quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A aliança simbólica entre causas


O quadro atual da aliança simbólica no ativismo político pode ser resumido da seguinte maneira: O marxismo cultural forneceu a gramática da opressão; O pós-estruturalismo forneceu a desconfiança perante a verdade objetiva; O pós-colonialismo forneceu o inimigo comum que é o Ocidente; O feminismo interseccional forneceu a emoção e a culpa moral. Daí resultou uma aliança difusa, mas coerente no plano simbólico, entre ativismo anticapitalista e anti-ocidental. O feminismo interseccional e a academia geraram o “wokismo”. E a cereja no cimo do bolo representa os movimentos pró-palestina incondicionais, mesmo quando defendem grupos intolerantes. Tudo isso se une num mesmo arquétipo moral: “os oprimidos estão sempre certos”.

O pós-estruturalismo e a fragmentação da verdade marcam os anos de 1970 a 1990. Foi o apogeu dos pensadores franceses como Foucault, Derrida e Deleuze, que romperam com a ideia marxista de uma história racional e linear. Eles desconstruíram a própria noção de “verdade universal”, vendo-a como instrumento de poder. Foucault, em especial, influenciou a ideia de que todo o discurso é um ato de dominação. Assim, a linguagem tornou-se um campo de batalha política. É daí que surge a cultura “woke”. O poder é difuso e infiltrado nas instituições, na ciência, na sexualidade, na linguagem. A libertação passa a significar denunciar e desconstruir todas as estruturas de poder ligadas ao patriarcado e ao colonialismo. 
Mas essa visão radicalmente desconstrutiva destruiu também as bases de um debate racional. Tudo se transformou numa questão de “posicionamento moral”.

A fusão pós-colonial: Said, Spivak e a viragem anti-ocidental -- Nos anos 1980-90, autores como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha fundem o marxismo cultural com a crítica pós-colonial. O Ocidente é reinterpretado como um sistema global de dominação cultural e racial. Daí nasce a ideia de que o “Sul Global” é vítima permanente do “Norte Global”. Assim, a luta dos palestinos é incorporada como símbolo máximo do anticolonialismo contemporâneo. Israel passa a ser descrito não como uma nação democrática multicultural, mas como a “vanguarda colonial do Ocidente”. Isso levou a que o terrorismo perpetrado pelo Hamas passasse a ser normalizado como resistência e luta de liberação.

Nos anos 2010, o feminismo interseccional (Kimberlé Crenshaw) amplia essa lógica: todas as opressões se interligam. A mulher branca ocidental já não é “oprimida”, mas cúmplice do patriarcado e do colonialismo. O verdadeiro sujeito revolucionário passa a ser: mulher racializada, muçulmana, migrante, queer. É aqui que muitas académicas “wokistas” entram no jogo. Reivindicam a culpa histórica do Ocidente. Identificam-se com os “oprimidos” do Sul global. E, paradoxalmente, fecham os olhos às opressões internas do mundo islâmico, particularmente às mulheres. Essa moral da culpa torna-se quase religiosa: o ativismo é a penitência.

Este é o grande paradoxo: a condição absoluta de vítima. É abolida a responsabilidade moral, quer do indivíduo, quer da minoria oprimida. Um grupo pode cometer atrocidades desde que continue “oprimido”, desde que o inimigo seja o Ocidente. E quem define a opressão? O oprimido! A subjetividade do que se sente oprimido, do que se sente vítima, é a verdade absoluta. Assim, o Hamas é visto como “resistência”, não como terrorismo. E o discurso crítico é neutralizado com slogans morais: “colonialismo”, “apartheid”, “genocídio”. É um dogma, uma espécie de religião secular de salvação dos oprimidos, com toda a intolerância dogmática que isso implica.

Giulia Daniele é uma académica do ISCTE, um exemplo de pessoa que se encaixa no que acabou de ser descrito. Define-se como ativista, vindo para a rua juntar-se à manifestação a favor da causa palestiniana. Ela estuda precisamente a questão da Palestina, com narrativas étnicas, e de colonização por parte de Israel. Esse enquadramento interpreta o conflito como colonialismo / dominação / injustiça histórica. Ela investiga o ativismo, especialmente feminista, cidadania e resistência. O artigo sobre #SaveSheikhJarrah exemplifica uma análise de ativismo digital + intervenções práticas de resistência. O uso do conceito de colonização de assentamento (“settler colonialism”).


Investigação académica é militância incondicional? Ser investigadora que questiona em narrativas, que estuda ativismo feminista, etc., é defender sem reservas o Hamas? Não se pode afirmar isso. Não se encontram declarações explícitas a apoiar a organização terrorista. Não há, pelo menos nas fontes, declarações públicas que defendam incondicionalmente o Hamas, ou ignorem completamente as suas complexidades.

No balanço, Giulia Daniele parece em muitos aspectos se encaixar no paradigma wokista. Ela trabalha com temas de opressão, resistência, ativismo, género, narrativas pós-coloniais, etc. Isso indica que ela partilha componentes centrais desse tipo de abordagem de “ativismo académico crítico”. Cessar-fogo imediato e ajuda humanitária. Numa dessas declarações, ao referir o novo centro de investigação, ela fala em “genocídio que se vê em direto há 20 meses”. Isso sugere que ela usa termos fortes e que a sua perspectiva acerca dos efeitos do conflito tende a colocar em foco as alegações de violação dos direitos humanos por parte de Israel bastante criticamente.

Grande parte do discurso ativista, incluindo o de académicos que se apresentam como “defensores dos direitos humanos”, centra-se quase exclusivamente nas vítimas palestinianas e na crítica a Israel. Há paralelamente um silêncio sobre as causas, nomeadamente os atos do Hamas no massacre de 7 de outubro de 2023. Para além de o Hamas ter como estratégia o uso de civis como escudo humano. É a típica narrativa truncada. Esse desequilíbrio moral e analítico produz um efeito indireto de branqueamento: o Hamas desaparece como agente moral, e passa a figurar apenas como uma “reação inevitável” à opressão.

A moral política do ativismo contemporâneo opera numa lógica binária: o oprimido tem sempre razão. Logo, se Israel é o opressor, qualquer ação do oprimido é, no mínimo, compreensível e, no máximo, justificada. Esta forma de raciocínio suprime a responsabilidade ética individual e institucional do Hamas. É aqui que o branqueamento se torna ideológico, mesmo sem intenção consciente -- ao absolver o oprimido de toda responsabilidade moral. Ele é transformado em vítima pura. O que, por implicação, limpa a imagem do Hamas. Portanto, mesmo de modo não intencional ou indireto, esse tipo de retórica acaba por contribuir para o branqueamento do Hamas. Não por simpatia explícita, mas por assimetria moral: fala-se da violência de Israel, ignora-se a violência do Hamas, e transforma-se a tragédia em Gaza numa narrativa onde o terror inicial desaparece.

O paradoxo é que, ao tentar denunciar a injustiça, essa visão termina por proteger o fanatismo, tornando-o invisível no discurso público. E isso, em última análise, não ajuda nem os palestinianos, nem a causa da paz. É preciso perceber o não-dito -- aquilo que não se afirma explicitamente, mas que está inscrito nas entrelinhas do discurso, nos seus silêncios, escolhas de vocabulário e enquadramentos morais. É aí que a semiótica entra: o significado não está apenas nas palavras, mas nos seus contrastes e omissões. A hermenêutica permite-nos ver o contexto histórico e simbólico, perceber que, ao falar de “genocídio”, “resistência” ou “colonialismo”, certos termos são chaves de leitura ideológica que ativam emoções e pertenças identitárias, mais do que raciocínios críticos. Para irmos ao fundo, às profundidades da mente humana, não basta a razão, ou a inteligência cognitiva. Aqui, temos de usar a inteligência emocional e performativa. É o toque fino das grandes e profundas questões: captar o tom, o desconforto, o modo como alguém fala de um tema sensível. E o que isso revela sobre a sua posição interior.

Juntando mais dimensões do nosso arcaboiço intelectual, identificamos algo que escapa à pura análise racional. Uma moralidade implícita, ainda que se afirme generosa e compassiva, na prática, absolve o mal quando vem do lado da nossa barricada, que consideramos sempre estar do lado certo da História. Ora, isso não existe, pelo menos para quem for pessimista antropológico, a postura binária de uma dialética entre "os bons e os maus", em que o "nós", obviamente, está sempre do lado dos bons. Um posicionamento deste tipo (pessimismo antropológico) é mais do que político, é civilizacional. Vai para além do sintoma. Porque a dificuldade está em manter uma ética da responsabilidade num mundo saturado de narrativas de vítimas e culpados.

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