Na lógica aristotélica, também chamada clássica, estão omnipresentes duas premissas e uma conclusão. Com as ideologias, a lógica é outra: uma só premissa, uma só conclusão. Quando a ideologia é preconceito -- petição de princípio -- petitio principii, expressão latina que indica uma falácia informal, em que já se parte do princípio que a conclusão é verdadeira inserida numa das premissas. É improvável que o preconceito de uma pessoa seja apenas uma atitude específica em relação a um grupo específico; é mais provável que seja um reflexo de todo o seu hábito de pensar sobre o mundo. Hannah Arendt, numa das suas intuições mais astutas, escreveu que «o que as ideologias totalitárias visam não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana».
Na lógica aristotélica (silogística), a validade de um raciocínio assenta em duas premissas (geral e particular) que sustentam uma conclusão. A força está na relação entre elas. Se a relação não existe, não há raciocínio, só slogan. Muitas vezes, no debate político, assistimos a algo próximo. Parte-se de uma única premissa (geralmente de forte carga emocional ou moral), salta-se diretamente para uma conclusão (normalmente de carácter absoluto), e o espaço da mediação lógica (as "segundas premissas" que dariam consistência) desaparece. Ou seja, há mais retórica do que lógica. As ideologias livram-nos da teoria dos nossos progenitores substituindo-a por uma nova. Vulgarmente chama-se a isto "lavagem do cérebro". Mas, ao contrário do que se possa pensar, uma nova ideologia modifica não apenas o aparelho cognitivo no cérebro da criatura, mas também a natureza emocional biológica visceral e a inculcada pelos criadores.
Desenredar as causas e os efeitos que conduzem a tais padrões é o quebra-cabeças da neurociência política atual. De onde vêm as nossas possessões ideológicas? Até que ponto as intervenções da inculcação política nos modificam verdadeiramente, possuindo-nos por dentro. “Foi para Gaza numa flotilha porque não pude dizer que não quando a minha amiga me lançou o desafio”. Nessa lógica, simplificando qualquer papel de cariz institucional, tudo o resto ficou obliterado. Hoje a coerência lógica é muitas vezes sacrificada em nome da coerência identitária ou ideológica. É a lógica de uma ideologia que destitui qualquer pessoa daquilo que vulgarmente se denomina por "bom senso". A ideologia é uma premissa omnipotente neste tipo de lógica. É, por assim dizer, uma teoria de tudo. Tudo pode ser previsto e explicado. O passado, o presente, o futuro, tanto as nossas condições existentes como todas as perspectivas, inquietações e frustrações.
Como devemos agir? Com quem nunca devemos interagir? É esta forma que temos para interpelar o agente ideológico. O pensamento ideológico ordena os factos num procedimento que começa por uma premissa axiomaticamente aceite, deduzindo tudo o resto a partir dela, como observou Hannah Arendt. Isto é, a ideologia opera num tipo de consistência que não existe em mais nenhum lugar ou domínio da realidade. Que não é irracionalidade, ser impelido numa determinada direção por imperativo ideológico. Porque é imanente ao desejo de infalibilidade, de perfeição. Tudo isto nos leva à simplificação de uma suposta realidade, mas profundamente inconsistente e inconsequente. O cérebro, capturado por uma ideologia, minimiza a importância da incongruência.
Na verdade, o cérebro, quando confrontado com as contradições, a ideologia encarrega-se de lhe colocar um biombo sobre a dissonância para que não fique incomodado com o esforço intelectual intenso. O compromisso é uma vassoura que varre para debaixo do tapete todas as incongruências. Porque das qualidades de uma ideologia há duas que são essenciais: uma doutrina rígida; e uma identidade rígida. O dogmatismo de um indivíduo pode ter origem num tipo de servidão intelectual – uma tendência para se submeter à opinião alheia, sem independência. É uma opção acrítica de acanhamento. Que os outros decidam e mostrem o caminho. Numa análise mais benevolente, é a humildade demasiado dogmática que se excede na confiança pelo intelecto dos outros. E é assim que uma pessoa absorve uma determinada ideologia totalitária, tanto na doutrina absoluta, como na sua identidade de rebanho.
É importante realçar que, embora seja possível ter-se uma doutrina rígida sem uma identidade rígida, e vice-versa, existem muitos casos em que a rigidez em relação à doutrina leva à rigidez em relação à identidade. No entanto, é sabido que existem gradientes no pensamento ideológico de quem adere apaixonadamente a uma doutrina rígida e absolutista à revelia de todas as evidências. O que caracteriza o fanático ideológico não é propriamente a doutrina em si, mas a sua estrutura mental. Com essa estrutura mental adere-se a qualquer tipo de ideologia. É estando cientes disso que podemos fazer melhores análises a propósito. Sem essa noção, teremos mais dificuldade na refutação dos ideólogos persuasivos. Para um demagogo nato tudo é relativo.
É importante realçar que, embora seja possível ter-se uma doutrina rígida sem uma identidade rígida, e vice-versa, existem muitos casos em que a rigidez em relação à doutrina leva à rigidez em relação à identidade. No entanto, é sabido que existem gradientes no pensamento ideológico de quem adere apaixonadamente a uma doutrina rígida e absolutista à revelia de todas as evidências. O que caracteriza o fanático ideológico não é propriamente a doutrina em si, mas a sua estrutura mental. Com essa estrutura mental adere-se a qualquer tipo de ideologia. É estando cientes disso que podemos fazer melhores análises a propósito. Sem essa noção, teremos mais dificuldade na refutação dos ideólogos persuasivos. Para um demagogo nato tudo é relativo.
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O que antes era identificado como virtude, como era o caso da docilidade, agora é submissão. É, na verdade, uma postura mais combativa numa crescente infelicidade. É o exemplo do empoderamento feminino, uma transformação no modo como as mulheres se expressam nas suas insatisfações. Se antes sorriam, ainda que por obrigação, hoje mostram repreensão com desconforto. Isso gera frustração, porque se tornam mais difíceis os silêncios. O feminismo do #Me Too abriu portas, mas não eliminou as pressões contraditórias. Hoje, muitas mulheres sentem que devem ser independentes, bem-sucedidas, belas, mães dedicadas, companheiras presentes. Mas esse excesso de exigências gerou cansaço e insatisfação.
Uma das divergências de apreciação prende-se com competências. Nos extremos do espetro, há quem considere que certas competências são inatas, umas pertencentes ao género feminino, outras inerentes ao género masculino. Essas pessoas podem ser classificadas como conservadoras ou reacionárias. Hoje predomina a opinião do outro extremo: de que não há competências inatas ao género. Durante séculos, certos problemas (consertos, burocracia, finanças, etc.) foram vistos como “coisa de homem”, e as mulheres não eram incentivadas (nem ensinadas) a lidar com eles. Quando hoje se espera que também assumam esse papel, muitas podem sentir-se menos preparadas, o que resulta em atrasos ou erros. Não porque sejam incapazes, mas porque não tiveram a mesma prática social e cultural. Muitas mulheres que hoje são independentes acumulam responsabilidades: trabalho, casa, filhos, relacionamentos, burocracias. Nessa multiplicidade de papéis, coisas como trocar uma lâmpada ou tratar das finanças podem mesmo ficar para trás, não por falta de capacidade, mas por falta de energia ou prioridade.
Hoje considera-se por maioria que a “competência masculina” é um mito. Também é preciso relativizar: muitos homens também procrastinam no cumprimento dos seus deveres. A diferença é que, culturalmente, havia sempre alguém (a esposa, a mãe, a irmã) a compensar essas falhas. Ou seja: as tarefas da tradição foram durante séculos divididas de forma desigual. Se pensarmos em termos históricos, o empoderamento feminino ainda é recente (algumas décadas em contraste com séculos de exclusão). É natural que haja uma fase de “caos” até que se consolide uma nova normalidade em que competências são mais igualmente partilhadas e transmitidas desde cedo a ambos os sexos.
Mas também não pode deixar de ser dito que ainda se encontram mulheres, elas próprias, a criticarem as mulheres feministas do #Me Too. Uma das razões prende-se com a autocrítica dentro do grupo. Quando um grupo social conquista mais espaço (neste caso, as mulheres), é natural que também surjam exigências internas: “já que temos voz, precisamos provar competência”. Daí as críticas de mulher para mulher, que às vezes são mais duras do que as que vêm de fora. Muitas mulheres sentem que, se falharem em algo “tradicionalmente masculino” (gestão de burocracia, reparos, finanças), isso poderá ser usado como argumento contra a igualdade. Por isso, outras mulheres acabam a ser as primeiras a apontar: é uma forma de tentar “corrigir” antes que os homens usem isso como crítica. Muitos homens evitam criticar porque sabem que podem ser acusados de machismo ou de serem retrógrados ou reacionários por não aceitarem as mudanças. Então calam-se ou até riem por dentro, enquanto assistem. O curioso é que esse “mais espaço” nem sempre veio acompanhado de menos peso. Pelo contrário: muitas mulheres carregam hoje dupla carga (profissão + responsabilidades domésticas + expectativas sociais). Isso gerou um caldo de frustrações que nos trouxe ao "estado em que estamos".
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