sábado, 4 de outubro de 2025

Em nome de uma bandeira “humanitária”


Essa flotilha rumo a Gaza, tal como já aconteceu noutras ocasiões, não deixa de ser um gesto simbólico mais próximo da encenação política do que de uma ajuda efetiva. Muitas vezes estes movimentos apresentam-se como atos de solidariedade, mas, na prática, funcionam como propaganda. E ao desafiar diretamente forças militares numa zona de conflito, arriscam não só a vida dos próprios como também a instrumentalização da causa que dizem defender.

Além disso, há uma hipocrisia latente: quem apoia de forma acrítica esse tipo de ação esquece que, ao colocar-se automaticamente “do lado de Gaza”, acaba por fechar os olhos ao carácter autoritário, teocrático e violento do Hamas. Essa contradição – lutar contra opressões no Ocidente, mas tolerar ou até legitimar opressões noutros contextos – é um traço típico do dogmatismo político de certas franjas da esquerda radical. Ou seja, não é que a preocupação com a situação humanitária em Gaza não seja legítima, mas o modo como é usada como pretexto para gestos espetaculares e irresponsáveis reduz a seriedade da causa. No fundo é uma fantochada que só acirra divisões e não resolve nada.

Gestos de “ativismo simbólico” ou solidariedade internacional, feitos em nome de causas justas, acabaram por, na prática, favorecer regimes ou movimentos autoritários. Muitos intelectuais e militantes de esquerda na Europa e na América Latina viam Cuba como um farol de libertação contra o imperialismo. No entanto, fechavam os olhos para a repressão política, a censura e os expurgos internos promovidos por Fidel Castro. O romantismo revolucionário serviu como uma espécie de "escudo moral" que ajudou a legitimar o regime durante décadas. A Frente Sandinista derrubou a ditadura de Somoza, o que gerou grande simpatia internacional. Muitos movimentos de solidariedade, sobretudo na Europa, mobilizaram-se para apoiar a Nicarágua com campanhas de ajuda, brigadas de trabalho voluntário e propaganda política. Mas esse apoio raramente incluía uma crítica séria às tendências autoritárias do sandinismo, como a perseguição a opositores, a instrumentalização da imprensa e a repressão a comunidades indígenas.

As Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) reuniram voluntários de todo o mundo contra o fascismo, o que em si parecia nobre. Mas, por detrás do romantismo, estavam fortemente controladas por Moscovo e pelo Comintern, que as usavam para reforçar a agenda estalinista na Península. Isso resultou na perseguição e eliminação de anarquistas e trotskistas, em nome de uma “unidade antifascista” que, de facto, consolidava um modelo autoritário. Muitos intelectuais e organizações de esquerda apoiaram, de forma acrítica, movimentos palestinianos em nome do anti-imperialismo. Porém, ignoraram que, em várias fases, esses grupos tinham uma forte componente islamista, autoritária ou mesmo terrorista. Assim, em vez de apoiar uma solução equilibrada de autodeterminação e paz, acabaram por reforçar narrativas que justificam violência indiscriminada.

O padrão que se repete é este: o romantismo ativista foca-se na luta contra um inimigo “visível” (o imperialismo, o fascismo, o capitalismo, Israel, os EUA), mas fecha os olhos para os males do lado que apoia. Isso cria uma cegueira seletiva que, no fim, perpetua autoritarismos. Ao longo da história contemporânea, certas formas de ativismo político – muitas vezes oriundas da esquerda radical – revestiram-se de uma aura de nobreza e solidariedade internacional. Porém, quando analisadas em profundidade, revelam um paradoxo: em nome de causas justas, acabaram por legitimar ou reforçar regimes e movimentos autoritários. Exemplos como a Revolução Cubana e a Nicarágua sandinista mostraram como intelectuais e militantes do Ocidente, fascinados pelo ideal anti-imperialista, fecharam os olhos para práticas repressivas internas. O mito da “ilha da liberdade” ou da “revolução popular” tornou-se mais forte do que a realidade concreta de censura, perseguições e concentração de poder.

Desde os anos 70, vários movimentos pró-palestinos encarnaram a mesma contradição: denunciavam, com razão, a ocupação e a violência contra os palestinianos, mas abraçavam sem crítica grupos que recorriam ao terrorismo e ao autoritarismo religioso, como se esses males fossem secundários perante o “inimigo principal”. O denominador comum destes episódios é a cegueira seletiva: o ativismo dogmático identifica um inimigo absoluto (o capitalismo, o imperialismo, o fascismo, Israel, os EUA) e, nesse processo, absolve ou relativiza os erros do campo que apoia. A exigência ética e crítica é sempre unilateral.

O Caso Atual: Flotilhas e Gaza. As flotilhas que hoje se dirigem a Gaza com alegada ajuda humanitária ilustram esse padrão. Sob a bandeira da solidariedade, encenam gestos espetaculares que pouco contribuem para aliviar o sofrimento real da população. O resultado é duplo: alimentar narrativas radicais e oferecer legitimidade indireta ao Hamas, um movimento teocrático e violento. O ativismo político, quando guiado por dogmas, transforma-se numa fantochada perigosa: teatraliza a solidariedade, mas sacrifica a lucidez crítica. Em vez de contribuir para soluções equilibradas, reforça divisões e dá oxigénio a atores autoritários. A maturidade política consiste precisamente em resistir a esses encantos românticos e reconhecer que nem todo inimigo do nosso inimigo é nosso aliado.

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