapareceram, mediante a ação do aço de Toledo ou das águas batismais. Só um terço obstinado persistiu em sua desgraçada cegueira.

E então, mais depressa do que se poderia imaginar, a vitória gerou suspeitas. Os conversos de Toledo atiravam-se ao Salvador, abraçavam os ritos, as jaculatórias, as penitências, tomavam a comunhão, persignavam-se com devoção, de facto praticavam a nova religião com tanto ânimo que algumas pessoas começaram a desconfiar: ontem barba, hoje tonsura. Era impressionante como exibiam sua conversão!, pensavam os cristãos-velhos. Deixavam a judiaria e se mudavam para o elegante bairro da Magdalena, perto do palácio do Alcázar. Moravam em casas com fachada de pedra e jardins murados. E agora, que haviam alcançado a condição de salvos, tudo estava ao alcance dos conversos: casamentos na nobreza (que tinha os olhos postos no dinheiro deles), suas antigas ocupações e qualquer coisa que lhes rendesse progresso, tanto em prestígio quanto em fortuna, servindo ao rei. O facto de se exigir que os cristãos-velhos os acolhessem sem reservas na sociedade dos eleitos só tornava mais irritante essa situação imprevista.

Era bom demais para ser verdade. Apesar de todo o recém-descoberto fervor, não teriam abraçado a cruz se não fosse para se tornar uma aristocracia de novos-ricos, e dominar a classe alta antiga e oprimir as pessoas com regras e impostos ainda mais exorbitantes. Assim, os cristãos-velhos, os de verdade, assumiram uma postura vigilante, em busca de sinais de que, por trás de suas ardentes profissões de fé, os conversos eram ainda, em segredo, judeus impenitentes. E nesse ponto os próprios historiadores judeus se dividem por motivos que têm a ver menos com evidências que com o que desejam desse momento pós-traumático, intenso e difícil. 

Yitzhak Baer, o grande historiador israelita de Sefarad, fez eco do ponto de vista da Inquisição, segundo o qual, o cristianismo dos cristãos novos não passava de um embuste conveniente. No entanto, por mais desconcertante e quase inexplicável que fosse, ver rabinos doutos e impecavelmente devotos se transformarem da noite para o dia em ardorosos evangelizadores cristãos, não deixava de meter confusão. Qual a percentagem dos conversos que abraçou com sinceridade a nova fé é coisa que jamais saberemos. As fontes muitas delas foram reunidas pela Inquisição nas décadas de 1480 e 1490. Restavam os relatos feitos por aqueles que migraram para países onde puderam voltar ao judaísmo.

É bem conhecida a história das alheiras transmontanas do nordeste português, em particular as alheiras de Mirandela. Os inquisidores eram atraídos pelos aromas da comida ou pelas cantilenas ladinas que chegavam aos ouvidos da rua por uma janela aberta. Alguns dos seus inimigos sabiam que hábitos alimentares lhes trairiam as recaídas. As narinas dos padres não eram nada amigas dos judeus. Farejavam sem parar um vestígio revelador de “cebola e alho refogados em azeite em vez de toucinho”. Para os padres, qualquer coisa frita em azeite cheirava mal, tal como os judeus, com a sua dieta. Só pelo cheiro de alho e de azeite podia-se detectar um converso que houvesse comido com judeus. 

Quando a Inquisição passou a bisbilhotar profundamente as denúncias dos criados, segundo as quais, por exemplo, a mulher de um converso tirava a gordura e os nervos da carne, que na verdade não era um requisito das normas dietéticas kashrut; ou eliminava com água salgada todo o sangue presente na carne, que isso já era mais incriminador - constituíam evidências sérias de que eles continuavam judeus. Em troca da contribuição financeira, os conversos recebiam informações essenciais, como as datas das festas (como a de Purim, rebatizada como Santa Ester) e dos jejuns. Antes de a Inquisição se tornar mais "pidesca", na década de 1480, com a sua horrenda rede de informadores e com a intimidação e a tortura de criados e membros da família, ainda era possível seguir certos costumes na privacidade do lar sem necessariamente atrair suspeitas. 

As suspeitas passaram a transformar-se em confissões arrancadas sob tortura, como a simulação de afogamento e o suplício da roda, e dezenas de milhares de conversos foram mandados a autos de fé, que culminavam com a morte na fogueira para aqueles que não se reconciliassem com a cruz. Em 1467, houve mais uma tentativa de ataque aos membros e às propriedades das famílias dos conversos de Toledo, mas eles tinham aprendido a lição com o distúrbio anterior e se prevenido com um formidável arsenal de boas armas toledanas, que incluíam bestas e cordas com nós, os chamados “punhos de macaco”. Além disso, haviam nomeado um certo capitão Ferdinand de Torres chefe de sua unidade de autodefesa. Esse novo estado de preparação bem como os muitos anos em que suportaram insultos dirigidos aos marranos (termo injurioso que surgiu nessa época) podem ter levado a uma reação exagerada quando um grupo de conversos armados invadiu a própria catedral de Toledo, o que desencadeou, primeiro, uma luta em que tombaram quatro clérigos, e, depois, uma cruenta guerra civil urbana.

O grito dos invasores armados — “Isto não é uma igreja!” — não fora pensado para granjear a simpatia de outros conversos na população de Toledo, e muito menos a de seus padres. O grito pretendia dizer, é claro, que a catedral fora dominada, do ponto de vista institucional e material, pela política dos adversários dos invasores. No entanto, tais palavras soaram como um repúdio do lugar sagrado, cujas belíssimas talhas de madeira faziam com que o coro da catedral provocasse uma emoção devota das mais profundas em toda a cristandade. Se havia necessidade de uma prova da lealdade suspeita dos conversos, aquele grito de guerra mal pensado a proporcionou.

Ocorreu na cidade dos túmulos dos reis de Castela, e o que estava em jogo na guerra civil entre os aliados da elite dos conversos e seus inimigos era a identidade histórica de Castela e o que começava a ser visto como Espanha. O rei impotente, Henrique IV, era incapaz de proporcionar aquele sentido de missão cristã, ainda que, tendo subido ao trono um ano depois da queda de Constantinopla, que passou para as mãos dos turcos otomanos, esse sentido fosse urgentíssimo. A purificação da Espanha era agora a precondição para que seus reinos assumissem a última cruzada, a verdadeira Cruz. Para que a bandeira de Cristo tremulasse sobre a poeira de Constantinopla, ela primeiro deveria ondular sobre uma Espanha livre de muçulmanos, judeus e dos quase judeus travestidos de conversos. Por isso, a questão judaica veio a ocupar o centro dessa luta por autodefinição na época da gestação da Espanha como um reino supremamente cristão, mais um instrumento para a chegada dos Últimos Dias.

A nova cruzada, lançada pelo papa Calisto III, jamais poderia se concretizar sem uma limpeza radical do reino: a expulsão dos muçulmanos de Granada, é claro, mas também a dos judeus. Todos eles teriam que ser varridos da Espanha. Se ali permanecessem, não haveria esperança de se fazer conversos autênticos, uma vez que sempre seriam presas dos “judaizantes”, que estavam em toda a parte. Não obstante, Espina, um frade franciscano, induziu Henrique IV a adotar uma Inquisição destinada especificamente a eliminar os falsos cristãos entre os conversos. De início, o rei abraçou a ideia, e depois de alguma relutância, em 1461, o papa Pio II a autorizou (com certas reservas quanto a ceder muito poder a um governo nacional), mas aí o rei voltou atrás.

Tudo isso parecia indicar que o dobre de finados já tinha soado para os judeus da Espanha. Contudo, como aconteceria na Alemanha meio milénio depois, uma população judia com raízes antigas, acostumada a algumas dificuldades e a muita vozearia hostil, conseguiu tapar os ouvidos ao clamor. E apesar da existência de cidades como Toledo, havia muitas outras na Espanha, em especial aquelas distantes de amplas concentrações de judeus, onde seria difícil acreditar que a apavorante solução de Espina, a expulsão, estava para acontecer. Um desses lugares de inocência histórica era a Corunha, a finisterra do noroeste da Galiza.




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